Читать книгу O crime do padre Amaro, scenas da vida devota - Eca de Queiros - Страница 9

I

Оглавление

Índice de conteúdo


Foi no domingo de Paschoa que se soube em Leiria que o parocho da Sé, José Migueis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O parocho era um homem sanguineo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se historias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica—que o detestava—costumava dizer, sempre que o via sahir depois da sésta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:


—Lá vai a giboia esmoer. Um dia estoura!


Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe—á hora em que defronte, na casa do dr. Godinho que fazia annos, se polkava com alarido. Ninguem o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos d'um cavador, a voz rouca, cabellos nos ouvidos, palavras muito rudes.


Nunca fôra querido das devotas: arrotava no confessionario; e, tendo vivido sempre em freguezias da aldeia ou da serra, não comprehendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao principio, quasi todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de labia!


E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam fallar de escrupulos, de visões, José Migueis escandalisava-as, rosnando:


—Ora historias, santinha! Peça juizo a Deus! Mais miôlo na bola!


As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:


—Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, creatura!


Era miguelista—e os partidos liberaes, as suas opiniões, os seus jornaes enchiam-no d'uma cólera irracionavel:


—Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guardasol vermelho.


Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e vivia isolado—com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu unico amigo era o chantre Valladares que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois annos, o seu rheumatismo n'uma quinta do alto Minho. O parocho tinha um grande respeito pelo chantre, homem sêcco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador d'Ovidio—que fallava fazendo sempre boquinhas e com allusões mythologicas.


O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hercules.


—Hercules pela força, explicava sorrindo, Frei pela gula.


No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava offerecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa d'ouro, disse aos outros conegos, baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra:


—É a ultima pitada que lhe dou!


Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o conego Campos contou-a á noite ao chá em casa do deputado Novaes; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e affirmou-se com respeito—que sua excellencia tinha muita pilheria!


Dias depois do enterro appareceu, errando pela Praça, o cão do parocho, o Joli. A criada entrára com sezões no hospital; a casa fôra fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era um gôso pequeno, extremamente gordo,—que tinha vagas semelhanças com o parocho. Com o habito das batinas, avido d'um dono, apenas via um padre punha-se a seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guardasoes; o cão, repellido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã appareceu morto ao pé da Misericordia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguem tornou a vêr o cão na Praça, o parocho José Migueis foi definitivamente esquecido.


Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro parocho. Dizia-se que era um homem muito novo, sahido apenas do seminario. O seu nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a influencias politicas, e o jornal de Leiria, A Voz do Districto, que estava na opposição, fallou com amargura, citando o Golgotha, no favoritismo da côrte e na reacção clerical. Alguns padres tinham-se escandalisado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.


—Não, não, lá que ha favor, ha; e que o homem tem padrinhos, tem, disse o chantre. A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da justiça). Até me diz na carta que o parocho é um bello rapagão. De sorte que—acrescentou sorrindo com satisfação—depois de Frei Hercules vamos talvez ter Frei Apollo.


Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o parocho novo: era o conego Dias que fôra, nos primeiros annos do seminario, seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas carnaes...


—Parece que o estou a vêr com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto bom rapaz. E espertote...


O conego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordára, o ventre saliente enchia-lhe a batina; e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas de frades lascivos e glotões.


O tio Patricio, o antigo, negociante da Praça, muito liberal, e que quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia ás vezes ao vêl-o atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao guardachuva:


—Que maroto! Parece mesmo D. João VI!


O conego vivia só com uma irmã velha, a snr.a D. Josepha Dias, e uma criada, que todos conheciam tambem em Leiria, sempre na rua, entrouxada n'um chale tingido de negro e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo. O conego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com perú, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o facto saliente da sua vida—o facto commentado e murmurado—era a sua antiga amizade com a snr.a Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joanneira, por ser natural de S. João da Foz. A S. Joanneira morava na rua da Misericordia e recebia hospedes. Tinha uma filha, a Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita, forte, muito desejada.


O conego Dias mostrára um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé exaltou os seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de costumes, a sua obediencia: gabava-lhe mesmo a voz: «um timbre que é um regalo!»


—Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa está a calhar!


Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma conesia decerto, talvez a gloria d'um bispado!


E um dia, emfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, creatura servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.


Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguezia de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e encorporar; camadas de cascalho cobriam o chão; e os grossos cylindros de pedra, que acalcam e recamam os macadams, enterravam-se na terra negra e humida das chuvas.


Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde o rio vem são collinas baixas, de fórmas arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos, estão os casaes que dão áquelles logares melancolicos uma feição mais viva e humana—com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pallidos, estende-se até os primeiros areaes o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de aguas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade; apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuiticas da Sé, um canto do muro do cemiterio coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos cyprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações rebeldes, onde destacam as ruinas do Castello, todas envolvidas á tarde nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar historico.


Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco á beira do rio. É um logar recolhido, coberto de arvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar, fallando baixo, o conego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre «uma idéa que ella lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!» Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse uma casa de aluguel, barata, bem situada, e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de quartos n'uma casa de hospedes respeitavel. «Bem vê o meu caro Padre-Mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O que é necessario é que a casa seja respeitavel, socegada, central; que a patrôa tenha bom genio e que não peça mundos e fundos; deixo tudo isto á sua prudencia e capacidade, e creia que todos estes favores não cahirão em terreno ingrato. Sobretudo que a patrôa seja pessoa accommodada e de boa lingua.»


Ora a minha idéa, amigo Mendes, é esta: mettêl-o em casa da S. Joanneira! resumiu o conego com um grande contentamento. É rica idéa, hein?


—Soberba idéa! disse o coadjutor com a sua voz servil.


—Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que póde servir de escriptorio. Tem boa mobilia, boas roupas...


—Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.


O conego continuou:


—É um bello negocio para a S. Joanneira: dando os quartos, roupas, comida, criada, póde muito bem pedir os seus seis tostões por dia. E depois sempre tem o parocho de casa.


—Por causa da Ameliasinha é que eu não sei, considerou timidamente o coadjutor. Sim, póde ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor parocho é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são linguas do mundo.


O conego tinha parado:


—Ora historias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas telhas com a afilhada da mãi? E o conego Pedroso não vive com a cunhada, e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezenove annos? Ora essa!


—Eu dizia... attenuou o coadjutor.


—Não, não vejo mal nenhum. A S. Joanneira aluga os seus quartos, é como se fosse uma hospedaria. Então o secretario geral não esteve lá uns poucos de mezes?


—Mas um ecclesiastico... insinuou o coadjutor.


—Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias! exclamou o conego. E parando, com uma attitude confidencial:—E depois a mim é que me convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!


Houve um pequeno silencio. O coadjutor disse, baixando a voz:


—Sim, vossa senhoria faz muito bem á S. Joanneira...


—Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o conego. E com uma entonação terna, risonhamente paternal:—que ella é merecedora, é merecedora. Boa até alli, meu amigo!—Parou, esgazeando os olhos:—Olhe que dia em que eu não lhe appareça pela manhã ás nove em ponto, está n'um phrenesi! «Oh creatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se sem razão.» Mas então, é aquillo! Pois quando eu tive a colica o anno passado! Emmagreceu, snr. Mendes! E depois não ha lembrança que não tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal é para o padre santo, vossê sabe? é como ella me chama.


Fallava com os olhos luzidios, uma satisfação babosa:


—Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher!


—E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.


—Lá isso! exclamou o conego parando outra vez. Lá isso! Bem conservada até alli! Pois olhe que já não é criança! Mas nem um cabello branco, nem um, nem um só! E então que côr de pelle!—E mais baixo, com um sorriso guloso:—E isto aqui! ó Mendes, e isto aqui!—Indicava o lado do pescoço debaixo do queixo, passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda:—É uma perfeição! E depois mulher de aceio, muitissimo aceio! E que lembrançasinhas! Não ha dia que me não mande o seu presente! é o covilhete de geleia, é o pratinho d'arroz dôce, é a bella murcella d'Arouca! Hontem me mandou ella uma torta de maçã. Ora havia de vossê vêr aquillo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josepha disse: «Está tão boa que parece que foi cozida em agua benta!»—E pondo a mão espalmada sobre o peito:—São coisas que tocam a gente cá por dentro, Mendes! Não, não é lá por dizer, mas não ha outra.


O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.


—Eu bem sei, disse o conego parando de novo e tirando lentamente as palavras, eu bem sei que por ahi rosnam, rosnam... Pois é uma grandissima calumnia! O que é, é que eu tenho muito apêgo áquella gente. Já o tinha em tempo do marido. Vossê bem o sabe, Mendes.


O coadjutor teve um gesto affirmativo.


—A S. Joanneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o conego batendo no chão fortemente com a ponteira do guardasol.


—As linguas do mundo são venenosas, senhor conego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E depois d'um silencio acrescentou baixo:—Mas aquillo a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!


—Pois ahi está, meu amigo! Imagine vossê que desde que o secretario geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panella, Mendes!


—Que ella tem uma fazendita, considerou o coadjutor.


—Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as decimas, os jornaes! Por isso digo eu, o parocho é uma mina. Com os seis tostões que elle der, com o que eu ajudar, com alguma coisa que ella tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um allivio, Mendes.


—É um allivio, senhor conego! repetiu o coadjutor.


Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida; o alto céo tinha uma pallida côr azul; o ar estava immovel. N'aquelle tempo o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em sêcco; e a agua baixa arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.


Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram então pelo caminho lodoso que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto d'um silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pellado da canga, bebiam de leve, sem ruido; a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em redor com a passiva tranquillidade dos sêres fartos—e fios de agua, babados, luzidios á luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho. Com a inclinação do sol a agua perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas ia subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens côr de sanguinea e côr de laranja que annunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma decoração muito rica.


—Bonita tarde! disse o coadjutor.


O conego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:


—Vamo-nos chegando ás Ave-Marias, hein?


Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o conego parou, e voltando-se para o coadjutor:


—Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joanneira! É uma pechincha para todos.


—Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande pechincha!


E entraram na igreja, persignando-se.



O crime do padre Amaro, scenas da vida devota

Подняться наверх