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VI

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Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em commodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S. Joanneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o «quarto do senhor parocho andava que nem um brinco»! Amelia tinha com elle uma familiaridade picante de parenta bonita: «tinham calhado um com outro», como dissera, encantada, D. Maria da Assumpção. Os dias iam assim passando para Amaro, faceis, com boa mesa, colchões macios e a convivencia meiga de mulheres. A estação ia tão linda que até as tilias floresceram no jardim do Paço: «quasi milagre»! disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janella do seu quarto, em robe-de-chambre, citava versos das Eclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrella, dos desconsolos do seminario e do aspero inverno na Gralheira—aquella vida em Leiria era para Amaro como uma casa sêcca e abrigada onde o alegre lume estala e a sôpa cheirosa fumega, depois d'uma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.


Ia cedo dizer missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de casimira, meias de lã por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquella hora só algumas devotas, com o mantéo escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé d'um altar envernizado de branco.


Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no lagedo, emquanto o sacristão, pachorrento, contava «as novidades do dia».


Depois, com o calice na mão, d'olhos baixos, passava á igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do Santissimo Sacramento, subia devagar ao altar onde as duas velas de cera esmoreciam com uma claridade pallida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:


—Introibo ad altare Dei.


—Ad Deum qui lætificat juventutem meam, resmungava, n'um latim syllabado, o sacristão.


Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida. «Estava agora habituado», dizia. E como não ceava, e áquella hora, em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia appetite, engorolava depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. Por traz o sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando de revez para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que elle «trazía d'olho» desde a Paschoa. Largas resteas de sol cahiam das janellas lateraes. Um vago aroma de junquilhos sêccos adocicava o ar.


Amaro, depois de recitar rapidamente o Offertorio, limpava o calice com o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas, apresentava-as, curvado—e Amaro sentia o cheiro do oleo rançoso que lhe reluzia no cabello. N'aquella parte da missa, por um antigo habito de emoção mystica, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza, a exhortação universal á oração—Orate, fratres! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, d'onde pendiam grandes rosarios negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por traz d'elle, sustentando ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a hostia—Hoc est enim corpus meum!—elevando alto os braços para o Christo cheio de chagas rôxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silencio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo lageado da Sé, à volta do mercado.


—Ite, missa est! dizia Amaro emfim.


—Deo gratias! respondia o sacristão respirando alto, com o allivio da obrigação finda.


E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joanneira e nas boas torradas. Áquella hora já Amelia o esperava com o cabello cahido sobre o penteador, tendo na pelle fresca um bom cheiro de sabão d'amendoas.


Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar onde a S. Joanneira e Amelia costuravam. «Estava aborrecido em baixo, vinha um bocado para o cavaco», dizia. A S. Joanneira, n'uma cadeira pequena, ao pé da janella, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na ponta do nariz. Amelia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado: a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nitida, um pouco afogada na abundancia do cabello; os seus grandes brincos de ouro, em fórma de pingos de cera, oscillavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras leves côr de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pelle de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu peito cheio respirava devagar. Ás vezes, cravando a agulha na fazenda, espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amaro gracejava:


—Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!


Ella ria; conversavam. A S. Joanneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia quem offerecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a Ruça vinha ao armario buscar um prato ou uma colhér: então fallava-se do preço dos generos, do que havia para o jantar. A S. Joanneira tirava as lunetas, traçava a perna e, balouçando o pé calçado n'uma chinela d'ourelo, punha-se a dizer os pratos:


—Hoje temos grão de bico. Não sei se o senhor parocho gostará, foi para variar...


Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria affinidade de gostos com Amelia.


Depois, animando-se, bolia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrára uma carta; perguntou-lhe pelo derriço; ella respondeu, picando vivamente o posponto:


—Ai! a mim ninguem me quer, senhor parocho...


—Não é tanto assim, acudiu elle.—Mas suspendeu-se, muito vermelho, affectando tossir.


Amelia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha de retroz que ella ia dobar.


—Deixe fallar, senhor parocho! exclamou a S. Joanneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...


Mas Amaro promptificou-se, rindo, todo contente:—elle estava alli para o que quizessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem! E as duas mulheres riam, d'um riso calido, enlevadas n'aquellas maneiras do senhor parocho, «que até tocavam o coração»! Ás vezes Amelia pousava a costura e tomava o gato no collo; Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do Maltez que se arredondava, fazendo um ron-ron de gozo.


—Gostas? dizia ella ao gato, um pouco córada, com os olhos muito ternos.


E a voz de Amaro murmurava, perturbada:


—Bichaninho gato! bichaninho gato!


Depois a S. Joanneira erguia-se para dar o remedio á idiota ou ir palrar á cozinha. Elles ficavam sós; não fallavam, mas os seus olhos tinham um longo dialogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente. Então Amelia cantarolava baixo o Adeus ou o Descrente: Amaro accendia o seu cigarro, e escutava bamboleando a perna.


—É tão bonito isso! dizia.


Amelia cantava mais accentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, mirava o alinhavado ou o posponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.


Amaro achava aquellas unhas admiraveis, porque tudo que era ella ou vinha d'ella lhe parecia perfeito: gostava da côr dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabellos, e olhava até com ternura para as saias brancas que ella punha a seccar á janella do seu quarto, enfiadas n'uma cana. Nunca estivera assim na intimidade d'uma mulher. Quando percebia a porta do quarto d'ella entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas d'um paraiso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficára sobre o bahú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pallido. E não se saciava de a vêr fallar, rir, andar com as saias muito engommadas que batiam as hombreiras das portas estreitas. Ao pé d'ella, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre: o Sacerdocio, Deus, a Sé, o Peccado ficavam em baixo, longe; via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como d'um monte se vêem as casas desapparecer no nevoeiro dos valles; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.


Ás vezes revoltava-se contra estes desfallecimentos, batia o pé:


—Que diabo, é necessario ter juizo! é necessario ser homem!


Descia, ia folhear o seu Breviario; mas a voz de Amelia fallava em cima, o tic-tic das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção cahia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cerebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, soffria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a vêr, estar longe de Leiria, n'uma aldeia solitaria, entre gente pacifica, com uma criada velha cheia de proverbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os gallos cacarejam ao sol! Mas Amelia, de cima, chamava-o—e o encanto recomeçava, mais penetrante.


A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joanneira trinchava, emquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A Ruça, cada dia mais etica, servia mal, sempre a tossir: Amelia ás vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, attencioso.


—Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor parocho! dizia ella. E punha-lhe a mão no hombro, e os seus olhos encontravam-se.


Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estomago, sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas; ás vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amelia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia «que muito lhe pezava não ter uma irmãzinha assim»!


Amelia gostava de ensopar o miolo de pão no môlho do guisado; a mãi dizia-lhe sempre:


—Embirro que faças isso diante do senhor parocho.


E elle então rindo:


—Pois olhe, também eu gósto. Sympathia! magnetismo!


E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepusculo crescia, a Ruça trazia o candieiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava á S. Joanneira mamã; Amelia sorria, d'olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. D'ahi a pouco vinha o café; o o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.


Áquella hora apparecia sempre o conego Dias; sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:


—Licença para dois!


Era elle e a cadella, a Trigueira.


—Ora Nosso Senhor nos dê muito boas noites! dizia assomando á porta.


—Vai a gotinha de café, senhor conego? perguntava logo a S. Joanneira.


Elle sentava-se, exhalando um profundo uff!—Vá lá a gotinha do café! E batendo no hombro do parocho, olhando para a S. Joanneira:


—Então como vai cá o seu menino?


Riam; vinham as historias do dia. O conego costumava trazer no bolso o Diario Popular; Amelia interessava-se pelo romance, a S. Joanneira pelas correspondencias amorosas nos annuncios.


—Ora vejam que pouca vergonha!... dizia ella, deliciando-se.


Amaro então fallava de Lisboa, de escandalos que lhe contára a tia, dos fidalgos que conhecera «em casa do senhor conde de Ribamar». Amelia, enlevada, escutava-o com os cotovêlos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.


Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã raineta, fazendo debaixo da roupa uma saliencia quasí imperceptivel, fixava em todos, com custo, os seus olhinhos concavos e chorosos.


—É o senhor parocho, tia Gertrudes! gritava-lhe Amelia ao ouvido. Vem vêr como está.


A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:


—Ah! é o menino!


—É o menino, é, diziam rindo.


E a velha ficava a murmurar, espantada:


—É o menino, é o menino!


—Pobre de Christo! dizia Amaro. Pobre de Christo! Deus lhe dê uma boa morte!


E voltavam para a sala de jantar onde o conego Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:


—Ora vá um bocadinho de musica, pequena!


Amelia ia sentar-se ao piano.


—Ó filha, toca o Adeus! recommendava a S. Joanneira começando a sua meia.


E Amelia, ferindo o teclado:


O crime do padre Amaro, scenas da vida devota

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