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II
Não era mãe!...

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No seguinte anno de 1698, o doutor Abreu, que nunca se descuidava de ter o ouvido fito aos rumores surdos da inquisição, recebeu mui secreto aviso de algum condiscipulo, que devia ser familiar do santo officio, qualidade com que o maior numero de medicos d'aquelle tempo se nobilitava; e tanto assim era, que algum medico, privado d'ella, dava a entender que pertencia mais ou menos á seita maldita; ou, como diziam, tinha uma, duas ou tres partes de judeu. O aviso mandava-o aperceber-se para trabalhos grandes.

Alvoroçado com a pavorosa nova, o doutor quiz logo sair da patria, e refugiar-se em Damasco, onde tinha um tio que exercitara em Portugal a profissão de boticario, no Fundão, até ao anno de 1652, em que fôra queimado o capitão Manuel Fernandes Villa-Real. Chamava-se o fugitivo Pedro Lopes.

Impediram-lhe ao doutor a precipitada fuga alguns parentes e amigos, que podiam bastante com os promotores do santo officio; recommendando-lhe, porém, que visitasse as egrejas com frequencia, e désse bem publicas demonstrações de sua piedade.

Assim o cumpriu o doutor Francisco Luiz, bem que sua mulher mui violentada se prestasse a uma ostentação hypocrita, da qual a credula israelita se penitenciava com muitos jejuns e orações.

Decorridos mezes, fez-se auto da fé, e n'elle saiu condemnado a prisão illimitada um Fernão Vaz Lucena, parente do doutor. A maxima culpa d'este christão novo era o ter-se descaminhado e caido nas mãos dos inquisidores uma carta em verso, que Pedro Lopes, tio de Francisco Luiz d'Abreu, lhe escrevêra de Damasco. Esta carta indirectamente ameaçava a tranquillidade do lente de Coimbra; e, por amor d'ella, se formara a tempestade em que os amigos do lente viam ao longe o raio, o qual urgia conjurar com visitas aos templos e tregeitos bem publicos de piedade.

Que perversa e impia carta seria aquella, em que os inquisidores acharam motivo para condemnarem Fernão Vaz Lucena a carcere perpetuo? N'um velho manuscripto que possuimos, chamado Memorias de Francisco Soares Nogueira, encontramos trasladada a carta, cuja copia não vem descabida ao ponto; e, se mais não vale, tem por si o merito de nos dizer como os boticarios hebreus conciliavam as letras amenas com a manipulação dos ingentes xaropes d'aquelle tempo, posto que nem sempre conciliassem a inspiração com a contagem das syllabas, segundo a arte poetica.

Dizia assim a carta:

Oh Fernando, oh Fernando,

até quando

ha de durar teu descudo,

entre o povo torpe e rudo?

Que serve estar aguardando?

Sabes a banda d'além...

e o que convem.

Quem se agarra, quem se afferra,

deixa o monte, deixa a serra,

e ao valle seguro vem.


Não vês como arde esse matto,

mentecato,

que pouco a industria val?

Antes que chegue ao casal,

levanta cabana e fato!

Não sejas aventureiro,

que o toureiro

sim (?), morre em seu officio. Mais val ter outro exercicio, que fundar em ser ligeiro. Por que não queres ser forro? Eu morro, por não haver quem te arranque! Se pódes vêr de palanque por que queres andar no corro? Tambem eu estive lá, e sei o que ha; tudo passei, tudo vi. Não se incerra o mundo ahi; melhor mundo vae por cá; o pão é cá mais ensôsso, e a carne sem chambão; tambem cá se ganha pão, e não com tanto sobr'ôsso. A gente é cá sem reima, de menos teima; a terra fructos produz, e o sol dá cá mais luz, posto que tanto não queima. Digo-te verdade mera: considera; e, se queres ter descanço, vem buscar o rio manso, foge do mar que se altera; foge do lago e da cova, cousa nova, e só n'isto me obedece. Mova-te o proprio interesse, quando o grão Deus te não mova; que os lobos como rodeiam sempre pream.

Divulgou-se a carta, depois do auto da fé. O doutor Abreu, assim que a viu, afervorou-se na frequencia de egrejas, batia nos peitos estrondosas punhadas, e ingranzava as contas das camaldulas, de modo que os ouvidos dos devotos podessem contar-lhe os quinze mysterios do rozario. Porém, como se a hypocrisia lhe não désse caução bastante segura, o lente de medicina, emquanto escoava os sonoros bogalhos, scismava no modo de fugir, sem dar ansa aos espias.

Apezar das camaldulas e dos protectores, a inquisição cada vez mais desconfiava da sinceridade do doutor; e o doutor, não menos vigilante que ella, cada hora, habilmente negociava a transferencia dos seus haveres ao estrangeiro.

O pequeno Braz era-lhe empêço. Não sabia elle se devia levar comsigo a creança. O perigo e o medo, concentrando-o no cogitar em salvar-se, tornava-o mais egoista em cuidados de si, e menos pensativo do futuro do pequeno. Francisca de Oliveira, por sua parte, queria muito á creança; mas não era bem o querer e amar maternal: faltava-lhe aquelle sentir-se viver, estremecer e morrer nas arterias do filho. Então lhe seria a ella bom de comprehender que sómente é mãe aquella que sentiu as dôres da maternidade.

—Que ha de fazer-se ao pequeno? onde o deixaremos?—perguntava Francisco Luiz á mulher.

—Se o podessemos levar sem difficuldade...

—Não podemos, por que eu já desconfio que nos será negado o passaporte. Temos de fugir; e escapar com uma creança desembaraçadamente ninguem o faz. Bem sabes que nossos avós matavam os filhos que lhes retardavam e denunciavam a fuga.

—Deixa-se em casa dos nossos parentes—tornava ella.

—Isso é sacrificar os nossos parentes; porque o rapaz é considerado meu filho—observou o doutor.

—Tenho uma boa idéa—ajuntou elle—entreguemol-o a Francisco de Moraes, de Villa Flor, que sabe a historia d'esta creança, e lhe ha de servir de pae com os sobejos da sua riqueza. Não ha tempo a perder. Vou escrever-lhe para Lisboa, e pedir-lhe que me espere por estes quinze dias.

Francisco de Moraes Taveira aceitou gratamente o encargo, tanto por lhe ser offerecido pelo doutor Abreu, como por ser o orphãosinho filho do desventurado israelita, que perdêra provavelmente a vida, quando cuidava ganhal-a com honra.

Desde que a resposta chegou, Francisca, olhando a face carinhosa da creança, chorava sempre. Quanto mais o estreitava ao peito, mais o menino lhe sorria, como se com afagos quizesse mitigar as angustias desconhecidas, que via no rosto lagrimoso de sua mãe. Já ella pedia ao marido que não deixasse o menino; vacillava já tambem o doutor; e, muito instado da esposa e do coração, que a si mesmo se reprehendia, deliberou resolver-se em Lisboa, segundo se lhe figurasse facil ou difficil a passagem para outro reino.

Nas ferias d'aquelle anno, o lente simulou uma jornada a Ourem, sua patria, e foi em direitura a Lisboa. O santo officio de Coimbra reparou na saida, e lançou pesquizas. Informaram-no de alguns processos de liquidação de patrimonios e venda de bens, que o doutor Abreu rapidamente negociára na terra de sua mulher. D'isto foi avisado o inquisidor geral, de modo que já em Lisboa o promotor instaurava processo, quando o lente alli chegou.

Avisado pelo medico mais convisinho dos segredos da inquisição, Francisco Luiz deu-se pressa em sair de Lisboa com destino a Inglaterra. Negaram-lhe passaporte. Aterrado d'esta contrariedade, significativa de maiores violencias, mudou de residencia para casa segura, que lhe dispoz o hebreu de Villa Flor.

A vigilancia dos esbirros estava attenta sobre os navios hollandezes principalmente, e pouco menos sobre quaesquer outros de commercio com portos estrangeiros. Francisco de Moraes, avassalando com ouro a piedade do piloto de uma nau portugueza destinada á India, introduziu no navio o doutor e sua mulher, considerados mercadores e proximos parentes do piloto. As arcas de suas preciosidades entraram com os passageiros; tudo que mais e menos caro lhes era foi com elles, exceptuado o pequenino Braz, que dormia á hora em que elles partiram, e nem acordou ao cair-lhe nas faces as lagrimas dos seus bemfeitores.

Ao amanhecer-lhe o dia seguinte, Braz perguntou pela mãe. Ai! se ella o fosse, não perguntaria o desamparadinho por sua mãe.

Respondeu-lhe um moço de vinte annos, que os seus amigos tinham ido fóra de Lisboa, e voltariam passados alguns dias. A creança chorou em silencio, como quem conhecia que o prantear-se seria desagradecer as caricias que lhe fazia o filho de Francisco de Moraes.

Era elle o mancebo que o hebreu de Villa Flor fôra buscar a Amsterdam.

Heitor Dias da Paz distrahia a creança de seis annos com brinquedos proprios da meninice. Parecia que um ao outro se estavam divertindo. Heitor quiz instituir-se mestre do a b c do pequeno; mas as graças infantis do discipulo encantavam-no por maneira, que era coisa de muito rir vêl-os ambos despegarem do alphabeto para se andarem correndo pela casa no jogo dos esconderêlos.

Dentro em pouco, as lembranças dos fugitivos hebreus eram apenas brevissima tristeza de saudade na memoria de Braz.

Heitor, desejoso de ver a terra do seu nascimento, foi para Villa Flor, e levou comsigo o menino. Francisco de Moraes, por mêdo de que, n'alguma hora, a inquisição lhe quizesse galardoar a astucia no escape do sobrinho de Pedro Lopes, accendendo em honra d'elle as santas rezinas da fé, tratou de sumir-se na sua provincia, dando-se por cançado de amontoar riquezas.

Assim se reuniram em felicidade ainda não experimentada, os paes de Heitor, contando como elemento de sua boa sorte a posse do orphão, que, de muito amado que era, não sentia falta dos seus primeiros amparadores.

O Olho de Vidro

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