Читать книгу O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - Eca de Queiros - Страница 9
III
ОглавлениеPercebi que saltava da almofada o nosso cocheiro. Ouvi abrir successivamente as duas lanternas e raspar um phosphoro na roda. Senti depois estalir a mola que comprime a portinha que se fecha depois de accender as velas, e rangerem nos anneis dos cachimbos os pés das lanternas como se as estivessem endireitando.
Não comprehendí logo a razão porque nos tivessemos detido para similhante fim, quando não tinha caído a noite e íamos por bom caminho.
Isto porém explica-se por um requinte de precaução. A pessoa que nos servia de cocheiro não quereria parar em logar onde houvesse gente. Se tivessemos de atravessar uma povoação, as luzes que principiassem a accender-se e que nós veriamos atravez da cortina ou das fendas dos stores, poderiam dar-nos alguma idéa do sitio em que nos achassemos. Por esta fórma esse meio de investigação desapparecia. Ao passarmos entre predios ou muros mais altos, a projecção da luz forte das lanternas sobre as paredes e a reflexão d'essa claridade para dentro do trem impossibilitava-nos de distinguir se atravessavamos uma aldeia ou uma rua illuminada.
Logo que a carruagem começou a rodar depois de accezas as lanternas, aquelle dos nossos companheiros que promettera explicar a F… a razão porque elle nos acompanhava, prosseguiu:
—O amante da senhora a quem me refiro, imagine que sou eu. Sabem-no unicamente n'este mundo tres amigos meus, amigos intimos, companheiros de infancia, camaradas de estudo, tendo vivido sempre juntos, estando cada um constantemente prompto a prestar aos outros os derradeiros sacrificios que póde impôr a amizade. Entre os nossos companheiros não havia um medico. Era mister obtel-o e era ao mesmo tempo indispensavel que não passasse a outrem, quem quer que fosse, o meu segredo, em que estão envoltos o amor de um homem e a honra de uma senhora. O meu filho nascerá provavelmente esta noite ou ámanhã pela manhã; não devendo saber ninguem quem é sua mãe, não devendo sequer por algum indicio vir a suspeitar um dia quem ella seja, é preciso que o doutor ignore quem são as pessoas com quem falla, e qual é a casa em que vae entrar. Eis o motivo por que nós temos no rosto uma mascara; eis o motivo porque os senhores nos hão de permittir que continuemos a ter cerrada esta carruagem, e que lhes vendemos os olhos antes de os apearmos defronte do predio a que vão subir. Agora comprehende, continuou elle dirigindo-se a F…, a razão por que nos acompanha. Era-nos impossivel evitar que o senhor viesse hoje de Cintra com o seu amigo, era-nos impossivel adiar esta visita, e era-nos impossivel tambem deixal-o no ponto da estrada em que tomámos o doutor. O senhor acharia facilmente meio de nos seguir e de descobrir quem somos.
—A lembrança, notei eu, é engenhosa mas não lisongeira para a minha discrição.
—A confiança na discrição alheia é uma traição ao segredo que nos não pertence.
F… achava-se inteiramente d'accordo com esta maneira de ver, e disse-o elogiando o espírito da aventura romanesca dos mascarados.
As palavras de F… accentuadas com sinceridade e com affecto, pareceu-me que perturbaram algum tanto o desconhecido. Figurou-se-me que esperava discutir mais tempo para conseguir persuadir-nos e que o desnorteava e surprehendia desagradavelmente esse córte imprevisto. Elle, que tinha a replica prompta e a palavra facil, não achou que retorquir á confiança com que o tratavam, e guardou, desde esse momento até que chegámos, um silencio que devia pezar ás suas tendencias expansivas e discursadoras.
É verdade que pouco depois d'este dialogo o trem deixou a estrada de macadam em que até ahi rodara e entrou n'um caminho vicinal ou n'um atalho. O solo era pedregoso e esburacado; os solavancos da carruagem, que seguia sempre a galope governada por mão de mestre, e o estrepito dos stores embatendo nos caixilhos mal permittiriam conversar.
Tornámos por fim a entrar n'uma estrada lisa. A carruagem parou ainda uma segunda vez, o cocheiro apeou rapidamente, dizendo:
—Lá vou!
Voltou pouco depois, e eu ouvi alguem que dizia:
—Vão com raparigas para Lisboa.
O trem prosseguiu.
Seria uma barreira da cidade? Inventaria o que nos guiava um pretexto plausível para que os guardas nos não abrissem a portinhola? Entender-se-hia com os meus companheiros a phrase que eu ouvira?
Não posso dizel-o com certeza.
A carruagem entrou logo depois n'um pavimento lageado e d'ahi a dois ou tres minutos parou. O cocheiro bateu no vidro, e disse:
—Chegámos.
O mascardo que não tornara a pronunciar uma palavra desde o momento que acima indiquei, tirou um lenço da algibeira e disse-nos com alguma commoção:
—Tenham paciencia! perdôem-m'o… Assim é preciso!
F… approximou o rosto, e elle vendou-lhe os olhos. Eu fui egualmente vendado pelo que estava em frente de mim.
Apeámo-nos em seguida e entrámos n'um corredor conduzidos pela mão dos nossos companheiros. Era um corredor estreito segundo pude deduzir do modo por que nos encontrámos e démos passagem a alguem que sahia. Quem quer que era disse:
—Levo o trem?
A voz do que nos guiara respondeu:
—Leva.
Demorámo-nos um momento. A porta por onde haviamos entrado foi fechada á chave, e o que nos servira de cocheiro passou para diante dizendo:
—Vamos!
Démos alguns passos, subimos dois degraus de pedra, tomámos á direita e entrámos na escada. Era de madeira, ingreme e velha, coberta com um tapete estreito. Os degraus estavam desgastados pelos pés, eram ondeados na superficie e esbatidos e arredondados nas saliencias primitivamente angulosas. Ao longo da parede, do meu lado, corria uma corda, que servia de corrimão; era de seda e denotava ao tacto pouco uso. Respirava-se um ar humido e impregnado das exhalações interiores dos predios deshabitados. Subimos oito ou dez degraus, tomámos á esquerda n'um patamar, subimos ainda outros degraus e parámos n'um primeiro andar.
Ninguem tinha proferido uma palavra, e havia o que quer que fosse de lugubre n'este silencio que nos envolvia como uma nuvem de tristeza.
Ouvi então a nossa carruagem que se affastava, e senti uma suppressão, uma especie de sobresalto pueril.
Em seguida rangeu uma fechadura e transpozemos o limiar de uma porta, que foi outra vez fechada á chave depois de havermos entrado.
—Podem tirar os lenços, disse-me um dos nossos companheiros.
Descobri os olhos. Era noite.
Um dos mascarados raspou um phosphoro, accendeu cinco velas n'uma serpentina de bronze, pegou na serpentina, approximou-se de um movel que estava coberto com uma manta de viagem, e levantou a manta.
Não pude conter a commoção que senti, e soltei um grito de horror.
O que eu tinha diante de mim era o cadaver de um homem.