Читать книгу O Primo Bazilio: Episodio Domestico - Eca de Queiros - Страница 14

IV

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Pelas tres horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta na vespera até deixára cinza de tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Ouf!


—O caldinho ha-de estar prompto, hein!—disse, adocicando a voz.—Tira-m'o, snr.a Joanna, faz favor?


—Vossemecê hoje está com outra cara—notou a cozinheira.


—Ai! sinto-me outra, snr.a Joanna! Pois olhe que adormeci com dia. Já luzia o dia!


—E eu!—Tinha tido cada sonho! Credo! Uma avantesma côr de fogo a passear-lhe por cima do corpo, e cada pancada na bocca do estomago, como quem pisava uvas n'um lagar!


—Enfartamento—disse sentenciosamente Juliana, e repetiu:


—Pois eu sinto-me outra. Ha mezes que me não sinto tão bem!


Sorria com os seus dentes amarellados. O caldo que Joanna deitava na malga branca, com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça, dava-lhe uma alegria gulosa. Estendeu os pés, recostou-se, feliz, na boa sensação da tarde quente e luminosa, entrando largamente pelas duas janellas abertas.


O sol retirára-se da varanda, e sobre a pedra, em vasos de barro, plantas pobres encolhiam a sua folhagem chupada do calor: sobre uma táboa a um canto, n'uma velha panella bojuda, verdejava um pé de salsa muito tratado: o gato dormia sobre um esteirão: esfregões seccavam n'uma corda: e para além alargava-se o azul vivo como um metal candente, as arvores dos quintaes tinham tons ardentes do sol, os telhados pardos com as suas vegetações esguias coziam no calor, e pedaços de paredes caiadas despediam uma rebrilhação dura.


—Está de appetite, snr.a Joanna, está de appetite!—dizia Juliana, remexendo o caldo devagarinho, com gula. A cozinheira de pé, com os braços cruzados sobre o seu peito abundante, regosijava-se:


—O que se quer é que esteja a gosto.


—Está a preceito.


Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras.—E a campainha da porta que já tinha tocado, tornou a tilintar discretamente.


Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente entravam: ouvia-se ferver a panella no fogão, e fóra o martellar incessante da forja: ás vezes o arrulhar triste de duas rôlas que viviam na varanda, n'uma gaiola de vime, punha na tarde abrazada uma sensação de suavidade.


A campainha retilintou, sacudida com impaciencia.


—Com a cabeça, burro!—disse Juliana.


Riram. Joanna fôra sentar-se á janella, n'uma cadeira baixa; estendia os seus grossos pés, calçados de chinellas de ourêlo; coçava-se devagarinho no sovaco, toda repousada.


A campainha retiniu violentamente.


—Fóra, besta!—rosnou Juliana, muito tranquilla.


Mas a voz irritada de Luiza chamou de baixo:


—Juliana!


—Que nem uma pessoa póde tomar a sustancia socegada! Raio de casa! Irra!


—Juliana!—gritou Luiza.


A cozinheira voltou-se, já assustada:


—A senhora zanga-se, snr.a Juliana.


—Que a leve o diabo!


Limpou os beiços gordurosos ao avental, desceu furiosa.


—Vossê não ouve, mulher? Estão a bater ha uma hora!


Juliana arregalou os olhos espantada: Luiza tinha vestido o roupão novo de foulard côr de castanho, com pintinhas amarellas!


—Temos novidade! Temol-a grossa!—pensou Juliana pelo corredor.


A campainha repicava. E no patamar, vestido de claro, com uma rosa ao peito, um embrulho debaixo do braço, estava o sujeito do negocio das minas!


—Aquelle sujeito de hontem!—veio dizer, toda pasmada.


—Mande entrar...


—Viva!—pensou.


Galgou a escada da cozinha, disse logo da porta, com a voz aguda de jubilo:


—Está cá o peralta de hontem! Está cá outra vez! Traz um embrulho!—Que lhe parece, snr.a Joanna? Que lhe parece?


—Visitas...—disse a cozinheira.


Juliana teve um risinho secco. Sentou-se, acabou o seu caldo, á pressa.


Joanna indifferente cantarolava pela cozinha; o arrulhar das rôlas continuava langoroso e debil.


—Pois, senhores, isto vai rico!—disse Juliana.


Esteve um momento a limpar os dentes com a lingua, o olhar fixo, reflectindo. Sacudiu o avental, e desceu ao quarto de Luiza: o seu olhar esquadrinhador avistou logo sobre o toucador as chaves esquecidas da dispensa: podia subir, beber um trago de bom vinho, engulir dous ladrilhos de marmelada... Mas possuia-a uma curiosidade urgente, e, em bicos de pés, foi agachar-se á porta que dava para a sala, espreitou. O reposteiro estava corrido por dentro: podia apenas sentir a voz grossa e jovial do sujeito. Foi de volta, pelo corredor, á outra porta, ao pé da escada; poz o olho á fechadura, collou o ouvido á frincha. O reposteiro dentro estava tambem cerrado.


—Os diabos calafetaram-se!—pensou.


Pareceu-lhe que se arrastava uma cadeira, depois que se fechava uma vidraça. Os olhos faiscavam-lhe. Uma risada de Luiza sobresahiu, em seguida um silencio; e as vozes recomeçaram n'um tom sereno e continuo. De repente o sujeito ergueu a falla, e entre as palavras que dizia, de pé de certo, passeando, Juliana ouviu claramente: Tu, foste tu!


—Oh que bebeda!


Um tlim-tlim timido da campainha, ao lado, assustou-a. Foi abrir. Era Sebastião, muito vermelho do sol, com as botas cheias de pó.


—Está?—perguntou, limpando a testa suada.


—Está com uma visita, snr. Sebastião!


E cerrando a porta sobre si, mais baixo:


—Um rapaz novo que já cá esteve hontem, um janota! Quer que vá dizer?


—Não, não, obrigado, adeus.


Desceu discretamente. Juliana voltou logo a encostar-se á porta, a orelha contra a madeira, as mãos atraz das costas: mas a conversação, sem saliencia de vozes, tinha um rumor tranquillo e indistincto. Subiu á cozinha.


—Tratam-se por tu!—exclamou.—Tratam-se por tu, snr.a Joanna!


E muita excitada:


—Isto vai á vela! Caspitè! assim é que eu gosto d'ellas!


O sujeito sahiu ás cinco horas. Juliana, apenas sentiu abrir-se a porta, veio a correr; viu Luiza no patamar, debruçada no corrimão, dizendo para baixo, com muita intimidade:


—Bem, não falto. Adeus.


Ficou então tomada d'uma curiosidade que a alterava como uma febre. Toda a tarde, na sala de jantar, no quarto, esquadrinhou Luiza com olhares de lado. Mas Luiza, com um roupão de linho mais velho, parecia serena, muito indifferente.


—Que sonsa!


Aquella naturalidade despertava a sua bisbilhotice.


—Eu hei-de-t'apanhar, desavergonhada!—calculava.


Afigurou-se-lhe que Luiza tinha os olhos um pouco pisados! Estudava-lhe as posições, os tons de voz. Viu-a repetir o assado,—pensou logo:


—Abriu-lhe o appetite!


E quando Luiza ao fim do jantar se estendeu na voltaire com um ar quebrado:


—Ficou derreada.


Luiza que nunca tomava café, quiz n'essa tarde «meia chavena, mas forte, muito forte».


—Quer café!—veio ella dizer á cozinheira, toda excitada.—Tudo á grande! E do forte. Quer do forte! Ora o diabo!


Estava furiosa.


—Todas o mesmo! Uma récua de cabras!


Ao outro dia era domingo. Logo pela manhã cedo, quando Juliana ia para a missa, Luiza chamou-a da porta do quarto, deu-lhe uma carta para levar a D. Felicidade. Ordinariamente mandava um recado;—e a curiosidade de Juliana accendeu-se logo diante d'aquelle sobrescripto fechado e lacrado com o sinete de Luiza, um L gothico dentro d'uma corôa de rosas.


—Tem resposta?


—Tem.


Quando voltou ás dez horas, com um bilhete de D. Felicidade, Luiza quiz saber se havia muito calor, se fazia poeira. Sobre a mesa estava um chapéo de palha escuro, que ella estivera a enfeitar com duas rosas de musgo.


Fazia um bocadinho de vento, mas p'ra a tarde abrandava, de certo. E pensou logo:—Temos passeata, vai ter com o gajo!


Mas durante todo o dia, Luiza em roupão não sahiu do seu quarto ou da sala, ora estendida na causeuse lendo aos bocados, ora batendo distrahidamente no piano pedaços de valsas. Jantou ás quatro horas. A cozinheira sahiu, e Juliana pôz-se a passar a sua tarde á janella da sala de jantar. Tinha o vestido novo, as salas muito rijas de gomma, a cuia dos dias santos—e pousava solemnemente os cotovêlos n'um lenço, estendido sobre o peitoril da varanda. Defronte os passaros chilreavam na figueira brava. Dos dous lados do tabique que cercava o terreno vago, agachavam-se os tectos escuros das duas ruasitas parallelas: eram casas pobres onde viviam mulheres, que pela tarde, em chambre ou de garibaldi, os cabellos muito oleosos, faziam meia á janella, fallando aos homens, cantarolando com um tedio triste. Do outro lado do terreno, verduras de quintaes, muros brancos davam áquelle sitio um ar adormecido de villa pacata. Quasi ninguem passava. Havia um silencio fatigado; e só ás vezes o som distante d'um realejo, que tocava a Norma ou a Lucia, punha uma melancolia na tarde.—E Juliana alli estava immovel, até que os tons quentes da tarde empallideciam, e os morcegos começavam a voar.


Pelas oito horas entrou no quarto de Luiza,—ficou pasmada de a vêr vestida toda de preto, de chapéo! Tinha accendido as serpentinas na parede, os castiçaes no toucador; e sentada á beira da causeuse calçava as luvas devagar, com a face muito séria, um pouco esbatida de pó d'arroz, o olhar cheio de brilho.


—O vento abrandou?—disse.


—Está a noite muito bonita, minha senhora.


Um pouco antes das nove horas uma carruagem parou á porta. Era D. Felicidade, muito encalmada. Abafára todo o dia! E á noite nem uma aragem! Até tinha mandado buscar uma carruagem descoberta, que n'um coupé, credo, morria-se!


Juliana pelo quarto arrumava, dobrava, toda curiosa. Onde iriam? onde iriam? D. Felicidade, amplamente sentada, de chapéo, tagarellava: uma indigestão que tivera na vespera com umas bajes; a cozinheira que a tinha querido «comer» em quatro vintens; uma visita que lhe fizera a condessa de Arruella...


Emfim, Luiza, disse, baixando o seu véo branco:


—Vamos, filha. Faz-se tarde.


Juliana foi-lhes alumiar, furiosa. Olha que proposito, irem duas mulheres sós por ahi fóra, n'uma tipoia! E se uma criada então se demorava na rua mais meia hora, credo, que alarido! Que duas bebedas!


Foi á cozinha desabafar com a Joanna. Mas a rapariga estirada n'uma cadeira, dormitava.


Fôra com o seu Pedro ao Alto de S. João. E toda a tarde tinham passeado no cemiterio, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitaphios, beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam, e regalando-se do ar dos cyprestes e das relvas dos mortos. Voltaram por casa da Serena, entraram a beberricar um quartilho no Espregueira... Tarde cheia! e estava derreada da soalheira, do pó, da admiração de tanto tumulo rico, do homem, e da pinguita de vinho.


O que ia, era refastelar-se para a cama!


—Credo, snr.a Joanna, vossemecê está-se a fazer uma dorminhôca! Olha que mulher! Com pouco arrêa! Cruzes!


Desceu ao quarto de Luiza, apagou as luzes, abriu as janellas, arrastou a poltrona para a varanda,—e, repimpada, os braços cruzados, pôz-se a passar a noite.


O estanque ainda não se fechára, e a sua luzita lugubre como a estanqueira, estendia-se tristemente sobre a pedra miuda da rua; as janellas ao pé estavam abertas; por algumas, mal alumiadas, viam-se dentro serões melancolicos; n'outras, onde havia vultos immoveis, luzia ás vezes a ponta d'um cigarro; aqui, além tossia-se; e o moço do padeiro, no silencio quente da noite, harpejava baixinho a guitarra.


Juliana pozera um vestido de chita claro; dous sujeitos que estavam á porta do estanque riam, erguiam de vez em quando os olhos para a janella, para aquelle vulto branco de mulher: Juliana, então, gozou! Tomavam-na de certo pela senhora, pela do Engenheiro; faziam-lhe «olho», diziam brejeirices... Um tinha calça branca e chapéo alto, eram janotas... E com os pés muito estendidos, os braços cruzados, a cabeça de lado, saboreava, longamente, aquella consideração.


Passos fortes que subiam a rua, pararam á porta; a campainha retiniu de leve.


—Quem é?—perguntou muito impaciente.


—Está?—disse a voz grossa de Sebastião.


—Sahiu com a D. Felicidade, foram de carruagem.


—Ah!—fez elle.


E acrescentou:


—Muito bonita noite!


—D'appetite, snr. Sebastião! d'appetite!—exclamou alto.


E quando o viu descer a rua, gritou, affectadamente:


—Recados a Joanna! Não se esqueça!—mostrando-se intima, madama, com olho terno para os homens.



Áquella hora D. Felicidade e Luiza chegavam ao Passeio.


Era beneficio; já de fóra se sentia o brouhaha lento e monotono, e via-se uma nevoa alta de poeira, amarellada e luminosa.


Entraram. Logo ao pé do tanque encontraram Bazilio. Fez-se muito surprehendido, exclamou:


—Que feliz acaso!


Luiza corou, apresentou-o a D. Felicidade.


A excellente senhora teve muitos sorrisos. Lembrava-se d'elle, mas se não lhe dissessem talvez o não conhecesse! Estava muito mudado!


—Os trabalhos, minha senhora...—disse Bazilio curvando-se.


E acrescentou rindo, batendo com a bengala na pedra do tanque:


—E a velhice! Sobretudo a velhice!


Na agua escura e suja as luzes do gaz torciam-se até uma grande profundidade. As folhagens em redor estavam immoveis, no ar parado, com tons d'um verde livido e artificial. Entre os dous longos renques parallelos d'arvores mesquinhas, entremeadas de candieiros de gaz, apertava-se, n'um empoeiramento de macadam, uma multidão compacta e escura; e através do rumor grosso, as saliencias metallicas da musica faziam passar no ar pesado, compassos vivos de valsa.


Tinham ficado parados, conversando.


Que calor, hein? Mas a noite estava linda! Nem uma aragem! que enchente!


E olhavam a gente que entrava: moços muito frisados, com calças côr de flôr d'alecrim, fumando ceremoniosamente os charutos do dia santo; um aspirante com a cinta espartilhada e o peito enchumaçado; duas meninas de cabello riçado, de movimentos gingados que lhe desenhavam os ossos das omoplatas sob a fazenda do vestido atabalhoado; um ecclesiastico côr de cidra, o ar molle, o cigarro na bocca, e lunetas defumadas; uma hespanhola com dous metros de saia branca muita rija, fazendo ruge-ruge na poeira; o triste Xavier, poeta; um fidalgo de jaquetão e bengalão, de chapéo na nuca, o olho avinhado; e Bazilio ria muito de dous pequenos que o pai conduzia com um ar hilare e compenetrado—vestidos d'azul claro, a cinta ligada n'uma facha escarlate, barretinas de lanceiro, botas á hungara, cretinos e somnambulos.


Um sujeito alto então passou rente d'elles, e voltando-se, revirou para Luiza dous grandes olhos langorosos e prateados: tinha uma pera longa e aguçada; trazia o collete decotado mostrando um bello peitilho, e fumava por urna boquilha enorme que representava um zuavo.


Luiza quiz-se sentar.


Um garoto de blusa, sujo como um esfregão, correu a arranjar cadeiras; e acommodaram-se ao pé d'uma familia acabrunhada e taciturna.


—Que fizeste tu hoje, Bazilio?—perguntou Luiza.


Tinha ido aos touros.


—E que tal? Gostaste?


—Uma semsaboria. Se não fosse pelo trambolhão do Peixinho tinha-se morrido de pasmaceira. Gado fraco, cavalleiros infelizes, nenhuma sorte! Touros em Hespanha! Isso sim!


D. Felicidade protestou. Que horror! Tinha-os visto em Badajoz, quando estivera de visita em Elvas á tia Francisca de Noronha, e ia desmaiando. O sangue, as tripas dos cavallos... Pouh! É muito cruel!


Bazilio disse, com um sorriso:


—Que faria se visse os combates de gallos, minha senhora!


D. Felicidade tinha ouvido contar,—mas achava todos esses divertimentos barbaros, contra a religião.


E recordando um gozo que lhe punha um riso na face gorda:


—P'ra mim não ha nada como uma boa noite de theatro! Nada!


—Mas aqui representam tão mal!—replicou Bazilio com uma voz desolada.—Tão mal, minha rica senhora!


D. Felicidade não respondeu; meio erguida na cadeira, o olhar avivado d'um brilho humido, saudava desesperadamente com a mão:


—Não me viu—disse desconsolada.


—Era o conselheiro?—perguntou Luiza.


—Não. Era a condessa d'Alviella. Não me viu! Vai muito á Encarnação, sou muito d'ella. É um anjo! Não me viu. Ia com o sogro.


Bazilio não tirava os olhos de Luiza. Sob o véo branco, á luz falsa do gaz, no ar ennevoado da poeira, o seu rosto tinha uma fórma alva e suave, onde os olhos que a noite escurecia punham uma expressão apaixonada; os cabellinhos louros, frisados, tornando a testa mais pequena, davam-lhe uma graça ameninada e amorosa; e as luvas gris-perle faziam destacar sobre o vestido negro o desenho elegante das mãos, que ella pousára no regaço, sustentando o leque, com uma fofa renda branca em torno dos seus pulsos finos.


—E tu, que fizeste hoje?—perguntou-lhe Bazilio.


Tinha-se aborrecido muito. Estivera todo o santo dia a lêr.


Tambem elle passára a manhã deitado no sophá a lêr a Mulher de fogo de Belot. Tinha lido, ella?


—Não, que é?


—É um romance, uma novidade.


E acrescentou sorrindo:


—Talvez um pouco picante; não t'o aconselho!


D. Felicidade andava a lêr o Rocambole. Tanto lh'o tinham apregoado! Mas era uma tal trapalhada! Embrulhava-se, esquecia-se... E ia deixar, porque tinha percebido que a leitura lhe augmentava a indigestão.


—Soffre?—perguntou Bazilio, com um interesse bem educado.


D. Felicidade contou logo a sua dyspepsia. Bazilio aconselhou-lhe o uso do gelo.—De resto felicitava-a, porque as doenças d'estomago, ultimamente, tinham muito chic. Interessou-se pela d'ella, pediu pormenores.


D. Felicidade prodigalisou-os; e, fallando, via-se-lhe crescer no olhar, na voz a sua sympathia por Bazilio. Havia de usar o gelo!


—Com o vinho, já se sabe?


—Com o vinho, minha senhora!


—E olha que talvez!—exclamou D. Felicidade, batendo com o leque no braço de Luiza, já esperançada.


Luiza sorriu, ia responder—mas viu o sujeito pallido da pera longa que fitava n'ella os seus olhos langorosos, com obstinação. Voltou o rosto importunada. O sujeito afastou-se, retorcendo a ponta da pera.


Luiza sentia-se molle; o movimento rumoroso e monotono, a noite calida, a accumulação da gente, a sensação de verdura em redor davam ao seu corpo de mulher caseira um torpor agradavel, um bem estar d'inercia, envolviam-na n'uma doçura emolliente de banho morno. Olhava com um vago sorriso, o olhar frouxo; quasi tinha preguiça de mexer as mãos, d'abrir o leque.


Bazilio notou o seu silencio.—Tinha somno?


D. Felicidade sorriu com finura.


—Ora, vê-se sem o seu maridinho! Desde que o não tem está esta mona que se vê.


Luiza respondeu, olhando Bazilio instinctivamente:


—Que tolice! Até estes dias tenho andado bem alegre!


Mas D. Felicidade insistia:


—Ora, bem sabemos, bem sabemos. Esse coraçãosinho está no Alemtejo!


Luiza disse, com impaciencia:


—Não has-de querer que me ponha aos pulos e ás gargalhadas no Passeio.


—Está bem, não te enfureças!—exclamou D. Felicidade. E para Bazilio:—Que geniosinho, hein!


Bazilio pôz-se a rir.


—A prima Luiza antigamente era uma vibora. Agora não sei...


D. Felicidade acudiu:


—É uma pomba, coitada, é uma pomba! Não, lá isso, é uma pomba.


E envolvia-a n'um olhar maternal.


Mas a familia taciturna ergueu-se, sem ruido,—e as meninas adiante, os paes atraz, afastaram-se lugubremente, succumbidos.


Bazilio immediatamente apossou-se da cadeira ao pé de Luiza,—e vendo D. Felicidade a olhar distrahida:


—Estive para te ir vêr de manhã—disse baixinho a Luiza.


Ella ergueu a voz, muito naturalmente, com indifferença:


—E porque não foste? Tinhamos feito musica. Fizeste mal. Devias ter ido...


D. Felicidade quiz então saber as horas. Começava a enfastiar-se. Tinha esperado encontrar o conselheiro: por elle, para lhe parecer bem, fizera o sacrificio de se apertar; Accacio não vinha, os gazes começavam a affrontal-a; e o despeito d'aquella ausencia augmentava-lhe a tortura da digestão. Na sua cadeira, com o corpo molle, ia seguindo a multidão que girava incessantemente, n'uma nevoa empoeirada.


Mas a musica, no coreto, bateu de repente, alto, a grande ruido de cobres, os primeiros compassos impulsivos da marcha do Fausto. Aquillo reanimou-a. Era um pot-pourri da opera,—e não havia musica de que gostasse mais. Estaria para a abertura de S. Carlos, o snr. Bazilio?


Bazilio disse, com uma intenção, voltando-se para Luiza:


—Não sei, minha senhora, depende...


Luiza olhava, calada. A multidão crescera. Nas ruas lateraes mais espaçosas, frescas, passeavam apenas, sob a penumbra das arvores, os acanhados, as pessoas de luto, os que tinham o fato coçado. Toda a burguezia domingueira viera amontoar-se na rua do meio, no corredor formado pela filas cerradas das cadeiras do asylo: e alli se movia entalada, com a lentidão espessa d'uma massa mal derretida, arrastando os pés, raspando o macadam, n'um amarfanhamento plebeu, a garganta secca, os braços molles, a palavra rara. Iam, vinham, incessantemente, para cima e para baixo, com um bamboleamento relaxado e um rumor grosso, sem alegria e sem bonhomia, no arrebanhamento passivo que agrada ás raças mandrionas: no meio da abundancia das luzes e das festividades da musica, um tedio morno circulava, penetrava como uma nevoa: a poeirada fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom neutro; e nos rostos que passavam sob os candieiros, nas zonas mais directas de luz, viam-se desconsolações de fadiga e aborrecimentos de dia santo.


Defronte as casas da rua Occidental tinham na sua fachada o reflexo claro das luzes do Passeio; algumas janellas estavam abertas; as cortinas de fazenda escura destacavam sobre a claridade interior dos candieiros. Luiza sentia como uma saudade de outras noites de verão, de serões recolhidos. Onde? Não se lembrava. O movimento então retrahia-a; e encontrava em face, fitando-a n'uma attitude lugubre, o sujeito da pera longa. Debaixo do véo sentia a poeira arder-lhe nos olhos: em redor d'ella gente bocejava.


D. Felicidade propoz uma volta. Levantaram-se, foram rompendo devagar; as filas das cadeiras apertavam-se compactamente, e uma infinidade de faces a que a luz do gaz dava o mesmo tom amarellado olhavam de um modo fixo e cançado, n'um abatimento de pasmaceira. Aquelle aspecto irritou Bazilio, e como era difficil andar lembrou—«que se fossem d'aquella semsaboria».


Sahiram. Em quanto elle ia comprar os bilhetes, D. Felicidade, deixando-se quasi cahir n'um banco sob a folhagem d'um chorão, exclamou afflicta:


—Ai filha! Estou que arrebento!


Passava a mão no estomago, tinha a face envelhecida.


—E o conselheiro, que me dizes? Olha que já é pouca sorte! Hoje que eu vim ao Passeio...


Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:


—É muito sympathico, teu primo! E que maneiras! Um verdadeiro fidalgo. Que elles conhecem-se, filha!


Declarou-se muito fatigada, apenas sahiram o portão. Era melhor tomarem um trem.


Bazilio achava preferivel subirem a pé até ao largo do Loreto. A noite estava tão agradavel! E o andar fazia bem á snr.a D. Felicidade!


Depois diante do Martinho, fallou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava a frialdade, Luiza tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornaes enxovalhados; e algum raro individuo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.


No Rocio, sob as arvores, passeava-se: pelos bancos, gente immovel parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéo na mão, abanando-se, o collete desabotoado; a cada canto se apregoava agua fresca «do Arsenal»; em torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céo abafava,—e na noite escura, a columna da estatua de D. Pedro tinha o tom baço e pallido de uma vela de estearina colossal e apagada.


Bazilio, ao pé de Luiza, ia calado. Que horror de cidade!—pensava—Que tristeza! E lembrava-lhe Paris, de verão: subia, á noite, no seu phaeton, os Campos Elyseos devagar: centenares de victorias descem, sobem rapidamente, com um trote discreto e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de pontos de luz; vultos brancos e mimosos de mulheres reclinam-se nas almofadas, balançadas nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura avelludada, e os castanheiros espalham um aroma subtil. Dos dous lados, d'entre os arvoredos, saltam as claridades violentas dos cafés cantantes, cheios do brouhaha das multidões alegres, dos brios impulsivos das orchestras; os restaurantes flammejam; ha uma intensidade de vida amorosa e feliz; e, para além, sahe das janellas dos palacetes, através dos stores de sêda, a luz sobria e velada das existencias ricas. Ah! se lá estivesse!—Mas ao passar junto dos candieiros olhava de lado para Luiza: o seu perfil fino sob o véo branco tinha uma grande doçura; o vestido prendia bem a curva do seu peito; e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava a linha da cinta de um modo languido e promettedor.


Veio-lhe uma certa idéa, começou a dizer: Que pena que não houvesse em toda a Lisboa um restaurante, onde se podesse ir tomar uma aza de perdiz e beber uma garrafa de champagne frappée!


Luiza não respondeu. Devia ser delicioso—pensava.—Mas D. Felicidade exclamou:


—Perdiz, a esta hora!


—Perdiz ou outra qualquer cousa.


—Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!


Subiam pela rua Nova do Carmo. Os candieiros davam uma luz mortiça: as altas casas dos dous lados, apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e a patrulha muito armada, descia passo a passo, sem ruido, sinistra e subtil.


Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os com cautelas de loteria; a sua voz aguda e chorosa promettia a fortuna, muitos contos de reis. D. Felicidade ainda parou, com uma tentação... Mas uma troça de rapazes bebedos que descia de chapéo na nuca, fallando alto, aos tropeções, assustou muito as duas senhoras. Luiza encolheu-se logo contra Bazilio, D. Felicidade enfiada agarrou-lhe anciosamente o braço, quiz-se metter n'uma carruagem; e até ao Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos, com a voz atarantada, contando casos, facadas, sem largar o braço de Bazilio. Da fileira de tipoias, ao lado das grades da praça de Camões, um cocheiro lançou logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada, apanhando confusamente as rédeas, com grandes chicotadas na parelha, muito excitado, gritando:


—Prompto, meu amo, prompto!


Demoraram-se um momento ainda conversando. Um homem então passou, rondou,—e Luiza desesperada reconheceu os olhos acarneirados do sujeito da pera.


Entraram para a caleche. Luiza ainda se voltou para vêr Bazilio immovel no largo, com o seu chapéo na mão: depois accommodou-se, pôz os pésinhos no outro assento e balançada pelo trote largo viu passar, calada, as casas apagadas da rua de S. Roque, as arvores de S. Pedro de Alcantara, as fachadas estreitas do Moinho de Vento, os jardins adormecidos da Patriarchal. A noite estava immovel, de um calor molle: e desejava, sem saber porque, rolar assim sempre, infinitamente, entre ruas, entre grades cheias de folhagem de quintas nobres, sem destino, sem cuidados, para alguma cousa de feliz que não distinguia bem! Um grupo defronte da Escóla ia tocando o Fado do Vimioso; aquelles sons entraram-lhe na alma como um vento dôce, que fazia agitar brandamente muitas sensibilidades passadas: suspirou baixo.


—Um suspirosinho que vai para o Alemtejo—disse D. Felicidade, tocando-lhe o braço.


Luiza sentiu todo o sangue abrazar-lhe o rosto. Davam onze horas quando entrou em casa.


Juliana veio alumiar.—O chá estava prompto, quando a senhora quizesse...


Luiza subiu d'ahi a pouco com um largo roupão branco, muito fatigada, estendeu-se na voltaire; sentia vir-lhe uma somnolencia, a cabeça pendia-lhe, cerrava as palpebras... E Juliana tardava tanto com o chá! Chamou-a. Onde estava? credo!


Tinha descido, pé ante pé, ao quarto de Luiza. E ahi tomando o vestido, as saias engommadas que ella despira e atirára para cima da causeuse, desdobrou-as, revirou-as, examinou-as, e com uma certa idéa, cheirou-as! Havia o vago aroma de um corpo lavado e quente, com uma pontinha de suor e de agua de colonia. Quando a sentiu chamar, impacientar-se em cima, subiu, correndo.—Fôra abaixo dar uma arrumadella. Era o chá? Estava prompto...


E entrando com as torradas:


—Veio ahi o snr. Sebastião, haviam de ser nove horas...


—Que lhe disse?


—Que a senhora tinha sahido com a snr.a D. Felicidade. Como não sabia, não disse para onde.


E acrescentou:


—Esteve a conversar commigo, o snr. Sebastião... Esteve a conversar mais de meia hora!...



Luiza recebeu, na manhã seguinte, da parte de Sebastião, um ramo de rosas, magenta-escuro, magnificas. Cultivava-as elle na quinta de Almada, e chamavam-se rosas D. Sebastião. Mandou-as pôr nos vasos da sala, e como o dia estava encoberto, de um calor baixo e suffocante:


—Olhe—disse a Juliana—abra as janellas.


—Bem—pensou Juliana—temos cá o melro.


O melro veio com effeito ás tres horas. Luiza estava na sala, ao piano.


—Está alli o sujeito do costume—foi dizer Juliana.


Luiza voltou-se corada, escandalisada da expressão:


—Ah! meu primo Bazilio? Mande entrar.


E chamando-a:


—Ouça, se vier o snr. Sebastião, ou alguem, que entre.


Era o primo! O sujeito, as suas visitas perderam de repente para ella todo o interesse picante. A sua malicia cheia, enfunada até ahi, cahiu, engelhou-se como uma vela a que falta o vento. Ora, adeus! Era o primo!


Subiu á cozinha, devagar,—lograda.


—Temos grande novidade, snr.a Joanna! O tal peralta é primo. Diz que é o primo Bazilio.


E com um risinho:


—É o Bazilio! Ora o Bazilio! Sahe-nos primo á ultima hora! O diabo tem graça!


—Então que havia de o homem ser senão parente?—observou Joanna.


Juliana não respondeu. Quiz saber se estava o ferro prompto, que tinha uma carga de roupa para passar! E sentou-se á janella, esperando. O céo baixo e pardo pesava, carregado de electricidade; ás vezes uma aragem subita e fina punha nas folhagens dos quintaes um arripio tremulo.


—É o primo!—reflectia ella.—E só vem então quando o marido se vai. Boa! E fica-se toda no ar quando elle sahe, e é roupa branca e mais roupa branca, e roupão novo, e tipoia para o passeio, e suspiros e olheiras! Boa bebeda! Tudo fica na familia!


Os olhos luziam-lhe. Já se não sentia tão lograda. Havia alli muito «para vêr e para escutar». E o ferro, estava prompto?


Mas a campainha, em baixo, tocou.


—Boa! isto agora é um fadario! Estamos na casa do despacho!


Desceu; e exclamou logo, vendo Julião com um livro debaixo do braço:


—Faz favor d'entrar, snr. Julião! A senhora está com o primo, mas diz que mandasse entrar!


Abriu a porta da sala bruscamente, de surpreza.


—Está aqui o snr. Julião—disse com satisfação.


Luiza apresentou os dous homens.


Bazilio ergueu-se do sophá languidamente, e, n'um relance, percorreu Julião desde a cabelleira desleixada até ás botas mal engraxadas, com um olhar quasi horrorisado.


—Que pulha!—pensou.


Luiza, muito fina, percebeu, e córou, envergonhada de Julião.


Aquelle homem de collarinho enxovalhado e com um velho casaco de pano preto mal feito—que idéa daria a Bazilio das relações, dos amigos da casa! Sentia já o seu chic diminuido. E instinctivamente, a sua physionomia tornou-se muito reservada,—como se semelhante visita a surprehendesse! semelhante toilette a indignasse!


Julião percebeu o constrangimento d'ella, disse, já embaraçado, ageitando a luneta:


—Passei por aqui por acaso, entrei a saber se ha algumas noticias de Jorge...


—Obrigada. Sim, tem escripto. Está bem...


Bazilio, recostado no sophá, como um parente intimo, examinava a sua meia de sêda bordada de estrellinhas escarlates, e cofiava indolentemente o bigode, arrebitando um pouco o dedo minimo,—onde brilhavam, em dous grossos anneis d'ouro, uma saphira e um rubi.


A affectação da attitude, o reluzir das joias irritaram Julião.


Quiz mostrar tambem a sua intimidade, os seus direitos, disse:


—Eu não tenho vindo fazer-lhe um bocado de companhia, porque tenho estado muito occupado...


Luiza acudiu para desauthorisar logo aquella familiaridade:


—Eu tambem não me tenho achado bem. Não tenho recebido ninguem,—a não ser meu primo, naturalmente!


Julião sentiu-se renegado! E todo vermelho, de surpreza, d'indignação, ficou a balançar a perna, calado, com o livro sobre o joelho; como a calça era curta, via-se o elastico esfiado das botas velhas.


Houve um silencio difficil.


—Bonitas rosas!—disse emfim Bazilio, preguiçosamente.


—Muito bonitas!—respondeu Luiza.


Estava agora compadecida de Julião, procurava uma palavra; disse-lhe emfim muito precipitadamente:


—E que calor! É de morrer! Tem havido muitas doenças?


—Colerinas—respondeu Julião.—Por causa das frutas. Doenças de ventre.


Luiza baixou os olhos. Bazilio então começou a fallar da viscondessinha d'Azeias: tinha-a achado acabada; e que era feito da irmã, da grande?


Aquella conversação sobre fidalgas que elle não conhecia isolava mais Julião: sentia o suor humedecer-lhe o pescoço; procurava um dito, uma ironia, uma agudeza; e machinalmente abria e fechava o seu grosso livro de capa amarella.


—É algum romance?—perguntou-lhe Luiza.


—Não. É o tratado do dr. Lee sobre doenças d'utero.


Luiza fez-se escarlate: Julião tambem, furioso da palavra que lhe escapára. E Bazilio, depois de sorrir, perguntou por uma certa D. Raphaela Grijó, que costumava ir á rua da Magdalena, que usava luneta, e tinha um cunhado gago...


—Morreu-lhe o marido. Casou com o cunhado.


—Com o gago?


—Sim. Tem um filhito d'elle, gago tambem.


—Que conversação, em familia! E a D. Eugenia, a de Braga?


Julião, exasperado, ergueu-se; e com uma voz de garganta secca:


—Estou com pressa, não me posso demorar. Quando escrever a Jorge, os meus recados, hein?


Abaixou bruscamente a cabeça a Bazilio. Mas não achava o chapéo, tinha rolado para debaixo d'uma cadeira. Embrulhou-se no reposteiro, topou violentamente contra a porta fechada, e sahiu emfim desesperado, desejando vingar-se, odiando Luiza, Jorge, o luxo, a vida,—transbordando agora d'ironias, de ditos, de réplicas. Devia-os ter achatado, o asno e a tola... E não lhe acudira nada!


Mas apenas elle tinha fechado a cancella, Bazilio pôz-se de pé, e cruzando os braços:


—Quem é este pulha?


Luiza córou muito, balbuciou:


—É um rapaz medico...


—É uma creatura impossivel, é uma especie d'estudante!


—Coitado, não tem muitos meios...


Mas não era necessario ter meios para escovar o casaco e limpar a caspa! Não devia receber semelhante homem! Envergonha uma casa. Se seu marido gostava d'elle, que o recebesse no escriptorio!...


Passeava pela sala, excitado, com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar o dinheiro e as chaves.


—São frescos os amigos da casa!...—continuou.—Que diabo! tu não foste educada assim. Nunca tiveste gente d'este genero na rua da Magdalena.


Não tivera: e pareceu-lhe que as ligações do casamento lhe tinham trazido um pouco o plebeismo das convivencias. Mas um respeito pelas opiniões, pelas sympathias de Jorge fez-lhe dizer:


—Diz que tem muito talento...


—Era melhor que tivesse botas.


Luiza, por cobardia, concordou.


—Tambem o acho exquisito!—disse.


—Horrivel, minha filha!


Aquella palavra fez-lhe bater o coração. Era assim que elle lhe chamava, outr'ora! Houve um momento de silencio:—e a campainha da porta retiniu fortemente.


Luiza ficou assustada. Jesus! Se fosse Sebastião! Bazilio achal-o-hia ainda mais reles! Mas Juliana veio dizer:


—O snr. conselheiro. Mando entrar?


—De certo—exclamou.


E a alta figura d'Accacio adiantou-se, com as bandas do casaco d'alpaca deitadas para traz, a calça branca muito engommada cahindo sobre sapatos de entrada abaixo, de laço.


Apenas Luiza lhe apresentou o primo Bazilio, disse logo, respeitoso:


—Já sabia que v. exc.a tinha chegado, vi-o nas interessantes noticias do nosso high-life. E do nosso Jorge?


Jorge estava em Beja... Diz que se aborrece muito...


Bazilio, mais amavel, deixou cahir:


—Eu realmente não tenho a menor idéa do que se possa fazer em Beja. Deve ser horroroso!


O conselheiro, passando sobre o bigode a sua mão branca onde destacava o annel d'armas, observou:


—É todavia a capital do districto!


Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e era a capital do reino!—E Bazilio puxava, todo recostado, o punho da camisa.—Morria-se positivamente de pasmaceira!


Luiza, muito contente da affabilidade de Bazilio, pôz-se a rir:


—Não digas isso diante do conselheiro. É um grande admirador de Lisboa.


Accacio curvou-se:


—Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica senhora.


E com muita bonhomia:


—Conheço porém que não é para comparar aos Parizes, ás Londres, ás Madrids...


—De certo—fez Luiza.


E o conselheiro continuou com pompa:


—Lisboa porém tem bellezas sem igual! A entrada, ao que me dizem (eu nunca entrei a barra), é um panorama grandioso, rival das Constantinoplas e das Napoles. Digno da penna d'um Garrett ou d'um Lamartine! Proprio para inspirar um grande engenho!...


Luiza, receando citações ou apreciações litterarias, interrompeu-o, perguntou-lhe o que tinha feito? Tinham estado domingo no Passeio, ella e D. Felicidade, tinham esperado vêl-o, e nada!


Nunca ia ao Passeio, ao domingo—declarou.—Reconhecia que era muito agradavel, mas a multidão entontecia-o. Tinha notado,—e a sua voz tomou o tom espaçado d'uma revelação,—tinha notado que muita gente, n'um local, causa vertigens aos homens d'estudo. De resto queixou-se da sua saude e do peso dos seus trabalhos. Andava compilando um livro e usando as aguas de Vichy.


—Pódes fumar—disse Luiza de repente, sorrindo, a Bazilio.—Queres lume?


Ella mesmo lhe foi buscar um phosphoro, toda ligeira, feliz. Tinha um vestido claro, um pouco transparente, muito fresco. Os seus cabellos pareciam mais louros, a sua pelle mais fina.


Bazilio soprou o fumo do charuto, e declarou muito reclinado:


—O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!...


O conselheiro reflectiu e respondeu:


—Não serei tão severo, snr. Brito!—Mas parecia-lhe que com effeito antigamente era uma diversão mais agradavel.—Em primeiro lugar—exclamou com muita convicção, endireitando-se—nada, mas nada, absolutamente nada póde substituir a charanga da Armada!—Além d'isso havia a questão dos preços... Ah! tinha estudado muito o assumpto! Os preços diminutos favoreciam a agglomeração das classes subalternas... Que longe do seu pensamento lançar desdouro n'essa parte da população... As suas idéas liberaes eram bem conhecidas.—Appéllo para a snr.a D. Luiza!—disse.—Mas emfim, sempre era mais agradavel encontrar uma roda escolhida! Em quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! N'esses dias, sim, ia vêr por fóra das grades. Não por economia! De certo não. Não era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta. Mas é que receava os accidentes! É que os receava muito! Contou a historia d'um sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furára o craneo.—E além d'isso nada mais facil que cahir uma fagulha accesa na cara, n'um paletot novo...—É conveniente ter prudencia—resumiu, compenetrado, limpando os beiços com o lenço de sêda da India muito enrolado.


Fallaram então da estação: muita gente fôra para Cintra: de resto, Lisboa no verão era tão seccante!... E o conselheiro declarou que Lisboa só era imponente, verdadeiramente imponente, quando estavam abertas as camaras e S. Carlos!


—Que estavas tu a tocar quando eu entrei?—perguntou Bazilio.


O conselheiro acudiu logo:


—Se estavam fazendo musica, por quem são... Sou um velho assignante de S. Carlos, ha dezoito annos...


Bazilio interrompeu-o:


—Toca?


—Toquei. Não o occulto. Em rapaz fui dado á flauta.


E acrescentou, com um gesto benevolo:


—Rapaziadas!... Alguma novidade, o que estava tocando, D. Luiza?


—Não! Uma musica muito conhecida, já antiga: a Filha do Pescador, de Meyerbeer! Tenho a letra traduzida.


Tinha cerrado as vidraças, sentára-se ao piano.


—O Sebastião é que toca isto bem, não é verdade, conselheiro?


—O nosso Sebastião—disse o conselheiro com authoridade—é um rival dos Thalbergs e dos Litz. Conhece o nosso Sebastião?—perguntou a Bazilio.


—Não, não conheço.


—Uma perola!


Bazilio tinha-se aproximado do piano devagar, frisando o bigode.


—Tu ainda cantas?—perguntou-lhe Luiza, sorrindo.


—Quando estou só.


Mas o conselheiro pediu-lhe logo um «trecho». Bazilio ria. Tinha medo d'escandalisar um velho assignante de S. Carlos...


O conselheiro animou-o; disse mesmo paternalmente:


—Coragem, snr. Brito, coragem!


Luiza então preludiou.


E Bazilio soltou logo a voz, cheia, bem timbrada, de barytono; as suas notas altas faziam a sala sonora. O conselheiro, direito na poltrona, escutava concentrado; a sua testa, franzida n'um vinco, parecia curvar-se sob uma responsabilidade de juiz; e as lunetas defumadas destacavam, com reflexos escuros, n'aquella physionomia de calvo, que o calor tornava mais pallida.


Bazilio dizia com uma melancolia grave a primeira phrase, tão larga, da canção:


O Primo Bazilio: Episodio Domestico

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