Читать книгу O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - Eca de Queiros - Страница 10
IV
ОглавлениеEscrevo-lhe hoje fatigado, e nervoso. Todo este obscuro negocio em que me acho envolvido, o vago perigo que me cerca, a mesma tensão de espírito em que estou para comprehender a secreta verdade d'esta aventura, os habitos da minha vida repousada subitamente exaltados,—tudo isto me dá um estado de irritação morbida que me aniquilla.
Logo que vi o cadaver perguntei violentamente:
—Que quer isto dizer, meus senhores?
Um dos mascarados, o mais alto, respondeu:
—Não ha tempo para explicações. Perdôem ter sido enganados! Pelo amor de Deus, doutor, veja esse homem. Quem tem? Está morto? Está adormecido com algum narcotico?
Dizia estas palavras com uma voz tão instante, tão dolorosamente interrogativa que eu, dominado pelo imprevisto d'aquella situação, approximei-me do cadaver, e examinei-o.
Estava deitado n'uma chaise-longue, com a cabeça pousada n'uma almofada, as pernas ligeiramente cruzadas, um dos braços curvado descançando no peito, o outro pendente e a mão inerte assente sobre o chão. Não tinha golpe, contusão, ferimento, ou extravasamento de sangue; não tinha signaes de congestão, nem vestigios de estrangulação. A expressão da physionomia não denotava soffrimento, contracção ou dôr. Os olhos cerrados frouxamente, eram como n'um somno leve. Estava frio e livido.
Não quero aqui fazer a historia do que encontrei no cadaver. Seria embaraçar esta narração concisa com explicações scientificas. Mesmo sem exames detidos, e sem os elementos de apreciação que só podem fornecer a analyse ou a autopsia, pareceu-me que aquelle homem estava sob a influencia já mortal de um narcotico, que não era tempo de dominar.
—Que bebeu elle? perguntei, com uma curiosidade exclusivamente medica.
Não pensava então em crime nem na mysteriosa aventura que ali me prendia; queria só ter uma historia progressiva dos factos que tinham determinado a narcotisação.
Um dos mascarados mostrou-me um copo que estava ao pé da chaise-longue sobre uma cadeira de estofo.
—Não sei, disse elle, talvez aquillo.
O que havia no copo era evidentemente opio.
—Este homem está morto, disse eu.
—Morto! repetiu um d'elles, tremendo.
Ergui as palpebras do cadaver, os olhos tinham uma dilatação fixa, horrivel.
Eu fitei-os então um por um e disse-lhes serenamente:
—Ignoro o motivo porque vim aqui; como medico d'um doente sou inutil; como testemunha posso ser perigoso.
Um dos mascarados veiu para mim e com a voz insinuante, e grave:
—Escute, crê em sua consciencia que esse homem esteja morto?
—De certo.
—E qual pensa que fosse a causa da morte?
—O opio; mas creio que devem sabel-o melhor do que eu os que andam mascarados surprehendendo gente pela estrada de Cintra.
Eu estava irritado, queria provocar algum desenlace definitivo que cortasse os embaraços da minha situação.
—Perdão, disse um, e ha que tempo suppõe que esse homem esteja morto?
Não respondi, puz o chapeu na cabeça e comecei a calçar as luvas. F… junto da janella batia o pé impaciente. Houve um silencio.
Aquelle quarto pesado de estofos, o cadaver estendido com reflexos lividos na face, os vultos mascarados, o socego lugubre do logar, as luzes claras, tudo dava áquelle momento um aspecto profundamente sinistro.
—Meus senhores, disse então lentamente um dos mascarados, o mais alto, o que tinha guiado a carruagem—comprehendem perfeitamente, que se nós tivessemos morto este homem sabiamos bem que um medico era inutil, e uma testemunha importuna! Desconfiavamos, é claro, que estava sob a acção de um narcotico, mas queriamos adquirir a certeza da morte. Por isso os trouxemos. A respeito do crime estamos tão ignorantes como os senhores. Se não entregamos este caso á policia, se cercámos de mysterio e de violencia a sua visita a esta casa, se lhes vendámos os olhos, é porque receavamos que as indagações que se podessem fazer, conduzissem a descobrir, como criminoso ou como cumplice, alguem que nós temos em nossa honra salvar; se lhes damos estas explicações…
—Essas explicações são absurdas! gritou F. Aqui ha um crime; este homem está morto, os senhores, mascarados; esta casa parece solitaria, nós achamo-nos aqui violentados, e todas estas circumstancias teem um mysterio tão revoltante, uma feição tão criminosa, que não queremos nem pelo mais leve acto, nem pela mais involuntaria assistencia, ser parte n'este negocio. Não temos aqui nada que fazer; queiram abrir aquella porta.
Com a violencia dos seus gestos, um dos mascarados riu.
—Ah! os senhores escarnecem! gritou F…
E arremessando-se violentamente contra a janella, ia fazer saltar os fechos. Mas dois dos mascarados arrojaram-se poderosamente sobre elle, curvaram-n'o, arrastaram-n'o até uma poltrona, e deixaram-n'o cair, offegante, tremulo de desespero.
Eu tinha ficado sentado e impassivel.
—Meus senhores, observei, notem que emquanto o meu amigo protesta pela colera, eu protesto pelo tedio.
E accendi um charuto.
—Mas com os diabos! tomam-nos por assassinos! gritou um violentamente. Não se crê na honra, na palavra de um homem! Se vocês não tiram a mascara, tiro-a eu! É necessario que nos vejam! Não quero, nem escondido por um pedaço de cartão, passar por assassino!… Senhores! dou-lhes a minha palavra que ignoro quem matou este homem!
E fez um gesto furioso. N'este movimento, a mascara desapertou-se, descahindo. Elle voltou-se rapidamente, levando as mãos abertas ao rosto. Foi um movimento instinctivo, irreflectido, de desesperação. Os outros cercaram-n'o, olhando rapidamente para F…, que tinha ficado impassivel. Um dos mascarados, que não tinha ainda falado, o que na carruagem viera defronte de mim, a todo o momento observava o meu amigo com receio, com suspeita. Houve um longo silencio. Os mascarados, a um canto, fallavam baixo. Eu no emtanto examinava a sala.
Era pequena, forrada de seda em pregas, com um tapete molle, espesso, bom para correr com os pés nús. O estofo dos moveis era de seda vermelha com uma barra verde, unica e transversal, como têem na antiga heraldica os brasões dos bastardos. As cortinas das janellas pendiam em pregas amplas e suaves. Havia vasos de jaspe, e um aroma tepido e penetrante, onde se sentia a verbena e o perfume de marechala.
O homem que estava morto era moço, de perfil sympathico e fino, de bigode louro. Tinha o casaco e collete despidos, e o largo peitilho da camisa reluzia com botões de perolas; a calça era estreita, bem talhada, de uma côr clara. Tinha apenas calçado um sapato de verniz; as meias eram de seda em grandes quadrados brancos e cinzentos.
Pella physionomia, pela construcção, pelo corte e côr do cabello, aquelle homem parecia inglez.
Ao fundo da sala via-se um reposteiro largo, pesado, cuidadosamente corrido. Parecia-me ser uma alcova. Notei admirado que apesar do extremo luxo, d'um aroma que andava no ar e uma sensação tépida que dão todos os logares onde ordinariamente se está, se falla e se vive, aquelle quarto não parecia habitado; não havia um livro, um casaco sobre uma cadeira, umas luvas cahidas, alguma d'estas mil pequenas coisas confusas, que demonstram a vida e os seus incidentes triviaes.
F…, tinha-se approximado de mim.
—Conheceste aquelle a quem caiu a mascara? perguntei.
—Não. Conheceste?
—Tambem não. Ha um que ainda não fallou, que está sempre olhando para ti.
Receia que o conheças, é teu amigo talvez, não o percas de vista.
Um dos mascarados approximou-se, perguntando:
—Quanto tempo póde ficar o corpo assim n'esta chaise-longue?
Eu não respondi. O que me interrogou fez um movimento colerico, mas conteve-se. N'este momento o mascarado mais alto, que tinha saido, entrara, dizendo para os outros:
—Prompto!…
Houve uma pausa; ouvia-se o bater da pendula e os passos de F…, que passeiava agitado, com o sobrolho duro, torcendo o bigode.
—Meus senhores, continuou voltando-se para nós o mascarado—damos-lhe a nossa palavra de honra que somos completamente estranhos a este successo. Sobre isto não damos explicações. Desde este momento os senhores estão retidos aqui. Imaginem que somos assassinos, moedeiros falsos ou ladrões, tudo o que quizerem. Imaginem que estão aqui pela violencia, pela corrupção, pela astucia, ou pela força da lei… como entenderem! O facto é que ficam até amanhã. O seu quarto—disse-me—é n'aquella alcova, e o seu—apontou para F.—lá dentro. Eu fico comsigo, doutor, n'este sofá. Um dos meus amigos será lá dentro o criado de quarto do seu amigo. Ámanhã despedimo-nos amigavelmente e podem dar parte á policia ou escrever para os jornaes.
Calou-se. Estas palavras tinham sido ditas com tranquillidade. Não respondemos.
Os mascarados, em quem se percebia um certo embaraço, uma evidente falta de serenidade, conversavam baixo, a um canto do quarto, junto da alcova. Eu passeava. N'uma das voltas que dava pelo quarto, vi casualmente, perto d'uma poltrona, uma coisa branca similhante a um lenço. Passei defronte da poltrona, deixei voluntariamente cair o meu lenço, e no movimento que fiz para o apanhar, lancei despercebidamente mão do objecto caido. Era effectivamente um lenço. Guardei-o, apalpei-o no bolso com grande delicadeza de tacto; era fino, com rendas, um lenço de mulher. Parecia ter bordadas uma firma e uma corôa.
N'este momento deram nove horas. Um dos mascarados exclamou, dirigindo-se a F…
—Vou mostrar-lhe o seu quarto. Desculpe-me, mas é necessario vendar-lhe os olhos.
F. tomou altivamente o lenço das mãos do mascarado, cobriu elle mesmo os olhos, e sairam.
Fiquei só com o mascarado alto, que tinha a voz sympathica e attrahente.
Perguntou-me se queria jantar. Comquanto lhe respondesse negativamente, elle abriu uma mesa, trouxe um cabaz em que havia algumas comidas frias. Bebi apenas um copo d'agua. Elle comeu.
Lentamente, gradualmente, começámos a conversar quasi em amizade. Eu sou naturalmente expansivo, o silencio pesava-me. Elle era instruido, tinha viajado e tinha lido.
De repente, pouco depois da uma hora da noite, sentimos na escada um andar leve e cauteloso, e logo alguem tocar na porta do quarto onde estavamos. O mascarado tinha ao entrar tirado a chave e havia-a guardado no bolso. Erguemo-nos sobresaltados. O cadaver achava-se coberto. O mascarado apagou as luzes.
Eu estava aterrado. O silencio era profundo; ouvia-se apenas o ruido das chaves que a pessoa que estava fóra ás escuras procurava introduzir na fechadura.
Nós, immoveis, não respiravamos.
Finalmente a porta abriu-se, alguem entrou, fechou-a, accendeu um phosphoro, olhou. Então vendo-nos, deu um grito e caiu no chão, immovel, com os braços estendidos.
Ámanhã, mais socegado e claro de recordações, direi o que se seguiu.
* * * * *
P.S.—Uma circumstancia que póde esclarecer sobre a rua e o sitio da casa: De noite senti passarem duas pessoas, uma tocando guitarra, outra cantando o fado. Devia ser meia noite. O que cantava dizia esta quadra:
Escrevi uma carta a Cupido
A mandar-lhe perguntar
Se um coração offendido…
Não me lembra o resto. Se as pessoas que passaram, tocando e cantando, lerem esta carta, prestarão um notavel esclarecimento dizendo em que rua passavam, e defronte de que casa, quando cantaram aquellas rymas populares.