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No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum.

DO soçobro tornando a aflita mente,

Que da cópia infelice contristado

3 Havia tanto o padecer pungente,

Achei-me novamente circundado

De outros míseros, de outras amarguras,

6 Que via em toda parte, ao longe e ao lado.

Sou no terceiro círculo, onde escuras,

Eternas chuvas, gélidas caíam,

9 Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.

Saraiva grossa, neve, água desciam

Desse ar pelas alturas tenebrosas:

12 No chão caindo infeto odor faziam.

Latia com três fauces temerosas,

Cérbero, o cão multíface e furente,

15 Contra as turbas submersas, criminosas.

Sanguíneos olhos tem, o ventre ingente,

Barba esquálida, as mãos de unhas armadas;

18 Rasga, esfola, atassalha a triste gente.

Uivam à chuva, quais lebréus, coitados!

Mudam de lado sem cessar, buscando

21 Defensa e alívio, as almas condenadas.

Cérbero, o grão réptil, nos divisando

Os dentes mostra, as bocas escancara,

24 De sanha os membros todos convulsando.

Meu Guia, as mãos abrindo, se prepara:

Enche-as de terra, e às guelas devorantes

27 Lança da fera essa iguaria amara.

Qual mastim, que em latidos retumbantes

Brada de fome, e, apenas a sacia

30 Devorando, aquieta as iras de antes:

Tal, aplacando a fúria, parecia

O demônio que as almas atordoa:

33 Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.

O solo, onde pisamos, se povoa

Das sombras, que essas chuvas derrubavam:

36 Forma e aparência tinham de pessoa.

Sobre a terra estendidas, a alastravam;

Mas uma surge, súbito sentada,

39 Aos passos que adiante nos levavam.

“Tu” — disse — “que és guiado pela estrada

Do inferno, vê se acaso me conheces:

42 Nasceste antes de eu ser nesta morada”.

Tornei-lhe: “A grande angústia em que padeces,

Tua feição lembrar-me não consente:

45 Inota face aos olhos me ofereces.

“Quem és que em tal lugar tão duramente

Pelos pecados teus stás dando a pena?

48 Se há maior, nenhuma é tão displicente”. —

— “Em tua pátria” — responde — “que tão plena

Já é de inveja, que transborda o saco,

51 Existência gozei leda e serena.

“Vós, Florentinos, me chamastes Ciacco:

Por ter da gula a intemperança amado,

54 À chuva peno enregelado e fraco.

“Mas sou nesta miséria acompanhado;

Pois quantos aqui estão de igual castigo

57 Punidos foram por igual pecado”. —

— “Com dor sincera” — lhe falei — “te digo

Que esse tormento o peito me enternece.

60 Saberás se os partidos a perigo

“Florença levarão, que já padece?

Algum justo ali vive? A que motivo

63 A cizânia se deve, que ali cresce?” —

— “Virão a sangue após ódio excessivo;

E o partido selvagem triunfante

66 O outro lançará feroz e esquivo.

“Três sóis passados, chegará o instante

De ser pelos vencidos suplantado,

69 Que esforça alguém, que aos dois faz bom semblante.

“Por algum tempo o vencedor ousado

A cerviz calcará do outro partido

72 Que se aflige oprimido e envergonhado.

“Justos há dois: ninguém lhes presta ouvido.

Três brandões — Avareza, Orgulho, Inveja,

75 Incêndio têm nos peitos acendido”. —

Assim a flébil narração boqueja.

Eu lhe respondo: “A informação completa;

78 Favor farás a quem te ouvir almeja.

“Farinata e Tegghiaio, de alma reta,

Jacopo Rusticucci, Mosca, Arrigo,

81 E os mais que da virtude o amor inquieta,

“Onde estão? Diz e franco sê comigo!

Saber qual seja anelo a sorte sua:

84 Stão no céu, ou no inferno têm castigo?” —

“Entre os que sofrem punição mais crua

Estão, por seus maus feitos, lá no fundo:

87 Se lá desces, verão a face tua.

“Quando tomares ao saudoso mundo,

De mim aviva aos meus o pensamento...

90 Não mais: volto ao silêncio meu profundo” —

Os olhos que não tinham movimento,

Torcendo fita em mim; já curva a frente

93 E cai entre os mais cegos num momento.

E disse, o Vate: “Em sono permanente

Hão de aguardar a angélica chamada,

96 Quando os julgar severo o Onipotente.

“Cad’um, a triste sepultura achada,

Ressurgindo na carne e na figura,

99 Voz ouvirá pra sempre reboada”. —

A passo lento assim pela mistura

Das sombras e da chuva caminhando,

102 Falávamos da vida, que é futura.

— “Mestre” — lhe disse então — “irá medrando

Depois da grã sentença esse tormento?

105 Igual pungir terá? Será mais brando?” —

— “Do teu saber recorre ao documento:

Verás que ao ente quando mais se eleva

108 Do bem, da dor mais cresce o sentimento.

“Bem que esta raça condenada à treva

Jamais da perfeição se eleve à altura

111 Ressurgindo, há de ter pena mais seva”. —

Perlustramos do círculo a cintura,

De cousas praticando que não digo,

Té descer um degrau na estância escura.

115 Ali’stá Pluto, o nosso grande imigo.

14. Cérbero, monstro, meio cão, meio dragão, com três cabeças, que, segundo a mitologia antiga, estava à guarda do inferno. — 52. Ciacco, parasita florentino. — 65. O partido selvagem, os Brancos. — 80. Farinata etc., nomes de florentinos ilustres.

Dante Alighieri: A Divina Comédia

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