Читать книгу A Chave do Enigma - Antonio Feliciano de Castilho - Страница 5
I
ОглавлениеAntes de tudo, releva conhecer o individuo. Não é empenho muito facil; mas tentemos.
Levanta-se logo a primeira difficuldade d'este capitulo na averiguação da identidade:
Reflicta cada um comsigo mesmo n'este grave ponto: ¿a repetição de nome, a similhança das feições, a conservação, com mais ou menos mudanças, da indole primitiva, dos gostos, e das relações activas e passivas com as pessoas e coisas do mundo externo, bastarão para que, em boa philosophia, um homem qualquer se repute unidade consoante, e unico indestructivel no meio da metamorphose universal? ¡Embaraçoso problema!
O espirito immaterial e immorredoiro quer, por instincto, por egoismo, por fé, acredital-o; mas o estudo da Natureza, e a propria experiencia quotidiana, desmentem em boa parte essa presumpção.
O individuo não é só a alma; o corpo que a reveste, a serve, e tantas vezes a domina, é mais que sujeito a continuas e espantosas variações; renova-se incessantemente, perecendo e renascendo a cada instante; a sua carne de hoje era ainda hontem vegetaes, ruminantes, aves, peixes, agua nas fontes, gazes na atmosphera, calorico no sol, terra debaixo dos pés, e electricidade sabe Deus por onde; congregaram-se{12} essas myriadas de particulas... existiu; ámanhan partirão, todas ellas destacadas para novas combinações e destinos, sem que o espirito lhes haja sentido a fuga, porque outras particulas, accorridas do universo, terão vindo rendel-as sem estrondo nem abalo.
N'este sentido cada individuo é simultaneamente filho, irmão, e pae, influidor e influido, conservador, destruidor, modificador, herdeiro, usufructuario, e testador, de quantos entes sensitivos, vegetativos, inorganicos, imperceptiveis, imponderaveis, são, como elle, parcellas componentes do planeta em que elle se proclama senhor e potentado.
Mas se esta desidentificação incessante do corpo escapa ás nossas percepções, por não apresentar de hora para hora mudanças apreciaveis no ser, no sentir, e no pensar, já assim não é quando nos outros, e em nós mesmos, confrontâmos a infancia com a puericia, a puericia com a adolescencia, a adolescencia com a virilidade, a virilidade com a velhice, a velhice com a decrepidez; ou, supprimindo os graus intermedios para maior evidencia, a caducidade com a madureza, a madureza com o desabrochar no berço.
¿Que ha ahi de commum?!
Unicamente o nome, accidente impessoal, insignificativo, nullo.
O corpo é manifestamente diversissimo, e em tudo outro; e com o corpo outro e tão diverso, outras e diversas egualmente são as faculdades intimas, outro e diverso o sentir, o querer, o recordar, o ambicionar.
Não são épocas de uma vida; são vidas verdadeiramente distinctas, talvez contrarias, que se encadeiaram por um trabalho simultaneo e occulto da Natureza e da fortuna, dos successos e de nós mesmos.
É por isso que o louvor ou vituperio, a recompensa ou o castigo, conferidos tarde, conteem sempre mais ou menos, uma injustiça distributiva; e talvez duas: preteriram aquelle que fez, e já não existe, e vão-se dar ao que existe mas não fez. ¡Que de vezes se não haverá suppliciado um justo pelo malfeitor que annos atraz o precedêra, e nada mais lhe legára que o seu nome e umas parecenças no semblante!{13}
A solidariedade do homem comsigo, em remotos prasos da existencia, é pois tão infundada, como a de um individuo com outros, com quem nenhuns vinculos o prendem, e que operam, independente cada um na sua esphera, como elle na sua propria.
D'aqui vem que, sendo altamente suspeita de romance toda e qualquer historia que se escreva de um personagem, ou de um povo (ás vezes remotissimos em logar e tempo), sobre tudo quando o narrador pretenda assignar como causas aos successos o que se passou sem testemunha em tal ou tal coração, em tal ou tal espirito, pouco menos se eximirá de similhantes suspeições a noticia que o homem mais sincero pretenda transmittir-nos de si mesmo. «Escreve o seu preterito»—dirão os benevolos; mas escrever o seu preterito ¿não é escrever já de outrem?
Demais: ¡quantas perplexidades! ¡quantas conjecturas temerarias! ¡quantas supposições de boa fé, mas erroneas, quando ao clarão interrupto de reminiscencias enfraquecidas pretender levantar do pó as flôres, e os espinhos que n'elle se converteram, reedificar edificios, sobre os quaes se levantaram edificios novos, insuflar vida a sombras, resuscitar o coração de outr'ora, e achar a harpa interior com todas as suas cordas e a mesmissima afinação!
São estas, para quem bem o pensar, umas difficuldades, e tambem uns desenganos, e umas tristezas muito grandes. Nunca tão claro o senti, como ao reler agora este pobre livro. Forcejarei todavia por trazer á vossa intimidade, meus amigos, o autor d'elle, se ainda me fôr possivel, depois de tão apartados um do outro.
Um bem que ha n'esta desidentificação, n'este apartamento dos dois eus, é que, se algum bem me fôr necessario dizer do que foi, já ao que é se não poderá carregar em conta de vaidade.