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INTRODUCÇÃO

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Francisco Luiz d'Abreu, estudante do segundo anno medico na universidade de Coimbra, estava, por volta das onze horas da noite de 28 de janeiro de 1692, estudando, no seu Vila Corta, as theorias de Galeno ácerca das purgas—de purgatione.—Embebecido e pasmado nas virtudes drasticas dos olhos de caranguejo, apenas tinha um todo-nada de espanto para celebrar os não menos miraculosos effeitos da pelle de cobra, quando, tão a deshoras, duas aldrabadas na porta o roubaram ao seu enlevo. Francisco encapuzou-se no gabão, e abriu as portadas da janella que dava sobre o Becco das Flores, becco assim denominado por antiphrase, figura de rethorica tolerantissima que permitte denominar-se flores o adubo de que ellas tiram a seiva putrida, mais tarde evaporada em aromas.

—Quem é—perguntou o estudante, apertando as azas nasaes, com ingrato despreso das boninas da sua rua.—Quem é o vadio?

—Sou eu!—respondeu quem quer que era, abrindo pequeno respiraculo por sobre o ferragoulo, que lhe envolvia todo rosto.

—Tu!...—exclamou Abreu com alvoroço.—Vou abrir! Pois és tu?!

Algum motivo mysterioso tinha o academico para descer ás escuras a precipitosa escada, contando as escaleiras e raspando com o pé cauteloso sobre cada degrau. Aberta a porta recebeu nos braços com ardente vehemencia o interruptor de seus estudos, e tão alheado ficou das suas considerações therapeuticas sobre a pelle de cobra, que nem já os olhos de caranguejo lhe lembravam.

—Tu aqui, Antonio de Sá!—tornou Francisco.—Eu fazia-te na India!... Sobe, meu desventurado rapaz, que não ha ainda duas horas que os teus condiscipulos te lamentaram, especialmente José de Barredo se arrepellava por ter sido teu confidente n'esses funestissimos amores que te perderam...

—Com razão!...—murmurou o outro—com razão me lamentaste, que eu sou desgraçado, quanto póde sel-o n'este mundo um rapaz de vinte annos.

—E que magro estás!... atalhou Francisco Luiz, achegando-lhe do rosto a candeia de lata, que despregou do velador.—Como estás acabado!...

—Se te parece!... um anno quasi sem ar, nem sol; passado de terrores... Como não queres que eu esteja pallido e descarnado?! São assim todos os rostos que se lavam com lagrimas...

—Pobre Antonio!...—atalhou o outro muito consternado—Se, ao menos, tivesses fugido de Portugal, como nós suppunhamos, terias céo e ar... Senta-te, homem!... Queres tu comer?

—Quero.

—Ainda bem! A desgraça não te quebrantou o antigo estomago... Aqui tens queijos, figos e bolos de Santa Clara... Olha que ainda duram os amores da freira... Aqui tens o coração da freira n'estas trouxas d'ovos. Carne não na ha, e não sei onde vá procural-a a esta hora... Queres tu uma sôrda? Essa faço-t'a eu: estão alli os alhos; e, á mingoa de azeite, cosinha-se com o da candeia, e depois conversaremos ás escuras.

—Isto basta para quem anda faminto de bons bocados—disse Antonio, com desusado atticismo, devorando o queijo e os figos, e as trouxas allegoricas do coração da franciscana, não já como desgraçadissimo entre os homens, mas certamente como de entre os estudantes o mais faminto.

O hospedeiro academico enfreou sua curiosidade emquanto o amigo não pôde dispor da lingua, empenhada na soffrega lida da deglutição. No entretanto, andava elle rebuscando na gaveta alguma vitualha, como se em gaveta de estudante alguma vez se operasse o milagre de que alguns raros anachoretas se gosaram na Palestina, quando os anjos do céo lhes cosinhavam os fricassés.

—Que andas tu procurando?—perguntou Antonio de Sá Mourão.

—Um boi que te mate essa fome! Hei medo que me devores, rapaz.

—Nem manjar branco me dês que já me cá não cabe. Estou alimentado para tres dias, se fôr necessario. Queres agora a minha historia de treze mezes? Deita-te ahi na tua cama; escuta e adormece quando quizeres. Que sabes tu da minha vida?

—Sei o que todos sabem: que fugiste de Bragança com uma moça, filha unica de pae rico e feroz, que te fez procurar aqui em Coimbra, e me quiz metter no aljube para lhe dar conta de ti, allegando que eu devia forçosamente ser teu confidente, por que sou christão novo como tu.

—Não sabia—interrompeu Antonio—que os meus infortunios implicaram comtigo...

—Mais do que eu te sei dizer... Os trabalhos, que me ameaçavam, affligiam-me muitissimo menos que a idéa da inexoravel perseguição que te fariam por toda a parte. Esperava eu, a cada hora, a noticia da tua prisão, com todas as probabilidades de que morrerias na forca, se não morresses na fogueira. Ninguem dava novas tuas, que não fossem horrorosas. Uns diziam que tinhas sido morto a tiro; diziam outros que te havias suicidado. Ao cabo de seis mezes, espalhou-se a boa nova de que tinhas embarcado para a India, favorecido por teus parentes ricos de Lisboa, e tambem corria que a moça te acompanhára vestida de rapaz. Ora, como nunca mais se fallou de ti, acreditámos que estavas salvo... Como te vejo aqui, Antonio?! Que é isto?! Onde tens estado? Como pudeste fugir á justiça, se não foi n'algum subterraneo?

—Eu te conto, respondeu Antonio. Aquella temporada de ferias que fui passar com meus tios em Bragança foi a morte da mocidade, das esperanças, e de tudo em que eu fundamentára a felicidade das minhas modestas ambições. O prazer exclusivo da minha vida tinha sido o estudo, a gloria da sciencia, desvanecimento louco de poder ainda, mediante a sciencia, avisinhar-me do throno, como os antigos da nação1 e desopprimir nossos irmãos, quanto coubesse na alçada do juizo, e no prestigio que a posição de medico do rei me désse. Era um sonho talvez desatinado; mas o despertar-me d'elle foi atroz!... Amei aquella mulher; referi-te o nascer d'aquelle funesto amor. Sabes que os teus conselhos e vaticinios, ainda mal que realisados, não poderam reduzir-me ao dever, á honra, e propriamente ao discreto egoismo, que tantas vezes nos arreda de abysmos cavados pela excessiva sensibilidade. O peior, meu amigo, já não era vencer-me eu; era vencer a compaixão que me fazia a pobre menina, cujas alegrias dos dezoito annos eu fôra converter em amargura de toda a vida.

—Combati essa opinião—interrompeu Francisco Luiz—por cuidar que era grande parte n'ella a tua vaidade, a vaidade do homem que se julga necessario á vida da mulher...

—É verdade; combateste a insensata opinião; mas... não sei se cedo se tarde o fizeste; o certo é que as tuas razões me pareceram sophisticas e glaciaes. Vi em ti o philosopho que sempre foste; e em mim vi o homem duplicado em sua existencia pelo amor, os dois homens que se combatem e forcejam por despedaçar-se, até que um triumpha, e... fica senhor das ruínas do coração... Já agora não discutamos como medicos em volta de um cadaver. Saibamos que está morto o homem, e ouve tu singelamente a historia das delirantes febres que o acabaram.

De antemão sabia eu já que a filha de Fernão Cabral me seria negada e que os lacaios do christianissimo fidalgo, por ordem de seu senhor, me ameaçariam com os seus tagantes.

Isto não embargou que eu timidamente me fosse apresentar ao nobre morgado de Carrazedo, e lhe pedisse a filha. Fernão ouviu-me em pé, e respondeu-me n'estes termos: «Olhe para estes retratos»—e apontou para uma duzia de figuras pendentes das paredes—«olhe para estes retratos, e veja se ahi está algum com a estrella vermelha das seis pontas cosida sobre a garnacha ou sobre o arnez2» dito isto apontou-me a porta da escada.

Não sei se odio, se lagrimas, se tudo a um tempo, me enchia o coração! Já então não tive animo para te escrever!

Ha desgraças tamanhas que um homem parece envergonhar-se de contal-as aos seus amigos mais do intimo d'alma. Fechei-me com o segredo da minha ignominia. Deixei Bragança e fui para a Guarda, resolvido a entregar-me inertemente ao devorar silencioso da minha saudade.

Fugi dos carinhos da familia, e ferrolhei-me n'uma casa agreste e erma na quebrada da Serra da Estrella. A desesperação alli foi-me consoladora, por que a morte era inevitavel n'aquelle desamparo.

Nem ainda então pude escrever-te, meu amigo! Assim que tentava fazel-o, não sei exprimir que desalento me esvaía a cabeça. «Que vale queixar-me?! dizia eu entre mim—O que Deus não dá não m'o podem dar amigos. Deixal-os gosar, deixal-os ignorar estas obscuras angustias.»

Uma noite, faz agora onze mezes, estava eu passeiando nos quasi pardieiros da minha vivenda, quando ouvi tropel de cavalgaduras no barrocal que descia da serra ao alpestre casalejo de meus avós, os quaes alli se tinham homisiado no tempo das grandes perseguições do rei D. Manuel. Accudi á janella e ouvi uma voz de homem dizer: «É aqui.» Não sei que outras palavras se disseram: eram a voz d'ella: era Maria.

Quando dei tento de mim, e cobrei conhecimento da minha situação, tinha, nos braços a filha de Fernão Cabral, e á beira d'ella vi uma criada sua, que nos fôra medianeira, e um criado da casa de meu pae.

Contou Maria, a intercadencias anciadas, que fugira de Bragança, logo que o pae se ausentou por alguns dias, no proposito de negociar o casamento d'ella com um fidalgo de Vizeu. Como não tinha mãe, e costumava passar muitas horas reclusa no seu quarto, os domesticos não deram logo conta da fuga, nem a suspeitariam tão cedo, se a sua aia não faltasse tambem. Fugiu caminho da Guarda, e procurou-me alta noite, em casa de meus paes, que tentaram restituil-a á casa paterna, temerosos dos resultados. Como ella, porém, os assustasse ainda mais com o proposito de se matar, encaminharam-na ao meu deserto, com todo o segredo.

Imagina tu que hospedagem daria eu á filha do gentil-homem, alli, n'aquellas ruinas, onde todas as alfaias eram um catre de bancos, uma arca, dois tamboretes de páo, e alguma loiça vermelha do uso dos caseiros, pobre gente de nossa raça, que para alli ficára grangeando e usofruindo as pouquinhas e inferteis terras!... A Maria e á sua criada grave dei o meu leito; e com o meu criado me fui ao palheiro, e me agazalhei nas mantas que os caseiros nos emprestaram.

De madrugada, chegou meu pae a indagar do meu destino, e a dar-me alguns recursos para fugirmos até onde passassemos insuspeitos. O velho chorava, e eu, digo-t'o com pejo, queria que elle se alegrasse de me ver feliz!

Deferi a minha saida para o dia seguinte, sem saber que rumo tomasse. Meu pae mandava-me fugir por Hespanha e embarcar para Hollanda. Maria, esperançada na commiseração do pae e na protecção dos seus santos advogados, queria que eu e ella fossemos ajoelhar aos pés d'elle. Por mais que m'o dissesse em tom de anjo quando revela os decretos do céo, não pude sequer imaginar possivel o perdão do soberbo fidalgo.

Saimos para Celorico, a quatro leguas de distancia. N'uma aldeia dos arrabaldes, moravam irmãos do meu caseiro, grangeando um casal. Alli deliberei repousar alguns dias, porque Maria já tão sem forças ia da jornada por serras n'um dia de rigoroso inverno, que mal podia ter-se nas andilhas. Desde aqui avisei meu pae, pedindo-lhe novas do que soubesse. Respondeu-me que, horas antes, tinha sido cercada nossa casa, e que elle, com todos os nossos, estavam arriscados a ser presos.

E foram, no dia seguinte, presos e fechados em masmorras.

As immediatas noticias que tive foram cruelissimas. Todos os nossos bens tinham sido inventariados como para entrarem no sequestro feito a bens de judeus. Eu não devia já esperar recursos alguns de minha casa, e o dinheiro que eu possuia pouquissimo era para me transportar para fóra do reino. Sobrepõe tu, Francisco, a estes lances, o medo da prisão, e escutar a cada instante nos menores rumores o estrepito dos quadrilheiros! E, se estes são poucos supplicios para conceberes muito em sombra a minha vida, ajunta a isto uma cama de enxerga n'um quarto de vigamento por onde a ventania esfuziava, e sobre essa enxerga a pobre menina a tremer os frios das sesões, e eu de mãos postas a contemplal-a assim!

Para que ninguem da aldeia nos visse, os dias para nós eram a continuação das noites. Aquelles pobrinhos fazendeiros, de portas a dentro, melhoraram quanto poderam a nossa situação. Eu, por minhas mãos, carpintijei o tabique para aconchegar o nosso quarto; e, com todas as cautellas, consegui que viessem de longe bragaes e roupas com que tirei á alcova de Maria as tristezas da indigencia. Melhorou a minha pobre amiga e desenvolveu espantosa energia na lucta. O sorriso d'ella dava-me alentos; mas não podia espancar da minha alma a imagem de meu pae, mãe e irmãos encarcerados, perseguidos pelo rancor vingativo de Fernão Cabral, e mais que muito sujeitos á extremidade de pagarem com a vida o meu delicto.

Com que traças e trabalhos eu conseguia incertas noticias d'elles! Para mim era já consolativa a nova de que os não tinham mandado para os carceres da inquisição de Coimbra. Logo que elles aqui entrassem, perdidos os considerava eu.

E assim vão decorridos treze mezes, Francisco Luiz! Comprehendes tu que infernos eu tenho apagado com as minhas lagrimas para poder viver ainda!... Lagrimas escondidas d'aquella martyr, para que ella, conhecedora do meu desalento, não desanime!...

—E choras assim, Antonio! Coragem!—exclamou Abreu, tomando contra o seio o anciadissimo moço.

—Ai! deixa-me chorar, que não o pude ainda fazer tanto ás largas. Deixa-me chorar, que isto é veneno mortal que me sáe aos olhos! É preciso que vejamos alma compadecida para sabermos a doçura d'este desafogo das lagrimas!

Passados momentos, Antonio apertou, de golpe e convulsamente, as mãos do condiscipulo, levou-as aos labios, e exclamou soluçante:

—Sabes ao que vim?

—Diz, meu querido amigo.

—Venho pedir-te dinheiro para fugir de Portugal.

—Tel-o-has. Minha mãe já não vive, e eu tenho uma legitima. Conta com ella.

—Bem hajas! bem hajas, meu Francisco! Mas venho pedir-te mais alguma coisa.

—Diz.

—Eu tenho um filho de quinze dias. Não posso fugir com a creancinha. Aceitas-m'a no regaço da tua caridade? Ficas com o meu filhinho, para m'o restituir, quando a felicidade me bafejar?

—Ficarei como teu filhinho, Antonio. Dar-lhe-hei o coração que te dou a ti. Se Deus o não tiver levado, quando voltares, achal-o-has. Não lhe direi o teu nome de pae, sem que tu lh'o possas dar. Ninguem saberá que é teu filho, sem que tu possas dizel-o ao mundo.

—É assim que t'o roga a minha alma attribulada... a ti e a Deus, que me está fallando no teu coração. Porque não hei de eu ajoelhar a teus pés, se creio que em ti está o Senhor da compaixão e da misericordia?!

Francisco Luiz de Abreu levantou nos braços o arquejante moço; e, não menos commovido, ratificou as promessas feitas.

Ás dez horas da noite seguinte, Francisco Luiz e o seu amigo sairam de Coimbra, cada qual por diversa porta. O bemfeitor foi para Ourem, sua terra; o judeu da Guarda, por desvios escusos, entrou, decorridas duas noites de jornada, na abegoaria onde o esperava a mãe da creancinha, que bebia um leite aguado de lagrimas.

Dez dias volvidos, por noite alta, entrava no mesmo casalejo Francisco Luiz de Abreu, com uma ama de leite, e com a sua legitima materna n'um saco de moedas de ouro.

Contemplou a formosura da peccadora, e a formosura do innocente nos braços d'ella. Saudou-os, chorando, e tomou a creancinha muito aconchegada do seio.

—Como se chama o anjinho?—perguntou o academico.

—Tu o dirás—respondeu Antonio.—É teu afilhado.

—Seja Francisco—disse a mãe.

—Muito desejaria eu baptisal-o, e dar-lhe o meu nome—observou o academico;—mas tu sabes, Antonio, o resguardo que convém ter comvosco, com este menino e comigo. O meu parecer é que se esconda quanto ser possa a influencia que eu hei de ter na creação de teu filho. Melhor é que as suspeitas do mundo, se ellas vingarem descobrir ligações d'esta creança comigo, me julguem a mim, que não a ti, pae d'ella. O meu intento é alugar uma casinha em Coimbra onde a ama viva com elle. Não irei ser padrinho, para não dar corte á desconfiança de que elle seja meu filho. Assim se irá creando, até que eu conclua a formatura. N'este meio tempo, quererá Deus que tu voltes a Portugal.

—Voltarei eu?!—exclamou Antonio, apertando no mesmo braço o amigo, o filho, e a mãe, que estava lavando com lagrimas o rosto da creancinha, deitada nos braços do estudante.—Ver-vos-hei eu mais?—balbuciou, intallado de gemidos. Que futuros melhores posso esperar eu!? Como crês tu possivel o termo da perseguição?...

—Não sei—disse Abreu, fingindo esperanças.—Não sei... mas as voltas do mundo são tão espantosas... Todavia...—continuou elle com o alvoroço de uma já sincera esperança—não te lembraste ainda d'uma felicidade muitissimo possivel?

—Qual?—conclamaram os dois, para quem um raio de esperança era já cousa de estontear como a luz do sol aos exhumados das trevas de longo encarceramento.—Qual? que felicidade nos promettes, meu amigo?

—A mais obvia e facil. O que me espanta é que ella vos não haja sorrido primeiro do que a mim. Ides para Hespanha, não é assim?

—Vamos.

—De lá passaes a Hollanda, onde achareis o abrigo que os nossos irmãos deparam a quantos infelizes vão de cá acossados pelas tochas do auto da fé. Tu, Antonio, és novo e robusto. Se não quizeres continuar os teus estudos medicos lá fora, voltas a tua actividade para outra ordem de trabalhos: fazes-te mercador, ganhas dinheiro, esqueces a patria, como se nunca a tivesses, como em verdade não temos; depois, mandas ir o teu filhinho, como complemento da tua felicidade na vida tranquilla.

—Que sonho!—clamou alegremente a filha de Fernão Cabral.—E eu nunca pensára n'isso...

—Nem eu...—ajuntou Antonio.—Ha umas desgraças que esterilisam a mais pensadora e expeditiva alma! Eu não via senão escuridade... Agora, bem hajas tu, meu irmão, que me restitues á serenidade de homem inquebrantavel por affrontas da sorte... E a ti, a ti, meu amigo? Não hei de eu mais vêr-te?

—Porque não, se eu hei de ser propriamente quem te vá levar o filho?

—Oh! então já sei que ha o antever da perfeita felicidade, cá mesmo d'este grande abysmo em que me lancei com esta infeliz menina...

E, abraçando-se n'ella, choravam ambos lagrimas já de jubilo, como as de quantos naufragos que apegam sobre ponta de rocha, ainda quando ao despegarem-se, para ganhar terra, voragens novas se lhes anteponham.

N'este dia, como se a adversidade cançasse de cruciar os dois fugitivos, boa nova lhes chegou a sobredoirar os prazeres da esperança.

Sem embargo da raivosa perseguição do fidalgo de Bragança á inculpada familia do hebreu, as leis não se dobraram a sentenciar a perdição dos innocentes. Apoz dez mezes de masmorra na cidade da Guarda, os dois velhos e seus filhos sairam livres, sob a bandeira misericordiosa dos dignitarios da Sé, conjurados todos em deporem sobre a pura christandade dos presos, e sua irresponsabilidade nas desordens do máo membro de sua familia.

Redobrada a exultação de Antonio com esta nova, queria já elle dispensar-se de receber o emprestimo de Francisco de Abreu, como quem contava com sobejo dinheiro de sua casa resgatada do sequestro. O amigo, porém, não condescendeu nem o desquitou da obrigação de devedor, instando na immediata saida de Portugal, porque a raiva do fidalgo redobraria de vigilancia, depois da soltura dos presos em quem não podéra assentar em cheio a mão rancorosa.

Prevaleceram as judiciosas previsões de Francisco Luiz. Áquella hora, de feito, já Fernão Cabral, esporeado pelo odio, apertava novas diligencias para descobrir o rasto dos fugitivos, e, mediante disfarçados espias que na Guarda lh'os andavam furoando, não estava já longe de lhes descobrir o rasto.

Ao outro dia, depois de muito chorar da mãe, a cujo seio arrancaram a creancinha, Francisco Luiz, sem saber como se estancavam lagrimas de tão puro sangue de alma, fugiu para assim dizer com o menino, sem esperar as ultimas despedidas.

Ao anoitecer d'este dia, os consternados paes, por serranias não trilhadas endireitaram ás fronteiras e vingaram entrar em Hespanha. Contemplavam-se a espaços, e viam nos olhos um do outro o desconforto, a desesperança, o convencimento de que sua desgraça ia crescendo.

—E o nosso filhinho?...—dizia ella em gemidos, que pareciam um arrancar da vida.

E elle cobria o rosto com as mãos, arquejava, engulia as lagrimas e não respondia.

—Que mal fizemos em deixar a creancinha!—voltava ella, cruzando os braços sobre os seios, que lhe doiam entumecidos do leite.—Que ruim mãe eu fui!... Meu Deus, perdoae-me que eu sómente agora considero a grandeza do meu crime!

—Não chores assim!—atalhava o attribulado moço. Pois como andarias tu fugitiva com um filhinho de tres semanas! Ó Maria, por Deus te peço que nos não atormentemos! Ajuda-me a ser homem! Ampara-me, pela boa sorte do nosso filho te rogo que me ampares! Volta ao futuro os olhos de tua alma! Esperemos... luctemos, sejamos fortes, não nos deixemos acabar aos golpes d'esta saudade.

O Olho de Vidro

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