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VI

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Peço-lhe agora toda a sua attenção para o que tenho de contar-lhe.

A madrugada vinha. Sentiam-se já os ruidos da povoação que desperta. A rua não era macadamizada, porque eu sentia o rodar dos carros sobre a calçada. Tambem não era uma rua larga, porque o echo das carroças era profundo, cheio e proximo. Ouvia pregões. Não sentia carruagens.

O mascarado tinha ficado n'uma prostração extrema, sentado, immovel, com a cabeça apoiada nas mãos.

O homem que tinha dito chamar-se A. M. C. estava encostado no sofá, com os olhos cerrados, como adormecido.

Eu abri as portas da janella: era dia. Os transparentes e as persianas estavam corridos. Os vidros eram foscos como os dos globos dos candieiros. Entrava uma luz lugubre, esverdeada.

—Meu amigo, disse eu ao mascarado, é dia. Coragem! é necessario fazer o exame do quarto, movel por movel.

Elle ergueu-se e correu o reposteiro do fundo. Vi uma alcova, com uma cama, e á cabeceira uma pequena mesa redonda, coberta com um panno de velludo verde. A cama não estava desmanchada, cobria-a um edredon de setim encarnado. Tinha um só travesseiro largo, alto e fôfo, como se não usam em Portugal; sobre a mesa estava um cofre vasio e uma jarra com flores murchas. Havia um lavatorio, escovas, sabonetes, esponjas, toalhas dobradas e dois frascos esguios de violetas de Parma. Ao canto da alcova estava uma bengala grossa com estoque.

Na disposição dos objectos na sala não havia nenhuma particularidade significativa. O exame d'ella dava na verdade a persuasão de que se estava n'uma casa raramente habitada, visitada a espaços apenas, sendo um logar de entrevistas, e não um interior regular.

A casaca e o collete do morto estavam sobre uma cadeira; um dos sapatos via-se no chão, ao pé da chaise-longue; o chapeu achava-se sobre o tapete, a um canto, como arremessado. O paletot estava caido ao pé da cama.

Procuraram-se todos os bolsos dos vestidos do morto: não se encontrou carteira, nem bilhetes, nem papel algum. Na algibeira do collete estava o relogio, de ouro encobrado, sem firma, e uma pequena bolsa de malha d'ouro, com dinheiro miudo. Não se lhe encontrou lenço. Não se pôde averiguar em que tivesse sido trazido de fóra o opio; não appareceu frasco, garrafa, nem papel ou caixa em que tivesse estado, em liquido ou em pó; e foi a primeira difficuldade que no meu espírito se apresentou contra o suicidio.

Perguntei se não havia na casa outros quartos que communicassem com aquelle aposento e que devessemos visitar.

—Há, disse o mascarado, mas este predio tem duas entradas e duas escadas. Ora aquella porta, que communica com os demais quartos, encontrámol-a fechada pelo outro lado quando chegámos aqui. Logo este homem não saiu d'esta sala depois que subiu da rua e antes de morrer ou de ser morto.

Como tinha então trazido o opio? Ainda quando o tivesse já no quarto, o frasco, ou qualquer envolucro que contivesse o narcotico devia apparecer. Não era natural que tivesse sido aniquilado. O copo em que ficara o resto da agua opiada, alli estava. Um indicio mais grave parecia destruir a hypothese do suicidio: não se encontrou a gravata do morto. Não era natural que elle a tivesse tirado, que a tivesse destruido ou lançado fóra. Não era tambem racional que tendo vindo áquelle quarto, esmeradamente vestido como para uma visita cerimoniosa, não trouxesse gravata. Alguem pois tinha estado n'aquella casa, ou pouco antes da morte ou ao tempo d'ella. Era essa pessoa que tinha para qualquer fim tomado a gravata do morto.

Ora a presença de alguem n'aquelle quarto, coincidindo com a estada do supposto suicidado ali, tirava a possibilidade ao suicidio e dava presumpções ao crime.

Aproximámo-nos da janella, examinámos detidamente o papel em que estava escripta a declaração do suicida.

—A lettra é d'ele, parece-me indubitavel que é—disse o mascarado—mas na verdade, não sei porque, não lhe acho a feição usual da sua escripta!

Observou-se o papel escrupulosamente; era meia folha de escrever cartas. Notei logo no alto da pagina a impressão muito apagada, muito indistincta, d'uma firma e de uma corôa, que devia ter estado gravada na outra meia folha. Era portanto papel marcado. Fiz notar esta circumstancia ao mascarado: elle ficou surprehendido e confuso. No quarto não havia papel, nem tinteiro, nem pennas. A declaração pois tinha sido escripta e preparada fóra.

—Eu conheço o papel de que elle usava em casa, disse o mascarado; não é d'este; não tinha firma, não tinha corôa. Não podia usar d'outro.

A impressão da marca não era bastante distincta para que se percebesse qual fosse a firma e qual a corôa. Ficava, porém, claro que a declaração não tinha sido escripta nem em casa d'elle, onde não havia d'aquelle papel, nem n'aquelle quarto, onde não havia papel algum, nem tinteiro, nem um livro, um buvard, um lapis.

Teria sido escripta fóra, na rua, ao acaso? Em casa d'alguem? Não, porque elle não tinha em Lisboa, nem relações intimas, nem conhecimento de pessoas cujo papel fosse marcado com corôa.

Teria sido feita n'uma loja de papel? Não, porque o papel que se vende vulgarmente nas lojas não tem corôas.

Seria a declaração escripta n'alguma meia folha branca tirada de uma velha carta recebida? Não parecia tambem natural, porque o papel estava dobrado ao meio e não tinha os vincos que dá o enveloppe.

Demais a folha tinha um aroma de pós de marechala, o mesmo que se sentia, suavemente embebido no ar do quarto em que estavamos.

Além d'isso, pondo o papel directamente sobre a claridade da luz, distingui o vestigio de um dedo polegar, que tinha sido assente sobre o papel no momento de estar suado ou humido, e tinha embaciado a sua brancura lisa e assetinada, havendo deixado uma impressão exacta. Ora este dedo parecia delgado, pequeno, feminil. Este indicio era notavelmente vago, mas o mascarado tinha a esse tempo encontrado um, profundamente efficaz e seguro.

—Este homem, notou elle, tinha o costume invariavel, mechanico, de escrever, abreviando-a, a palavra that, d'este modo: dois TT separados por um traço. Esta abreviatura era só d'elle, original, desconhecida. N'esta declaração, aliás pouco ingleza, a palavra that acha-se escripta por inteiro.

Voltando-se então para M. C.:

—Porque não apresentou logo este papel? perguntou o mascarado. Esta declaração foi falsificada.

—Falsificada! exclamou o outro, erguendo-se com sobresalto ou com surpreza.

—Falsificada; feita para encobrir o assassinato: tem todos os indicios d'isso. Mas o grande, o forte, o positivo indicio é este: onde estão 2:300 libras em notas de Inglaterra, que este homem tinha no bolso?

M. C. olhou-o pasmado, como um homem que acorda de um sonho.

—Não apparecem, porque o senhor as roubou. Para as roubar matou este homem. Para encobrir o crime falsificou este bilhete.

—Senhor, observou gravemente A.M.C., falla-me em 2:300 libras: dou-lhe a minha palavra de honra que não sei a que se quer referir.

Eu então disse lentamente pondo os olhos com uma perscrutação demorada sobre as feições do mancebo:

—Esta declaração é falsa, evidentemente, não percebo o que quer dizer este novo negocio das 2:300 libras, de que só agora se falla; o que vejo é que este homem foi envenenado: ignoro se foi o senhor, se foi outro que o matou, o que sei é que evidentemente o cumplice é uma mulher.

—Não póde ser, doutor!, gritou o mascarado. É uma supposição absurda.

—Absurda!?… E este aposento, este quarto forrado de seda, fortemente perfumado, carregado de estofos, illuminado por uma claridade baça coada por vidros foscos; a escada coberta com um tapete; um corrimão engenhado com uma corda de seda; ali aos pés d'aquella volteriana aquelle tapete feito de uma pelle de urso, sobre a qual me parece que estou vendo o vestigio de um homem prostrado? Não vê em tudo isto a mulher? Não é esta evidentemente uma casa destinada a entrevistas de amor?…

—Ou a qualquer outro fim.

—E este papel? este papel de marca pequenissima, do que as mulheres compram em Paris, na casa Maquet, e que se chama papel da Imperatriz?

—Muitos homens o usam!

—Mas não o cobrem como este foi coberto, com um sachet em que havia o mesmo aroma que se respira no ambiente d'esta casa. Este papel pertence a uma mulher, que examinou a falsificação que elle encerra, que assistiu a ella, que se interessava na perfeição com que a fabricassem, que tinha os dedos humidos, deixando no papel um vestigio tão claro…

O mascarado calava-se.

—E um ramo de flôres murchas, que está ali dentro? um ramo que examinei e que é formado por algumas rosas, presas com uma fita de veludo? A fita está impregnada do perfume da pomada, e descobre-se-lhe um pequeno vinco, como o de uma unhada profunda, terminando em cada extremidade por um buraquinho… É o vestigio flagrante que deixou no veludo um gancho de segurar o cabello!

—Esse ramo podiam ter-lh'o dado, podia tel-o trazido elle mesmo de fóra.

—E este lenço que encontrei hontem debaixo de uma cadeira?

E atirei o lenço para cima da mesa. O mascarado pegou n'elle avidamente, examinou-o e guardou-o.

M. C. olhava pasmado para mim, e parecia aniquillado pela dura logica das minhas palavras. O mascarado ficou por alguns momentos silencioso; depois com voz humilde, quasi supplicante:

—Doutor, doutor, por amor de Deus! esses indicios não provam. Este lenço, de mulher indubitavelmente, estou convencido que é o mesmo que o morto trazia no bolso. É verdade: não se lembra que não lhe encontrámos lenço?

—E não se lembra tambem que não lhe encontrámos gravata?

O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias

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