Читать книгу O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - Eca de Queiros - Страница 8
II
ОглавлениеJulho, 24 de 1870—Acabo de ver a carta que lhe dirigi publicada integralmente por v. no logar destinado ao folhetim do seu periodico. Em vista da collocação dada ao meu escripto procurarei nas cartas que houver de lhe dirigir não ultrapassar os limites demarcados a esta secção do jornal.
Por esquecimento não datei a carta antecedente, ficando assim duvidoso qual o dia em que fomos surprehendidos na estrada de Cintra. Foi quarta feira, 20 do corrente mez de julho.
Passo de prompto a contar-lhe o que se passou no trem, especificando minuciosamente todos os pormenores e tentando reconstruir o dialogo que travámos, tanto quanto me seja possivel com as mesmas palavras que n'elle se empregaram.
A carruagem partiu na direcção de Cintra. Presumo porém que deu na estrada algumas voltas, muito largas e bem dadas porque se não presentiram pela intercadencia da velocidade no passo dos cavallos. Levaram-me a suppol-o, em primeiro logar as differenças de declive no nivel do terreno, com quanto estivessemos rodando sempre em uma estrada macadamisada e lisa; em segundo logar umas leves alterações na quantidade de luz que havia dentro do coupé coada pela cortina de seda verde, o que me indicava que o trem passava por encontradas exposições com rellação ao sol que se escondia no horisonte.
Havia evidentemente o designio de nos desorientar no rumo definitivo que tomassemos.
É certo que, dois minutos depois de termos principiado a andar, me seria absolutamente impossivel decidir se ia de Lisboa para Cintra ou se vinha de Cintra para Lisboa.
Na carruagem havia uma claridade bassa e tenue, que todavia nos permittia distinguir os objectos. Pude ver as horas no meu relogio. Eram sete e um quarto.
O desconhecido que ia defronte de mim examinou tambem as horas. O relogio que elle não introduziu bem na algibeira do collete e que um momento depois lhe caiu, ficando por algum tempo patente e pendido da corrente, era um relogio singular que se não confunde facilmente e que não deixará de ser reconhecido, depois da noticia que dou d'elle, pellas pessoas que alguma vez o houvessem visto. A caixa do lado opposto ao mostrador era de esmalte preto, liso, tendo no centro, por baixo de um capacete, um escudo de armas de ouro encobrado e polido.
Havia poucos momentos que caminhavamos quando o individuo sentado defronte de F…, o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o acompanhassemos, nos disse:
—Eu julgo inutil asseverar-lhes que devem tranquilisar-se inteiramente em quanto á segurança das suas pessoas…
—Está visto que sim, respondeu o meu amigo; nós estamos perfeitamente socegados a todos os respeitos. Espero que nos façam a justiça de acreditar que nos não têem coactos pelo medo. Nenhum de nós é tão creança que se apavore com o aspecto das suas mascaras negras ou das suas armas de fogo. Os senhores acabam de ter a bondade de nos certificar de que não querem fazer-nos mal: nós devemos pela nossa parte annunciar-lhes que desde o momento em que a sua companhia principiasse a tornar-se-nos desagradavel, nada nos seria mais facil do que arrancar-lhes as mascaras, arrombar os stores, convidal-os perante o primeiro trem que passasse por nós a que nos entregassem as suas pistolas, e relaxal-os em seguida aos cuidados policiaes do regedor da primeira parochia que atravessassemos. Parece-me portanto justo que principiemos por prestar o devido culto aos sentimentos da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos. D'outro modo ficariamos todos grotescos: os senhores terriveis e nós assustados.
Com quanto estas cousas fossem ditas por F… com um ar de bondade risonha, o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao ouvil-o. Movia convulsivamente uma perna, firmando o cotovello n'um joelho, pousando a barba nos dedos, fitando de perto o meu amigo. Depois, reclinando-se para traz e como se mudasse de resolução:
—No fim de contas, a verdade é que tem razão e talvez eu fizesse e dissesse o mesmo no seu logar.
E, tendo meditado um momento, continuou:
—Que diriam porém os senhores se eu lhes provasse que esta mascara em que querem ver apenas um symptoma burlesco é em vez d'isso a confirmação da seriedade do caso que nos trouxe aqui?… Queiram imaginar por um momento um d'esses romances como ha muitos: Uma senhora casada, por exemplo, cujo marido viaja ha um anno. Esta senhora, conhecida na sociedade de Lisboa, está gravida. Que deliberação ha de tomar?
Houve um silencio.
Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude d'aquelle problema e respondi:
—Enviar ao marido uma escriptura de separação em regra. Depois, se é rica, ir com o amante para a America ou para a Suissa; se é porbre, comprar uma machina de costura e trabalhar para fóra n'uma agua furtada. É o destino para as pobres e para as ricas. De resto, em toda a parte se morre depressa n'essas condições, n'um cottage á beira do lago Genebra ou n'um quarto de oito tostões ao mez na rua dos Vinagres. Morre-se egualmente, de tisica ou de tedio, no esfalfamento do trabalho ou no enjôo do idyllio.
—E o filho?
—O filho, desde que está fóra da familia e fóra da lei, é um desgraçado cujo infortunio provém em grande parte da sociedade que ainda não soube definir a responsabilidade do pae clandestino. Se os paes fazem como a legislação, e mandam buscar gente á estrada de Cintra para perguntar o que se ha de fazer, o melhor para o filho é deital-o á roda.
—O doutor discorre muito bem como philosopho distincto. Como puro medico, esquece-lhe talvez que na conjunctura de que se trata, antes de deitar o filho á roda ha uma pequena formalidade a cumprir, que é deital-o ao mundo.
—Isso é com os especialistas. Creio que não é n'essa qualidade que estou aqui.
—Engana-se. É precisamente como medico, é n'essa qualidade que aqui está e é por esse titulo que viemos busca-lo de surpresa á estrada de Cintra e o levamos a occultas a prestar auxílio a uma pessoa que precisa d'elle.
—Mas eu não faço clinica.
—É o mesmo. Não exerce essa profissão; tanto melhor para o nosso caso: não prejudica os seus doentes abandonando-os por algumas horas para nos seguir n'esta aventura. Mas é formado em Paris e publicou mesmo uma these de cirurgia que despertou a attenção e mereceu o elogio da faculdade. Queira fazer de conta que vae assistir a um parto.
O meu amigo F… poz-se a rir e observou:
—Mas eu que não tenho curso medico nem these alguma de que me accuse na minha vida, não quererão dizer-me o que vou fazer?
—Quer saber o motivo porque se encontra aqui?… Eu lh'o digo.
N'este momento porém a carruagem parou repentinamente e os nossos companheiros sobresaltados ergueram-se.