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II

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Aos domingos á noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candieiro de porcelana côr de rosa. Vinham apenas os intimos. «O Engenheiro», como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco á estudante. Luiza fazia crochet, Jorge cachimbava.


O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge, e seu antigo condiscipulo nos primeiros annos da Polytechnica. Era um homem secco e nervoso, com lunetas azues, os cabellos compridos cahidos sobre a gola. Tinha o curso de cirurgião da Escóla. Muito intelligente, estudava desesperadamente, mas, como elle dizia, era um tumba. Aos trinta annos, pobre, com dividas, sem clientella,

começava a estar farto do seu quarto andar na Baixa, dos seus jantares de doze vintens, do seu paletot coçado d'alamares; e entalado na sua vida mesquinha, via os outros, os mediocres, os superficiaes, furar, subir, installar-se á larga na prosperidade! «Falta de chance», dizia. Podia ter aceitado um partido da camara n'uma villa da provincia, com pulso livre, ter uma casa sua, a sua creação no quintal. Mas tinha um orgulho resistente, muita fé nas suas faculdades, na sua sciencia, e não se queria ir enterrar n'uma terriola adormecida e lugubre, com tres ruas onde os porcos fossam. Toda a provincia o aterrava; via-se lá obscuro, jogando a manilha na Assembléa, morrendo de cachexia. Por isso não «arredava pé»; e esperava, com a tenacidade do plebeu sofrego, uma clientella rica, uma cadeira na Escóla, um coupé para as visitas, uma mulher loura com dote. Tinha certeza do seu direito a estas felicidades, e como ellas tardavam a chegar ia-se tornando despeitado e amargo; andava amuado com a vida; cada dia se prolongavam mais os seus silencios hostis, roendo as unhas: e, nos dias melhores, não cessava de ter ditos sêccos, tiradas azedadas—em que a sua voz desagradavel cahia como um gume gelado.


Luiza não gostava d'elle; achava-lhe um ar nordeste, detestava o seu tom de pedagogo, os reflexos negros da luneta, as calças curtas que mostravam o elastico roto das botas. Mas disfarçava, sorria-lhe, porque Jorge admirava-o, dizia sempre d'elle: Tem muito espirito! tem muito talento! grande homem!


Como vinha mais cedo ia á sala de jantar, tomava a sua chavena de café; e tinha sempre um olhar de lado para as pratas do aparador e para as toilettes frescas de Luiza. Aquelle parente, um mediocre, que vivia confortavelmente, bem casado, com a carne contente, estimado no ministerio, com alguns contos de reis em inscripções—parecia-lhe uma injustiça e pezava-lhe como uma humilhação. Mas affectava estimal-o; ia sempre ás noites, aos domingos; escondia então as suas preoccupações, cavaqueava, tinha pilherias,—mettendo a cada momento os dedos pelos seus cabellos compridos, seccos e cheios de caspa.


Ás nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha logo da porta com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cincoenta annos, era muito nutrida, e, como soffria de dyspepsia e de gazes, áquella hora não se podia espartilhar e as suas fórmas transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos seus cabellos levemente annelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, d'uma alvura baça e molle de freira; nos olhos papudos, com a pelle já engelhada em redor, luzia uma pupilla negra e humida, muito mobil; e aos cantos da bocca uns pellos de buço pareciam traços leves e circumflexos d'uma penna muito fina. Fôra a intima amiga da mãi de Luiza, e tomára aquelle habito de vir vêr a pequena aos domingos. Era fidalga, dos Noronhas de Redondella, bastante aparentada em Lisboa, um pouco devota, muito da Encarnação.


Mal entrava, ao pôr um beijo muito cantado na face de Luiza, perguntava-lhe baixo, com inquietação:


—Vem?


—O conselheiro? Vem.


Luiza sabia-o. Porque o conselheiro, o conselheiro Accacio, nunca vinha aos chás de D. Luiza, como elle dizia, sem ter ido na vespera ao ministerio das obras publicas procurar Jorge, declarar-lhe com gravidade, curvando um pouco a sua alta estatura:


—Jorge, meu amigo, ámanhã lá irei pedir a sua boa esposa a minha chavena de chá.


Ordinariamente acrescentava:


—E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! Se vir o ministro, os meus respeitos a s. exc.a Os meus respeitos a esse formoso talento!


E sahia, pisando com solemnidade os corredores enxovalhados.


Havia cinco annos que D. Felicidade o amava. Em casa de Jorge riam-se um pouco com aquella chamma. Luiza dizia: Ora! é uma caturrice d'ella! Viam-na córada e nutrida, e não suspeitavam que aquelle sentimento concentrado, irritado semanalmente, queimando em silencio, a ia devastando como uma doença e desmoralisando como um vicio. Todos os seus ardores até ahi tinham sido inutilisados. Amára um official de lanceiros que morrêra, e apenas conservava o seu daguerreotypo. Depois apaixonára-se muito occultamente por um rapaz padeiro, da visinhança, e vira-o casar. Dera-se então toda a um cão, o Bilro; uma criada despedida deu-lhe por vingança rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado na sala de jantar. A pessoa do conselheiro viera de repente, um dia, pegar fogo áquelles desejos, sobrepostos como combustiveis antigos. Accacio tornára-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquencia, achava-o n'uma «linda posição». O conselheiro era a sua ambição e o seu vicio! Havia sobretudo n'elle uma belleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens, e aquelle appetite insatisfeito inflammára-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante ás luzes, uma transpiração anciosa humedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade absurda, avida de lhe deitar as mãos, palpal-a, sentir-lhe as fórmas, amassal-a, penetrar-se d'ella! Mas disfarçava, punha-se a fallar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gottejava-lhe nas rôscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se penitencias de muitas corôas á Virgem; mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadêlos lascivos, e as melancolias do hysterismo velho! A indifferença do conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa o commovia! Era para com ella glacial e polido. Tinham-se ás vezes encontrado a sós, á parte, no vão favoravel d'uma janella, no isolamento mal alumiado d'um canto do sophá,—mas apenas ella fazia uma demonstração sentimental, elle erguia-se bruscamente, afastava-se, severo e pudico. Um dia ella julgára perceber que, por traz das suas lunetas escuras, o conselheiro lhe deitava de revés um olhar apreciador para a abundancia do seio; fôra mais clara, mais urgente, fallára em paixão, disse-lhe baixo: Accacio!... Mas elle com um gesto gelou-a—e de pé, grave:


—Minha senhora,


As neves que na fronte se accumulam

Terminam por cahir no coração...


É inutil, minha senhora!


O martyrio de D. Felicidade era muito occulto, muito disfarçado; ninguem o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do sentimento, ignoravam-lhe as torturas do desejo. E um dia Luiza ficou attonita, sentindo D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão humida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no conselheiro:


—Que regalo d'homem!


Fallava-se n'essa noite do Alemtejo, d'Evora e das suas riquezas, da capella dos ossos, quando o conselheiro entrou com o paletot no braço. Foi-o dobrar solicitamente n'uma cadeira a um canto, e no seu passo aprumado e official, veio apertar as mãos ambas de Luiza, dizendo-lhe com uma voz sonora, de papo:


—Minha boa snr.a D. Luiza, de perfeita saude, não? O nosso Jorge tinha-m'o dito. Ainda bem! Ainda bem!


Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado n'um collarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até á calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabellos que d'uma orelha á outra lhe faziam collar por traz da nuca—e aquelle preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho á calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, cahido aos cantos da bocca. Era muito pallido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do craneo.


Fôra, outr'ora, director geral do ministerio do reino, e sempre que dizia—El-rei! erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviaes; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre «o nosso Garrett, o nosso Herculano». Citava muito. Era author. E sem familia, n'um terceiro andar da rua do Ferregial, amancebado com a criada, occupava-se d'economia politica: tinha composto os Elementos genericos da sciencia da riqueza e sua distribuição, segundo os melhores authores, e como sub-titulo: Leituras do serão! Havia apenas mezes publicára a Relação de todos os ministros d'estado desde o grande marquez de pombal até nossos dias, com datas cuidadosamente averiguadas de seus nascimentos e obitos.


—Já esteve no Alemtejo, conselheiro?—perguntou-lhe Luiza.


—Nunca, minha senhora—e curvou-se.—Nunca! E tenho pena! sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.


Tomou uma pitada d'uma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:


—De resto, paiz de grande riqueza suina!


—Ó Jorge, averigua quanto é o partido da camara em Evora—disse Julião do canto do sophá.


O conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:


—Devem ser seiscentos mil reis, snr. Zuzarte, e pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Porquê, snr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?


—Talvez!...


Todos desapprovaram.


—Ah! Lisboa sempre é Lisboa!—suspirou D. Felicidade.


—Cidade de marmore e de granito, na phrase sublime do nosso grande historiador!—disse solemnemente o conselheiro.


E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.


D. Felicidade disse então:


—Quem não era capaz de deixar Lisboa, nem á mão de Deus Padre, era o conselheiro!


O conselheiro, voltando-se vagarosamente para ella, um pouco curvado, replicou:


—Nasci em Lisboa, D. Felicidade, sou lisboeta d'alma!


—O conselheiro—lembrou Jorge—nasceu na rua de S. José.


—Numero setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegada áquella em que viveu, até casar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Geraldo!


Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Accacio fôra o seu intimo. Eram visinhos. Accacio tocava então rebeca, e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo á Philarmonica da rua de S. José. Depois Accacio, quando entrou nas repartições do Estado, por escrupulo e por dignidade, abandonou a rebeca, os sentimentos ternos, os serões joviaes da Philarmonica. Entregou-se todo á estatistica. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquella amizade vigilante; fôra padrinho do seu casamento, vinha vêl-o todos os domingos, e, no dia de seus annos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitações, uma lampreia d'ovos.


—Aqui nasci—repetiu, desdobrando o seu bello lenço de sêda da India—e aqui conto morrer.


E assoou-se discretamente.


—Isso ainda vem longe, conselheiro!


Elle disse, com uma melancolia grave:


—Não me arreceio d'ella, meu Jorge. Até já fiz construir, sem vacillar, no Alto de S. João, a minha ultima morada. Modesta, mas decente. É ao entrar, no arruamento á direita, n'um lugar abrigado, ao pé da choça dos Verissimos amigos.


—E já compoz o seu epitaphio, snr. conselheiro?—perguntou Julião, do canto, ironico.


—Não o quero, snr. Zuzarte. Na minha sepultura não quero elogios. Se os meus amigos, os meus patricios entenderem que eu fiz alguns serviços, teem outros meios para os commemorar; lá teem a imprensa, o communicado, o necrologio, a poesia mesmo! Por minha vontade quero apenas sobre a lapide lisa, em letras negras, o meu nome—com a minha designação de conselheiro—a data do meu nascimento e a data do meu obito.


E com um tom demorado, de reflexão:


—Não me opponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras menores: Orai por elle!


Houve um silencio commovido, e á porta uma voz fina, disse:


—Dão licença?


—Oh Ernestinho!—exclamou Jorge.


Com um passo miudinho e rapido, Ernestinho veio abraçal-o pela cintura:


—Eu soube que tu que partias, primo Jorge... Como está, prima Luiza?


Era primo de Jorge. Pequenino, lymphatico, os seus membros franzinos, ainda quasi tenros, davam-lhe um aspecto debil de collegial; o buço, delgado, empastado em cêra-mostache, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de fita; sobre o collete branco, a cadêa do relogio sustentava um medalhão enorme, d'ouro, com fructos e flôres esmaltadas em relevo. Vivia com uma actrizita do Gymnasio, uma magra, côr de melão, com o cabello muito riçado, o ar tisico,—e escrevia para o theatro. Tinha traducções, dous originaes n'um acto, uma comedia em calembourgs. Ultimamente trazia em ensaios nas Variedades uma obra consideravel, um drama em cinco actos, a Honra e Paixão. Era a sua estreia séria. E desde então, viam-no sempre muito atarefado, os bolsos inchados de manuscriptos, com localistas, com actores, muito prodigo de cafés e de cognacs, o chapéo ao lado, descórado, e dizendo a todos: Esta vida, mata-me! Escrevia todavia por paixão entranhada pela Arte—porque era empregado na alfandega, com bom vencimento, e tinha quinhentos mil reis de renda das suas inscripções. A Arte mesmo, dizia, obrigava-o a desembolsos: para o acto do baile da Honra e Paixão mandára fazer, á sua custa, botas de verniz para o galan, botas de verniz para o pai-nobre! O seu nome de familia era Ledesma.


Deram-lhe um lugar, e Luiza notou logo, pousando o bordado, que estava abatido! Queixou-se então das suas fadigas: os ensaios arrazavam-no, tinha turras com o empresario: na vespera, vira-se forçado a refazer todo o final d'um acto! todo!


—E tudo isto—acrescentou muito exaltado—porque é um pelintra, um parvo, e quer que se passe n'uma sala, o acto que se passava n'um abysmo!


—N'um quê?—perguntou surprehendida D. Felicidade.


O conselheiro, muito cortez, explicou:


—N'um abysmo, D. Felicidade, n'um despenhadeiro. Tambem se diz, em bom vernaculo, um vortice.—Citou: N'um espumoso vortice se arroja...


—N'um abysmo?—perguntaram.—Porquê?


O conselheiro quiz conhecer o lance.


Ernestinho, radioso, esboçou largamente o enredo:—Era uma mulher casada. Em Cintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o conde de Monte-Redondo. O marido arruinado, devia cem contos de reis ao jogo! Estava deshonrado, ia ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruinas acastelladas, onde habita o conde, deixa cahir o véo, conta-lhe a catastrophe. O conde lança o seu manto aos hombros, parte, chega no momento em que os beleguins vão levar o homem.—É uma scena muito commovente, dizia, é de noite, ao luar!—O conde desembuça-se, atira uma bolsa d'ouro aos pés dos beleguins, gritando-lhes: Saciai-vos, abutres!...


—Bello final!—murmurou o conselheiro.


—Emfim—acrescentou Ernesto, resumindo—aqui ha um enredo complicado: o conde de Monte-Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu ouro aos pés do conde, e mata a esposa.


—Como?—perguntaram.


—Atira-a ao abysmo. É no quinto acto. O conde vê, corre, atira-se tambem. O marido cruza os braços, e dá uma gargalhada infernal. Foi assim que eu imaginei a cousa!


Calou-se, offegante: e, abanando-se com o lenço, rolava em redor os seus olhos langorosos, prateados como os d'um peixe morto.


—É uma obra de cunho, embatem-se grandes paixões!—disse o conselheiro, passando as mãos sobre a calva.—Os meus parabens, snr. Ledesma!


—Mas que quer o empresario?—perguntou Julião, que escutára de pé, attonito—que quer elle? Quer o abysmo n'um primeiro andar, mobilado pelo Gardé?


Ernestinho voltou-se, muito affectuosamente:


—Não, snr. Zuzarte,—a sua voz era quasi meiga—quer o desfecho n'uma sala. De modo que eu—e fazia um gesto resignado—a gente tem de condescender, tive d'escrever outro final. Passei a noite em claro. Tomei tres chavenas de café!...


O conselheiro acudiu, com a mão espalmada:


—Cuidado, snr. Ledesma, cuidado! Prudencia com esses excitantes! Por quem é, prudencia!


—A mim não me faz mal, snr. conselheiro—disse sorrindo.—Escrevi-o em tres horas! Venho de lh'o mostrar agora. Até o tenho aqui...


—Leia, snr. Ernesto, leia!—exclamou logo D. Felicidade.


Que lêsse! que lêsse! porque não lia?


Era uma massada!... Era um rascunho!... Emfim, como queriam!... E radiante desdobrou, no silencio, uma grande folha de papel azul pautado.


—Eu peço desculpa. Isto é um borrão. A cousa não está ainda com todos os FF e RR.—Fez então voz theatral:—Agatha!... É a mulher; isto aqui é a scena com o marido, o marido já sabe tudo...


agatha (cahindo de joelhos nos pés de Julio)

«Mas mata-me! Mata-me, por piedade! Antes a morte, que vêr, com esses desprezos, o coração rasgado fibra a fibra!»


julio

«E não me rasgaste tu tambem o coração? Tiveste tu piedade? Não. Retalhaste-m'o! Meu Deus, eu que a julgava pura, n'essas horas em que arrebatados...»


O reposteiro franziu-se. Sentiu-se um fino tilintar de chavenas. Era Juliana, d'avental branco, com o chá.


—Que pena!—exclamou Luiza.—Depois do chá se lê. Depois do chá.


Ernesto dobrou o papel, e, com um olhar de lado para Juliana, rancoroso:


—Não vale a pena, prima Luiza!


—Ora essa! É lindo!—affirmou D. Felicidade.


Juliana pousava sobre a mesa o prato das fatias, os biscoutos d'Oeiras, os bolos do Cócó.


—Aqui tem o seu chá fraco, conselheiro—dizia Luiza.—Sirva-se, Julião. As torradas ao snr. Julião! Mais assucar! Quem quer? Uma torrada, conselheiro?


—Estou amplamente servido, minha prezada senhora—replicou, curvando-se.


E declarou, voltado para Ernestinho, que achava o dialogo opulento.


Mas, perguntaram, o que quer o empresario mais agora? Já tem a sala...


Ernestinho, de pé, excitado, com um bolo d'ovos na ponta dos dedos, explicou:


—O que o empresario quer é que o marido lhe perdôe...


Foi um espanto:


—Ora essa! É extraordinario! Porque?


—Então!—exclamou Ernestinho, encolhendo os hombros,—diz que o publico que não gosta! Que não são cousas cá para o nosso paiz.


—A fallar a verdade—disse o conselheiro—a fallar a verdade, snr. Ledesma, o nosso publico não é geralmente affecto a scenas de sangue.


—Mas não ha sangue, snr. conselheiro!—protestava Ernestinho, erguendo-se sobre os bicos dos sapatos—mas não ha sangue! É com um tiro. É com um tiro pelas costas, snr. conselheiro!


Luiza fez a D. Felicidade—pst! e, n'um áparte, com um sorriso:


—D'esses bolinhos d'ovos. São muito frescos!


Ella respondeu, com uma voz lamentosa:


—Ai, filha, não!


E indicou o estomago, compungidamente.


No entanto o conselheiro aconselhava a Ernestinho a clemencia: tinha-lhe posto a mão no hombro paternalmente, e com uma voz persuasiva:


—Dá mais alegria á peça, snr. Ledesma. O espectador sahe mais alliviado! Deixe sahir o espectador alliviado!


—Mais um bolinho, conselheiro?


—Estou repleto, minha prezada senhora.


E, então, invocou a opinião de Jorge. Não lhe parecia que o bom Ernesto devia perdoar?


—Eu, conselheiro? De modo nenhum. Sou pela morte. Sou inteiramente pela morte! E exijo que a mates, Ernestinho!


D. Felicidade acudiu, toda bondosa:


—Deixe fallar, snr. Ledesma. Está a brincar. E elle então que é um coração d'anjo!


—Está enganada, D. Felicidade—disse Jorge, de pé, diante d'ella.—Fallo serio e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte. No abysmo, na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir que, n'um caso d'esses, um primo meu, uma pessoa da minha familia, do meu sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! Não! Mata-a! É um principio de familia. Mata-a quanto antes!


—Aqui tem um lapis, snr. Ledesma—gritou Julião, estendendo-lhe uma lapiseira.


O conselheiro, então, interveio, grave:


—Não—disse—não creio que o nosso Jorge falle serio. É muito instruido para ter idéas tão...


Hesitou, procurou o adjectivo. Juliana poz-se-lhe diante com uma bandeja, onde um macaco de prata se agachava comicamente, sob um vasto guarda-sol erriçado de palitos. Tomou um, curvou-se, e concluiu:


—...Tão anti-civilisadoras.


—Pois está enganado, conselheiro, tenho-as—affirmou Jorge.—São as minhas idéas. E aqui tem, se em lugar de se tratar d'um final d'acto, fosse um caso da vida real, se o Ernesto viesse dizer-me: sabes, encontrei minha mulher...


—Oh Jorge!—disseram, reprehensivamente.


—...Bem, supponhamos, se elle m'o viesse dizer, eu respondia-lhe o mesmo. Dou a minha palavra d'honra, que lhe respondia o mesmo: mata-a!


Protestaram. Chamaram-lhe tigre, Othello, Barba-Azul. Elle ria, enchendo muito socegadamente o seu cachimbo.


Luiza bordava, calada: a luz do candieiro, abatida pelo abat-jour, dava aos seus cabellos tons de um louro quente, resvalava sobre a sua testa branca como sobre um marfim muito polido.


—Que dizes tu a isto?—disse-lhe D. Felicidade.


Ella ergueu o rosto, risonha, encolheu os hombros...


E o conselheiro logo:


—A snr.a D. Luiza diz com orgulho o que dizem as verdadeiras mães de familia:


O Primo Bazilio: Episodio Domestico

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