Читать книгу O Primo Bazilio: Episodio Domestico - Eca de Queiros - Страница 11
ОглавлениеImpurezas do mundo não me roçam
Nem a fimbria da tunica sequer.
—Ora muito boas noites—disse, á porta, uma voz grossa.
Voltaram-se.
Ó Sebastião! Ó snr. Sebastião! ó Sebastiarrão!
Era elle, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão, Sebastião tronco d'arvore,—o intimo, o camarada, o inseparavel de Jorge, desde o latim, na aula de frei Liborio, aos Paulistas.
Era um homem baixo e grosso, todo vestido de preto, com um chapéo molle desabado na mão. Começava a perder um pouco na frente, os seus cabellos castanhos e finos. Tinha a pelle muito branca, a barba alourada e curta.
Veio sentar-se ao pé de Luiza.
—Então d'onde vem? d'onde vem?
Vinha do Price. Rira muito com os palhaços. Houvera a brincadeira da pipa.
O seu rosto, em plena luz, tinha uma expressão honesta, simples, aberta: os olhos pequenos, azues d'um azul claro, d'uma suavidade séria, adoçavam-se muito quando sorria: e os beiços escarlates, sem pelliculas seccas, os dentes luzidios, revelavam uma vida saudavel e habitos castos. Fallava devagar, baixo, como se tivesse medo de se manifestar ou de fatigar. Juliana trouxera-lhe a sua chavena, e remexendo o assucar com a colhér direita, os olhos ainda a rir, um sorriso bom:
—A pipa tem muita graça. Muita graça!
Sorveu um gole de chá e depois d'um momento:
—E tu, maroto, sempre partes ámanhã? Não ha umas tentaçõesinhas d'ir por ahi fóra com elle, minha cara amiga?
Luiza sorriu. Tomára ella! Quem dera! Mas era uma jornada tão incommoda! Depois a casa não podia ficar só, não havia que fiar em criados...
—Está claro, está claro—disse elle.
Jorge, então, que abrira a porta do escriptorio, chamou-o:
—Ó Sebastião! Fazes favor?
Elle foi logo com o seu andar pesado, o largo dorso curvado: as abas do seu casaco mal feito tinham um comprimento ecclesiastico.
Entraram para o escriptorio.
Era uma saleta pequena, com uma estante alta e envidraçada, tendo em cima a estatueta de gesso, empoeirada e velha, d'uma bacchante em delirio. A mesa, com um antigo tinteiro de prata que fôra de seu avô, estava ao pé da janella: uma collecção empilhada de Diarios do Governo, branquejava a um canto: por cima da cadeira de marroquim escuro, pendia, n'um caixilho preto, uma larga photographia de Jorge: e sobre o quadro, duas espadas encruzadas reluziam. Uma porta, no fundo, coberta com um reposteiro de baeta escarlate, abria para o patamar.
—Sabes quem esteve ahi de tarde?—disse logo Jorge, accendendo o cachimbo—Aquella desavergonhada da Leopoldina! Que te parece, hein?
—E entrou?—perguntou Sebastião, baixo, correndo por dentro o pesado reposteiro de fazenda listrada.
—Entrou, sentou-se, esteve, demorou-se! Fez o que quiz! A Leopoldina, a Pão e queijo!
E arremessando o phosphoro violentamente:
—Quando penso que aquella desavergonhada vem a minha casa! Uma creatura que tem mais amantes que camisas, que anda pelo Dá-fundo em troças, que passeava nos bailes, este anno, de dominó, com um tenor! A mulher do Zagallão, um devasso que falsificou uma letra!
E quasi ao ouvido de Sebastião:
—Uma mulher que dormiu com o Mendonça dos callos! Aquelle sebento do Mendonça dos callos!
Teve um gesto furioso, exclamou:
—E vem aqui, senta-se nas minhas cadeiras, abraça minha mulher, respira o meu ar!... Palavra d'honra, Sebastião, se a pilho—procurou mentalmente, com o olhar acceso, um castigo sufficiente—dou-lhe açoutes!
Sebastião disse devagar:
—E o peor é a visinhança.
—Está claro que é!—exclamou Jorge.—Toda essa gente ahi pela rua abaixo sabe quem ella é! Sabem-lhe os amantes, sabem-lhe os sitios. É a Pão e queijo! Todo o mundo conhece a Pão e queijo.
—Má visinhança—disse Sebastião.
—De tremer.
Mas então! estava acostumado á casa, era sua, tinha-a arranjado, era uma economia...
—Senão! Não parava aqui um dia!
Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavallados uns nos outros! Uma visinhança a postos, avida de mexericos! Qualquer bagatella, o trotar d'uma tipoia, e apparecia por traz de cada vidro um par d'olhos repolhudos a cocar! E era logo um badalar de linguas por ahi abaixo, e conciliabulos, e opiniões formadas! fulano é indecente, fulana é bebeda!
—É o diabo!—disse Sebastião.
—A Luiza é um anjo, coitada—dizia Jorge, passeando pela saleta—mas tem cousas em que é criança! Não vê o mal. É muito boa, deixa-se ir. Com este caso da Leopoldina, por exemplo; foram creadas de pequenas, eram amigas, não tem coragem agora para a pôr fóra. É acanhamento, é bondade. Elle comprehende-se! Mas emfim as leis da vida tem as suas exigencias!...
E depois d'uma pausa:
—Por isso, Sebastião, em quanto eu estiver fóra, se te constar que a Leopoldina vem por cá, avisa a Luiza! Porque ella é assim: esquece-se, não reflexiona. É necessario alguem que a advirta, que lhe diga:—Alto lá, isso não póde ser! Que então cahe logo em si, e é a primeira!... Vens por ahi, fazes-lhe companhia, fazes-lhe musica, e se vires que a Leopoldina apparece ao largo, tu logo:—Minha rica senhora, cuidado, olhe que isso não! Que ella, sentindo-se apoiada, tem decisão. Senão, acanha-se, deixa-a vir. Soffre com isso, mas não tem coragem de lhe dizer: Não te quero vêr, vai-te! Não tem coragem p'ra nada: começam as mãos a tremer-lhe, a seccar-se-lhe a bocca... É mulher, é muito mulher!... Não te esqueças, hein, Sebastião?
—Então havia de me esquecer, homem?
Sentiram então o piano na sala, e a voz de Luiza ergueu-se, fresca e clara, cantando a Mandolinata:
Amici, la notte é bella,
La luna va spontari...
—Fica tão só, coitada!...—disse Jorge.
Deu alguns passos pelo escriptorio, fumando, com a cabeça baixa:
—Todo o casal bem organisado, Sebastião, deve ter dous filhos! Deve ter pelo menos um!...
Sebastião coçou a barba em silencio—e a voz de Luiza, elevando-se com um certo esforço aspero, nos altos da melodia :
Di cà, di là, per la cità
Andiami a transnottari...
Era uma tristeza secreta de Jorge—não ter um filho! Desejava-o tanto! Ainda em solteiro, nas vesperas do casamento, já sonhava aquella felicidade: o seu filho! Via-o de muitas maneiras: ou gatinhando com as suas perninhas vermelhas, cheias de rôscas, e os cabellos annelados, finos como fios de sêda; ou rapaz forte, entrando da escóla com os livros, alegre e d'olho vivo, vindo mostrar-lhe as boas notas dos mestres: ou, melhor, rapariga crescida, clara e rosada, com um vestido branco, as duas tranças cahidas, vindo pousar as mãos nos seus cabellos já grisalhos...
Vinha-lhe, ás vezes, um medo de morrer sem ter tido aquella felicidade completadora!
Agora, na sala, a voz aguda de Ernestinho perorava, depois, no piano Luiza recomeçou a Mandolinata, com um brio jovial.
A porta do escriptorio abriu-se, Julião entrou:
—Que estão vossês aqui a conspirar? Vou-me safar, que é tarde! Até á volta, meu velho, hein? Tambem ia comtigo tomar ar, respirar, vêr campos, mas...
E sorriu com amargura.—Addio! Addio!
Jorge foi alumiar-lhe ao patamar, abraçal-o outra vez. Se quizesse alguma cousa do Alemtejo!...
Julião carregou o chapéo na cabeça:
—Dá cá outro charuto, por despedida! Dá cá dous!
—Leva a caixa! Eu em viagem só fumo cachimbo. Leva a caixa, homem!
Embrulhou-lh'a n'um Diario de Noticias; Julião metteu-a debaixo do braço, e descendo os degraus:
—Cuidado com as sezões, e descobre uma mina d'ouro!
Jorge e Sebastião entraram na sala. Ernestinho, encostado ao piano, torcia as guias do bigodinho, e Luiza começava uma valsa de Strauss—o Danubio Azul.
Jorge disse, rindo, estendendo os braços:
—Uma valsa, D. Felicidade?
Ella voltou-se, com um sorriso. E porque não? Em nova era fallada! Citou logo a valsa que dançára com o sr. D. Fernando, no tempo da Regencia, nas Necessidades. Era uma valsa linda, d'essa época: A Perola d'Ophir.
Estava sentada ao pé do conselheiro, no sophá. E como retomando um dialogo mais querido—continuou, baixo para elle, com uma voz meiga:
—Pois creia, acho-o com optimas côres.
O conselheiro enrolava vagarosamente o seu lenço de sêda da India.
—Na estação calmosa passo sempre melhor. E D. Felicidade?
—Ai! Estou outra, conselheiro! Muito boas digestões, muito livre de gazes... Estou outra!
—Deus o queira, minha senhora, Deus o queira—disse o conselheiro, esfregando lentamente as mãos.
Tossiu, ia levantar-se, mas D. Felicidade pôz-se a dizer:
—Espero que esse interesse seja verdadeiro...
Córou. O corpete flaccido do vestido de sêda preta enchia-se-lhe com o arfar do peito.
O conselheiro recahiu lentamente no sophá,—e com as mãos nos joelhos:
—D. Felicidade sabe que tem em mim um amigo sincero...
Ella levantou para elle seus olhos pisados, d'onde sahiam revelações de paixão e supplicas de felicidade:
—E eu, conselheiro!...
Deu um grande suspiro, pôz o leque sobre o rosto.
O conselheiro ergueu-se seccamente. E com a cabeça alta, as mãos atraz das costas, foi ao piano, perguntou a Luiza curvando-se:
—É alguma canção do Tyrol, D. Luiza?
—Uma valsa de Strauss—murmurou-lhe Ernestinho, em bicos de pés, ao ouvido.
—Ah! Muita fama! Grande author!
Tirou então o relogio. Eram horas, disse, de ir coordenar alguns apontamentos. Aproximou-se de Jorge, com solemnidade:
—Jorge, meu bom Jorge, adeus! Cautela com esse Alemtejo! O clima é nocivo, a estação traiçoeira!
E apertou-o nos braços com uma pressão commovida.
D. Felicidade punha a sua manta de renda negra.
—Já, D. Felicidade?—disse Luiza.
Ella explicou-lhe, ao ouvido:
—Já, sim, filha, que tenho estado a abarrotar, comi umas bajes e tenho estado!... E aquelle homem, aquelle gêlo! O snr. Ernesto vem para os meus sitios, hein?
—Como um fuso, minha senhora!
Tinha vestido o seu paletot d'alpaca clara, fumava chupando, com as faces encovadas, por uma boquilha enorme, onde uma Venus se torcia sobre o dorso d'um leão domado.
—Adeus, primo Jorge, saudinha e dinheiro, hein? Adeus. Quando fôr a Honra e Paixão cá mando um camarote á prima Luiza. Adeus! Saudinha!
Iam a sahir. Mas o conselheiro, á porta, voltando-se subitamente, com as abas do paletot deitadas para traz, a mão pomposamente apoiada no castão de prata da bengala que representava uma cabeça de mouro, disse, com gravidade:
—Esquecia-me, Jorge! Tanto em Evora, como em Beja, visite os governadores civis! E eu lhe digo porquê: deve-lh'o como primeiros funccionarios do districto, e podem-lhe ser de muita utilidade nas suas peregrinações scientificas!
E curvando-se profundamente:
—Al rivedere, como se diz em Italia.
Sebastião tinha ficado. Para arejar do fumo de tabaco Luiza foi abrir as janellas; a noite estava quente e immovel, de luar.
Sebastião pozera-se ao piano, e com a cabeça curvada, corria devagar o teclado.
Tocava admiravelmente, com uma comprehensão muito fina da musica. Outr'ora, compozera mesmo uma Meditação, duas Valsas, uma Ballada: mas eram estudos muito trabalhados, cheios de reminiscencias, sem estylo.—Da cachimonia não me sahe nada—costumava elle dizer com bonhomia, batendo na testa, sorrindo—mas lá com os dedos!...
Pôz-se a tocar um Nocturno de Choppin. Jorge sentára-se no sophá ao pé de Luiza.
—Já tens prompto o teu farnelzinho!—disse-lhe ella.
—Bastam umas bolachas, filha. O que quero é o cantil com cognac.
—E não te esqueças de mandar um telegramma logo que chegues!
—Pudera!
—Tu d'aqui a quinze dias, vens!
—Talvez...
Ella teve um gesto amuado.
—Ah, bem! Se não vieres, vou ter comtigo! A culpa é tua.
E olhando em redor:
—Que só que vou ficar!
Mordeu o beicinho, fitou o tapete. E de repente, com a voz ainda triste:
—Pst, Sebastião! A malaguenha, faz favor?
Sebastião começou a tocar a malaguenha. Aquella melodia calida, muito arrastada, encantava-a. Parecia-lhe estar em Malaga, ou em Granada, não sabia: era sob as laranjeiras, mil estrellinhas luzem; a noite é quente, o ar cheira bem; por baixo d'um lampeão suspenso a um ramo, um cantador sentado na tripeça mourisca faz gemer a guitarra; em redor as mulheres com os seus corpetes de velludilho encarnado batem as mãos em cadencia: e ao largo dorme uma Andaluzia de romance e de zarzuela, quente e sensual, onde tudo são braços brancos que se abrem para o amor, capas romanticas que roçam as paredes, sombrias viellas onde luz o nicho do santo e se repenica a viola, serenos que invocam a Virgem Santissima cantando as horas...
—Muito bem, Sebastião! Gracias!
Elle sorriu, ergueu-se, fechou cuidadosamente o piano, e indo buscar o seu chapéo desabado:
—Então ámanhã ás sete? Cá estou, e vou-te acompanhar até ao Barreiro.
Bom Sebastião!
Foram debruçar-se na varanda para o vêr sahir. A noite fazia um silencio alto, d'uma melancolia placida; o gaz dos candieiros parecia mortiço; a sombra que se recortava na rua, com uma nitidez brusca, tinha um tom quente e dôce; a luz punha nas fachadas brancas claridades vivas, e nas pedras da calçada faiscações vidradas; uma clara-boia reluzia, a distancia, como uma velha lamina de prata; nada se movia; e instinctivamente os olhos erguiam-se para as alturas, procuravam a lua branca, muito séria.
—Que linda noite!
A porta bateu, e Sebastião de baixo, na sombra:
—Dá vontade de passear, hein?
—Linda!
Ficaram á varanda preguiçosamente, olhando, detidos pela tranquillidade, pela luz. Puzeram-se a fallar baixo da jornada. Áquella hora onde estaria elle? Já em Evora, n'um quarto d'estalagem, passeando monotonamente sobre um chão de tijolo. Mas voltaria breve; esperava fazer um bom negocio com o Paco, o hespanhol das minas de Portel, trazer talvez alguns centos de mil reis, e teriam então a doçura do mez de setembro; poderiam fazer uma jornada ao Norte, irem ao Bussaco, trepar aos altos, beber a agua fresca das rochas, sob a espessura humida das folhagens: irem a Espinho, e pelas praias, sentar-se na arêa, no bom ar cheio d'azote, vendo o mar unido, d'um azul metallico e faiscante, o mar do verão, com algum fumo de paquete que passa para o Sul ao longe muito adelgaçado. Faziam outros planos com os hombros muito chegados: uma felicidade abundante enchia-os deliciosamente. E Jorge disse:
—Se houvesse um pequerrucho, já não ficavas tão só!
Ella suspirou. Tambem o desejava tanto! Chamar-se-hia Carlos Eduardo. E via-o no seu berço dormindo, ou no collo, nú, agarrando com a mãosinha o dedo do pé, mamando a ponta rosada do seu peito... Um estremecimento d'um deleite infinito correu-lhe no corpo. Passou o braço pela cinta de Jorge. Um dia seria, teria um filho de certo! E não comprehendia o seu filho homem nem Jorge velho: via-os ambos do mesmo modo: um sempre amante, novo, forte; o outro sempre dependente do seu peito, da maminha, ou gatinhando e palrando, louro e côr de rosa. E a vida apparecia-lhe infindavel, d'uma doçura igual, atravessada do mesmo enternecimento amoroso, quente, calma e luminosa como a noite que os cobria.
—A que horas quer a senhora que a venha acordar?—disse a voz secca de Juliana.
Luiza voltou-se:
—Ás sete, já lhe disse ha pouco, creatura.
Fecharam a janella. Em torno das velas uma borboleta branca esvoaçava. Era bom agouro!
Jorge prendeu-a nos braços:
—Vai ficar sem o seu maridinho, hein?—disse tristemente.
Ela deixou pesar o corpo sobre as mãos d'elle cruzadas, olhou-o com um longo olhar que se ennevoava e escurecia, e envolvendo-lhe o pescoço com o gesto lento, harmonioso e solemne dos braços, pousou-lhe na bocca um beijo grave e profundo. Um vago soluço levantou-lhe o peito.
—Jorge! Querido!—murmurou.