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PARTE PRIMEIRA
CAPITULO SEGUNDO
A FÉ NOVA
II
O purgatorio

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É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas não se amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são salutares porque se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a esperança não é anniquillada.

Se tal logar existe, de que serve o inferno?

Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O peccador não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel absolutamente formar-se uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos perante nós um pouco que seja as balisas do tempo, a nossa imaginação e razão se perdem; e cahimos nas prezas das mesmas angustias que sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.

Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é capaz a sua natural sensibilidade, e qual o podem comprehender as faculdades do seu entendimento. Para que iremos mais longe? Não é bastante ameaçar os maus com castigos proporcionados ás suas faltas, durante um espaço de tempo desconhecido ou incalculavel n'este mundo? O que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá d'estes limites, a ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça, oppressa de terror, extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora, supplica perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel a tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas extremas alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja gemente, se em vez de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá vai tudo: o terror tocou o apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e de bondade tudo se desfaz; a alma, que cahira crente, levanta-se atheista.

Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só; é o blasfemar dos condemnados.

Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os protestantes não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal inferno, que é cem mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não; seculos e milhões de seculos de penitencia não se contam, esquecem-se. Em vista d'este sinistro inferno em que a misericordia é desconhecida, inutil o soffrimento, e a justiça um enigma, o purgatorio é um paraizo. Quem nos dera a certeza de lá ir! que os castigos ahi soffridos, por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os: desejam-se. Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o mais equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.

As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe a vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos inefficazes e dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa que seja, se humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos castigos poderosos e dôres salutares, por muito bella, clara, natural e divina que ella seja.

O Inferno

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