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Corria o anno de 1697.

Francisco Luiz d'Abreu, doutor em medicina, mudára sua residencia para Coimbra, esperançado em entrar no magisterio, conforme lh'o promettiam sua capacidade, vasto saber e creditos. Tinha casado, quatro annos antes, com Francisca Rodrigues de Oliveira, filha de abastados judeus de Ourem. Não tinham filhos; mas dos braços de um ao outro saltava um menino de cinco annos, chamado Braz, acariciado com blandicias de filho. A creança tratava de padrinho o doutor, e á senhora chamava mãe. A esposa do medico, privada do goso de se ver assim amimada nos labios de anjo desentranhado de seu seio, jubilava de lhe ouvir aquelle doce nome de mãe, e toda se estremecia de maternal ternura chamando-lhe seu filho.

Grande numero de pessoas relacionadas com Francisco Luiz, presumia que o pequenino Braz era filho natural d'elle, e que Francisca de Oliveira, bem que israelita e perfida ao sacramento do baptismo, alojava no peito entranhas tão christãs que levara para sua companhia o menino, e lhe queria até á extremidade de lhe chamar filho, e consentir que elle lhe chamasse mãe.

Exceptuada a amoravel esposa do doutor, ninguem sabia em Portugal quem fossem os paes d'aquella creança. A ama, que a tinha amamentado, morrêra; e a pobre gente, que lhe assistira ao nascimento, ignorava o destino d'elle.

Um dia, como a creança, antes de ir-se á cama, entrasse a beijar a mão do padrinho, Francisca beijou-a nas faces, e disse-lhe:

—Não tornes a chamar padrinho ao teu amigo; chama-lhe pae, sim, Braz?

—Pois sim, mãesinha—disse a creança, e saiu pela mão da creada.

Francisca proseguiu:

—Pois não é assim melhor?! Acabamos de nos convencer que elle é nosso filho.

—Ó menina, respondeu o marido—esse convencimento parece-me difficil...

—Nosso filho gerado no coração...—tornou ella.

—Isso lá, sim; d'esse modo já eu o perfilhei; mas o peior é que ámanhã podem apparecer ahi umas entranhas menos phantasticas do que a tua maternidade de coração a reclamarem o que é seu legitimamente.

—Pois tu cuidas que elles voltam cá?! Podes ainda imaginar que elles vivem? Ha tres annos que não temos uma carta d'elles!

—Mas tambem não recebemos a certidão de obito.

—Pois sim,—redarguiu Francisca—mas, se elles vivessem, as pessoas de Hollanda, a quem tu tens pedido tantas vezes novas d'elles; não t'as dariam, ainda mesmo que lhe não soubessem os verdadeiros nomes?!

—Acho-te razão; porém, custa-me a crer que elles tenham morrido ambos. O mais certo é o que eu tantas vezes te tenho dito...

—Que Fernão Cabral tem recebido as cartas que elles te escrevem?

—Sim.

—Não creio. Tu recebes cartas de Amsterdam, de Londres e de toda a parte. Se te subtrahissem umas, iam todas, homem. Cá, ninguem me tira a mim da cabeça, que elles morreram em naufragio, ou os sicarios do fidalgo os mataram lá por fóra, ou... quem sabe?... a tamanho apuro de desgraça chegariam, que se dessem a si a morte, como no seculo passado succedeu com tantos irmãos nossos.

—Póde ser—obtemperou Francisco Luiz;—mas teriam coragem de matar-se uns paes que deixavam esta creança?!... Não é possivel! A ultima carta, que recebi de Antonio, aqui está—disse elle, tirando-a do segredo de uma gaveta—é de 4 de outubro de 1694. Escreve-me de Marselha. Não se queixa de mingua de recursos. Revela uma certa seguridade de espirito, que é signal de boas avenças com as miserias da vida. Diz que está em arranjos com alguns hebreus, filhos e netos de portuguezes, para se trasladarem com suas familias para uma colonia franceza, que, diz elle, talvez seja a de S. Domingos. Promette escrever-me quando se houver definitivamente resolvido, e depois...

—Mais nada—atalhou Francisca—Ora, no Canadá, já sabemos que elles não estão. N'outras colonias, tambem tu já sabes que ninguem os viu. Que havemos de pensar d'isto? Que se ha de suppor depois do silencio de tres annos?

—Que as cartas me são roubadas—insistiu o doutor.

—E tu a teimar, homem!... Oxalá que eu me engane; mas, se adivinho, Deus sabe que o menino está amparado, e que ha de ser sempre meu filho, ainda que o senhor me dê muitos filhos.

—Suicidarem-se!—proseguiu Francisco de Abreu, que parecia, de absorvido em suas cogitações, não ouvir a esposa—Suicidarem-se não póde ser... Antonio Mourão graduou-se em medicina em Paris ha quatro annos, e de lá passou para Hollanda. Um medico não chega a encarar com tão feia miseria que lhe quebre o animo, ao extremo de o anniquilar. Antonio em qualquer parte acharia pão, ainda que fosse máo physico; porém, com os talentos d'elle, não posso conceber máo medico. Seja o que fôr, Francisca. Eu espero ainda haver novas por alguns hebreus de Marselha. Hei de perguntar em que época e em que navios sairam colonos, e para onde sairam. Não o fiz até agora por medo que as minhas cartas andem espiadas, e vão dar ás mãos de Fernão Cabral. Mas vou escrever ao nosso amigo Francisco de Moraes Taveira, que está em Lisboa de viagem para França, e pedir-lhe que indague quanto poder dos nossos irmãos de Marselha o destino dos colonos, com os quaes saiu Antonio de Sá Mourão.

Francisca entrou á alcova do menino, e sentou-se-lhe á beira do catre a contemplal-o adormecido em sonhos, que lhe sorriam, a espaços, na rosa entre-aberta dos labios.

Francisco Luiz de Abreu ficou escrevendo largas paginas ao seu amigo Francisco de Moraes, hebreu abastadissimo de Villa Flor, commerciante de pedras preciosas, que traficava nas principaes cidades de Europa e Asia.

Na volta do correio, Francisco de Moraes asseverou ao doutor que chegado a França, iria indagar pessoalmente a Marselha, e não pouparia despezas com os informadores que o satisfizessem. E, por esta occasião, lhe noticiava que fazia conta de trazer de Hollanda seu filho Heitor, que lá se estava educando em humanidades com seus tios, para estudar medicina em Coimbra; e, a tal respeito, accrescentava: «Não sei se érro em trazer o rapaz para Portugal; mas a mãe insta, chora, e definha-se a termos que receio que me ella morra. Seja o que Deus quizer. Aconselhar-lhe-hei o que lhe cumpre fazer, e espero que elle, por obediencia e desejo da vida, me attenda.»

Francisco Luiz deu-se logo pressa em pedir ao hebreu que não trouxesse para Portugal, como victima amarrada para o açougue, o pobre rapaz que lá fóra vivia sem receio da polé e da fogueira. Pintava-lhe, sem encarecimento, os perigos que ameaçavam em Portugal um rapaz creado e educado entre israelitas doutos, e com elles affeito a dizer alto e destemidamente o seu pensar em coisas de religião. Recordava-lhe as numerosas victimas da inquisição, que preferiram morrer a desconfessar sua fé, antepondo a gloria do martyrio da idéa herdada de avós á hypocrisia de aceitarem apparentemente a religião dos carniceiros filhos de Domingos de Gusmão. Lembrava-lhe a sublime coragem de Manuel Fernandes Villa Real, consul portuguez em Paris, e, não obstante, garrotado e queimado na praça da Ribeira em Lisboa no anno de 1652. Lembrava-lhe o lente de Coimbra Antonio Homem, queimado em 1624, e o advogado Miguel Henriques da Fonseca, Pedro Serrão3 e outros, cuja inflexibilidade de caracter, comquanto perpetuasse honrada memoria, lhes custou affrontosissima morte, e deixou aberta por muito tempo amarga torrente de lagrimas.

As reflexões do medico abalaram o judeu; mas não lhe demudaram a tenção. Era Heitor, filho unico, herdeiro de grandes haveres; queria voltar á patria, onde o chamavam saudades de menino; tinha por si as lagrimas e instancias da mãe; promettia ser discreto e hypocrita; queixava-se do clima de Hollanda e de febres quartans. O pae era sósinho a querel-o afastado de Portugal, e assim mesmo andava em lucta comsigo mesmo, até que deliberou trazel-o de volta da sua excursão mercantil a França e outras nações.

De Marselha escreveu Francisco de Moraes informando o seu amigo Abreu. Dizia que Antonio de Sá Mourão, convidado com grandes lucros a ir estabelecer-se como medico no Canadá, ou Nova França, aceitara a proposta, e embarcara com sua mulher, resolvido a enriquecer-se no prosperado trafico dos pellames. Ajuntava que um dos tres navios, carregados de colonos, batido pela tormenta, se esgarrara do rumo, e fôra a pique na costa de S. Domingos, a tempo que duas galeotas de flibusteiros, conhecidos como demonios do mar, na linguagem da peninsula britannica, faziam aguada n'uma bahia d'aquella infamada costa, onde poucos annos antes haviam naufragado tres naus francezas, capitaneadas pelo audacissimo colonisador Robert Cavalier de la Salle. Ajuntava o informador que n'aquelle navio perdido iam fatalmente o medico e sua mulher, com muitas pessoas das mais graudas da colonia, algumas das quaes se presumia que tinham caido nas mãos dos flibusteiros segundo informações de um galeão hespanhol, que das pessoas embarcadas no navio perdido, até áquella hora, não viera noticia a França.

Francisco d'Abreu, lendo a carta, disse á esposa.

—Tinhas adivinhado desgraçadamente! O nosso Braz já não tem pae nem mãe. Agora podemos dispor do futuro d'esta creança. Vê tu que funesto remate houveram aquelles amores do meu pobre Antonio! Já não ha duvidar... Estão mortos! Batam as mãos os gallileos, e folguem de ver que vingaram as ondas o que as lavaredas não poderam! Oh!... que vontade eu tenho de banhar o rosto d'este menino com as minhas lagrimas, e contar-lhe as desgraças de seus paes.

—Não—atalhou Francisca—não lhe digas nada; não digas! Que lucra elle em saber isso?... Vaes semear-lhe no coração odios e paixões que, no futuro, lhe podem ser a sua perdição. Nem se quer lhe digas em tempo algum que seu pae era judeu. Quebremos-lhe, se podermos, este condão funesto!

O Olho de Vidro

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