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PARTE PRIMEIRA
CAPITULO SEGUNDO
A FÉ NOVA
V
O paraiso

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Os protestantes não conhecem termo medio entre paraiso e inferno; os catholicos, porém, acreditam-no, e segundo elles é o purgatorio ceo nubloso e triste, inferno onde se ora e espera, e que deve acabar. Infelizmente os catholicos não enviam todos os mortos ao purgatorio, crendo que se póde transpor aquelle meio entre ceo e inferno, sem ainda lá pôr o pé. Á similhança dos protestantes, ensinam que muitas almas, apenas despidas do seu involucro mortal, são despenhadas para sempre no eterno abysmo, ao passo que outras almas, logo que despedem da terra, alam-se direitas ao paraiso. Ensinam tambem, uns e outros, que o mais abominavel patife, convertido á ultima hora, póde morrer contente: eil-o vai absolvido como o bom ladrão; não tem mais que fechar os olhos e acordar entre os anjinhos.

É isto possivel? É isto verdadeiro? Que é pois o paraiso, e que idêa fazemos d'elle?

Pois que! verei eu do seio da bemaventurança, e na inalteravel tranquillidade dos justos, verei sem remorso e sem afflicção, encadearem-se a meus pés, já na terra, já no inferno, as tristes consequencias das minhas iniquidades? Nas minhas noites de libertinagem, matei; durante o somno de homens que valiam mais do que eu, assassinei um aváro para o roubar, um amigo da minha infancia para entrar no seu leito, uma mulher que eu havia seduzido e que morreu beijando-me as mãos, pensando em mim, a louca, mais do que em Deus! D'entre elles os peores que eu feri eram innocentes comparados comigo, e eil-os mortos intempestivamente, sem terem tempo de se arrependerem; eil-os engolphados na gehenna, com o coração roido pelo verme que não morre, gementes, chorosos, amaldiçoando-me; e eu, seu assassino; eu, peccador envelhecido na impiedade e agraciado por um milagre, louvarei Deus eternamente, por me haver feito instrumento da condemnação d'aquellas pobres almas!

Com as minhas delapidações, reduzi á miseria e a todas as tentações da miseria, e a todos os desvios da desesperação aquella familia que lá vejo em baixo: o irmão vende a irmã, a irmã vende a sobrinha, o pae vende os seus juramentos, os seus amigos, o seu paiz; a mãe arranca-se os cabellos; todos choram, todos soffrem, todos me accusam, e os seus gemidos chegam até mim; e eu hei de vêr imperturbavel, sem remorsos, sem dôr, aquelles fructos de meus crimes, aquellas ulceras, aquelles prantos, aquelles opprobrios, aquellas perfidias, aquelles escandalos em que eu tenho parte; e, pois que Deus se apiedou de mim, eu não terei piedade dos outros, e o que na terra me affligia, quando eu agonisava, não me ha de affligir depois da minha morte. Este deploravel espectaculo, bem visivel a meus olhos, não impedirá que eu me saboreie na felicidade dos escolhidos; convencer-me-hei que vae n'isso o influxo dos designios do Altissimo, e que o homem, faça o que fizer, não tem que vêr com o resultado das suas obras; e em vez de bater no peito a cada sobresalto dos meus proprios crimes, a cada repercussão das minhas proprias blasphemias, a cada reflorecer das venenosas sementes – vestigio unico que eu deixei da minha passagem na terra – vestirei a alva tunica, e beberei na taça dos anjos, das virgens, dos heroes, e dos martyres, como se eu fosse um d'elles.

Na verdade é uma egregia doutrina esta da justificação do peccador, pelo reconhecimento e pezar de suas culpas; levada porém áquelle grau, similhante doutrina é tão incomprehensivel como a do inferno. De uma demasia nasceu outra: n'uma parte encareceram a justiça; na outra exaggeraram a piedade. Comtudo, entre o castigo infinito por um só peccado, e o immediato perdão apezar de mil peccados, havia o que quer que fosse que parece desconhecer-se: a justiça sem colera, a misericordia sem pusillanimidade.

Salvam-nos como nos condemnam, com pouco custo ordinariamente, pois que se com facilidade nos abrem as portas do inferno, com a mesma nos abrem as do paraiso.

Considerem entretanto o purgatorio, não como meio entre o paraiso e o inferno, mas entre a terra e o ceo, ponto que certas almas atravessam rapidamente e quasi sem soffrer, e onde outros são condemnados a padecimentos mais ou menos extensos e variadissimos, consoante a natureza de suas culpas, e disposição no ultimo momento. Este purgatorio com as suas penas indefinidas, proporcionaes, rigorosas, purificantes, e, cedo ou tarde, coroadas pelo perdão, não seria um freio moral mais rijo que o medo das penas eternas, temperado pela esperança da misericordia na ultima hora, e pela reforma de vida na ultima edade? Convenho que não haveria medo de ser condemnado sem remissão; assim é; mas tambem ninguem presumiria de fugir ao castigo com um momento de contricção, depois d'uma longa cadeia de crimes. D'esta arte, Deus mostraria melhor o que é, justo, mas não cruel; bom, em vez de tolerante. Que mal lhe viria d'ahi? Commiséravos o lastimavel ancião coberto do sangue das extorsões e o tyranno abjecto que sopesou e corrompeu milhares de homens; tendes d'elles piedade, quando morrem chorando? tendes razão; mas apiedae-vos tambem de suas victimas ainda palpitantes, d'essas creanças que elles definharam e ceifaram em flor, e que vós condemnaes. Piedade e justiça para todos. Não desespereis os que vagarosamente caminham sobre os abrolhos da penitencia, mas não lhes encurteis a escada para os subir ao ceo. Sabei que na outra vida se chora amargamente o mal feito ao proximo que n'este mundo nos sobrevive, as desordens que se motivaram, as existencias que se transtornaram, as quedas moraes que se occasionaram, e que o arrependimento na hora extrema, posto que grandemente salutar, é apenas o principio, e não o fim, das expiações d'uma vida culpada.

É de crer que na Biblia e nos padres da Igreja isto se não encontre escripto; mas está escripto nas consciencias. Limpem os oculos e leiam.

O Inferno

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