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PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
ОглавлениеAos 20 de Junho de 1862 a sagrada congregação do Index condemnou em Roma este livro ácerca do inferno. Caridosamente advirto a leitoras e leitores que temos aqui fructo prohibido.
Perguntam-me o que vem a ser a congregação do Index? Eis-aqui o pouco que sei d'isso: o papa Paulo III publicou em 1539 um catalogo de livros cuja leitura prohibiu aos fieis sob pena de excommunhão. Este catalogo, chamado Index, foi approvado pelo concilio de Trento, enriquecido de numerosos artigos, e por elle, antes de dissolver-se, recommendado a Pio IV. O papa Sixto V, que não tinha vagar para lêr, creou, mais tarde, uma commissão permanente de cardeaes encarregada de examinar e condemnar livros. Esta commissão de cardeaes é o que se chama a sagrada congregação do Index.
Convém saber que Paulo III, velho amigo de Alexandre VI, e tanto, como elle, muito desacreditado por seus vicios, desmembrou dos dominios de S. Pedro as cidades e territorios de Parma e Placença que elle deu com plena soberania, e com titulo de ducado, a Pedro Luiz Farnezio, um dos seus filhos naturaes. Este tal fundou a inquisição, instituiu a ordem dos capuchinhos, exercitou a astrologia, fomentou e applaudiu a carnificina dos vandezes. Não discuto similhantes actos; recordo-os porque elles se ligam á mesma idêa que creou o Index.
Pio IV, a rogo dos Jesuitas, acrescentou algumas contas ao rozario, augmentando-lhe as virtudes; fez estrangular o cardeal Caraffa, sobrinho do seu predecessor Paulo IV; fez decapitar o duque de Palliano, irmão d'aquelle cardeal, e outros muitos personagens cujas cabeças ensanguentadas, por sua ordem, foram expostas sobre a porta do castello de S. Angelo; abafou o processo instaurado em Espanha contra o clero accusado de libertinagem; mas em compensação accendeu por toda a parte a guerra contra os herejes. Accuzam-no de haver beneficiado mais a sua familia que ao povo romano. Eu por mim não lhe contesto as virtudes, e menos ainda a orthodoxia. Na famosa bulla de 24 de Abril de 1564 declarou excommungados, ipso facto, quem quer que no futuro imprimisse, vendesse ou lesse algumas das obras inscriptas no Index pelo concilio ou por elle mesmo; e bem assim quem, não as tendo lido, as emprestasse ao visinho, ou, sem as ler ou communicar a alguem, as fechasse na sua bibliotheca ou n'algum esconderijo da sua casa. Urgia, pois, queimar os livros prohibidos quem quizesse evadir-se á excommunhão, e em seguida á condemnação eterna. Como não podesse queimar os auctores, Pio IV desforrava-se fazendo-lhes queimar as obras.
A vida de Sixto V é bastantemente conhecida, não tem que vêr com a de S. Pedro; mas sobejavam-lhe intelligencia e indole sufficientes ao exercicio do poder absoluto. Era manhoso e cruel este grande papa, cujo systema de governar compendiou em duas palavras: pão e páo.
Dispensam-se pois os povos de pensar, como coisa perigosa: é bastante que elles não morram de fome e que tremam sempre diante do algoz. Depois erijam-se obeliscos e edifiquem-se templos.
Este papa mandava decapitar os padecentes debaixo das suas janellas, antes de sentar-se á meza, dizendo que isto lhe abria o appetite. As cabeças dos suppliciados, que elle expunha e deixava apodrecer aos olhos dos caminhantes, ameaçavam de peste a cidade. Apezar dos juizes, fez enforcar um mancebo de 16 annos por haver resistido aos quadrilheiros que o prenderam. Ordenou que cortassem as mãos e que traspassassem a lingua d'um auctor epigrammatico. Excommungou a rainha Isabel, desquitando a nação do juramento de fidelidade; excommungou o rei de Navarra, o principe de Condé e o rei de França, exaltando até ao delirio o fanatismo dos partidarios da Liga; e depois do assassinio do desgraçado Henrique III, elogiou em pleno consistorio Jacques Clement, comparando-o a Judith e Eleazar, debeis mas fieis instrumentos do Deus dos combates. E como signal sensibilissimo de sua terna solicitude pela salvação das almas, restabeleceu ao mesmo tempo o santo officio e cumulou de indulgencias a confraria do Santo Cordão. Era proprio d'este grande e devoto papa continuar a guerra declarada por seus predecessores á razão humana e á liberdade da consciencia, instituindo de par com o santo officio a congregação do Index.
Não cuideis, porém, que os livros condemnados por esta congregação fossem lidos pelo papa ou sequer pelos cardeaes encarregados d'isso. Por via de regra os cardeaes nada lêem. Á laia de Sixto V, encarregavam outros d'esse officio. Á volta da congregação do Index formigavam monges e obscuros theologos de toda a parte, chamados consultores, a quem incumbia o encargo quasi sempre fastidioso de lêr obras novas. As formidaveis sentenças do Index, mediante as quaes uma familia inteira era excommungada e condemnada, promanavam do relatorio d'estes consultores: tal era a sorte de quem recusasse queimar um cartapacio jansenista, herança de avó piedosa, ou as Maximas dos Santos de Fénelon, ou os Pensamentos de Pascal, ou as Reflexões moraes de Quesnel, embora approvadas pelo cardeal de Noailes, arcebispo de Pariz, ou a Theologia de padre Lequeux – primeira edição – ou a Philosophia de Cousin. Pelo que me toca, julguei que o inferno é uma concepção immoral, profunda e forçosamente immoral pelas razões que adduzi. Tambem mostrei, a diversas luzes, o perigo de similhante crença para o genero humano. Por isso fui condemnado em Roma. Optimamente! Agora exijo que me respondam. Graves e leaes são as minhas objeções: o decreto do Index as deixou subsistir em todo o seu vigor.
Quando a soberania temporal do papa, que não é dogma, deixar de absorver os esforços todos dos defensores da fé, espero que elles tenham vagar de cuidar no inferno, que é um dogma, e dogma tanto em perigo e tão vacillante – fiquem-no sabendo – como o throno de Paulo III, de Pio IV, e Pio V.