Читать книгу A Chave do Enigma - Antonio Feliciano de Castilho - Страница 18
XIV
ОглавлениеTres annos havia que tinham apparecido pela primeira vez as Cartas d'Ecco; e dois os poemetos da Primavera.
Residia então o autor de ambas estas bagatellas nos sitios mesmos, que, em harmonia com os vinte e quatro annos d'elle, lh'as haviam inspirado. Repoisava, já fóra do estádio academico, nos ocios tão poeticos do seu Mondego. A casa da vivenda conheceil-a vós, desde que o mais poeta dos nossos prosadores[2] pela magia da sua penna, que é ao mesmo tempo varinha de condão, vol-a descobriu, vol-a franqueou, vos fez, queridos leitores meus, entrar n'ella a visitar-me.
Pois bem: Era ali, n'aquella casa, ainda hoje lembrada do nosso nome, n'aquelle espaçoso e singular edificio, encostado, de uma parte á vertente de Subripas, de outra ao Arco moirisco de Almedina; dominando o rio convisinho e a margem ulterior, e dominado pelo castello de templarios, theatro do tragico fim de Maria Telles; era ali, n'aquella estancia, de aspecto meio senhoril, meio claustral, com seu pateo espaçoso, e escadarias de pedra, suas enormes laranjeiras enclausuradas, suas varandas ajardinadas, seus erguidos miradoiros; era ali, ali, para onde eu tantas vezes me recolho em espirito, ainda agora, a escutar os descendentes dos rouxinoes que festejavam, como nós, a Lapa dos poetas; ali, ali era, que os dias e as noites se nos devolviam, ao meu inseparavel e a mim, nas leituras amenas, nas conversações mais amenas ainda, com os bons engenhos juvenis, que a tão hospedeiro retiro nos acudiam de boa mente.
Era o Setembro de 1824; um donoso Setembro na verdade: estio em cheio e sombras á farta. Liamos os dois, isto é o um; por outra: recitavamos de cór pela centesima vez as elegias de Tibullo, á sombra de uma laranjeira merecedora de as ouvir, e muito{37} bem capaz de as ter ditado, se fôra em Italia, e para tanto lhe desse a velhice, que todavia não era pouca. (Nenhuma circumstancia d'aquelle tempo se me desbotou ainda da memoria).
¡Chega uma carta! ¡lettra desconhecida!... Abre-se, reza assim:
«Azurara, pelo correio de Villa do Conde, 27 de «Setembro de 1824.—
«Amar o mais perfeito é um dever: «Virtudes tantas devem ser amadas:
«Se vos apparecesse uma Ecco, imitarieis vós o vosso Narciso?
«A desconhecida
«Maria da Expectação Silva e Carvalho.»
¿Que significava, que podia significar aquillo? ¿Era uma pergunta candida? ¿era um brinco malicioso? ¿era masculina, era feminina, a mão que tal escrevêra? ¿como responder? ¿a quem responder? O coração, ou presago, ou desejoso, dizia uma coisa; a prudencia, outra. O Tibullo era do parecer do coração; todos os mais poetas votariam como o Tibullo. O sol, que observa ha tantos mil annos coisas de todas as castas, e de certo não ignorava o segredo d'aquella, espreitava-nos, e ria. A laranjeira, scismava calada; como aia e enfeitadeira de noivas, lá se inclinava para o sim; mas tambem, como velha, desconfiava. O Samsão de marmore do angulo do terrado, esse continuava a escachar pacificamente o seu leão, e não se intromettia na contenda.
Por muitas vezes se releu a carta á espera sempre de algum subito reflexo revelador; ¡e o enigma cada vez mais fechado!
Era caso para pesquizas, pois de qualquer dos oppostos lados que a verdade estivesse, não faltava que fazer, e tinha-se de lhe acudir com resposta.
Armou-se uma verdadeira caçada; empenharam-se n'ella quantos visinhos e praticos de Villa do{38} Conde e Azurara se puderam desencantar; ¡e o mysterio a cerrar-se cada vez mais! ¡e a curiosidade, o interesse, a recrescerem-me na mesma proporção!
Respondi emfim ao meu phantasma:—«Que não ousava eu muito acreditar em apparições de Eccos para quem não fosse Narciso; mas que, se por milagre houvesse uma, nunca eu seria tão insensato como o filho de Liríope.»—
Até aqui podia eu chegar com a resposta sem me comprometter; para diante fôra já arriscar-me. Partiu. Fiquei aguardando com certo dessocego pela réplica. Chegou, correio por correio.
Era a mesma lettra sem disfarce, e a mesma assignatura supposta. Mas d'esta vez, em logar de linhas contrafeitas, paginas com todo o desartificio amavel e persuasivo, com toda aquella graça nativa feminil, que se não imita. Quasi com certeza andava ali mão e espirito de mulher. ¿Era ella porém interprete solitaria de sentimentos proprios?; ou consocia e agente de uma conjuraçãosinha zombeteira? ¿Como descriminál-o? Não havia melhores razões para uma, que para outra supposição.
A substancia d'aquella carta, que eu não devo nem quero tirar do sacrario em que a enthesoiro como reliquia, reduzia-se a querer-me convencer de quanto eu era injusto para comigo, e de quão mal conhecia o sexo amoravel, se o julgava todo unicamente sensivel aos encantos dos Narcisos; emfim: que o poeta, que tão verdadeiros affectos suspirára por uma deusa ideal,—a Primavera, merecia bem que uma mulher o procurasse para compôr a felicidade d'elle, e pela d'elle a sua propria.
Isto, e muito mais a este modo, expunha a carta; mas por uns termos tão obsequiosos, tão lisonjeiros, e ao mesmo tempo tão naturaes, como os eu não saberia expor aqui em traducção.
O inverosimil principiou ali a figurar-se-me provavel. Nas regiões imaginarias em que vivem os poetas, não ha extranhezas senão para o que é natural e corrente; o ordinario são os prodigios.{39}