Читать книгу O crime do padre Amaro, scenas da vida devota - Eca de Queiros - Страница 18

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Ai! adeus! acabaram-se os dias

Que ditoso vivi a teu lado...


A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro, soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado n'um sentimentalismo agradavel.


Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a lêr os Canticos a Jesus, traducção do francez publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrasinha beata, escripta com um lyrismo equivoco, quasi torpe—que dá á oração a linguagem da luxuria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes d'uma concupiscencia allucinada: «Oh! vem, amado do meu coração, corpo adoravel, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abraza-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possue-me!» E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem paginas inflammadas onde as palavras gozo, delicia, delírio, extase, voltam a cada momento, com uma persistencia hysterica. E depois de monologos phreneticos d'onde se exhala um bafo de cio mystico, vêm então imbecilidades de sacristia, notasinhas beatas resolvendo casos difficeis de jejuns, e orações para as dôres de parto! Um bispo approvou aquelle livrinho bem impresso; as educandas lêem-n'o no convento. É beato e excitante; tem as eloquencias do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se ás confessadas: é a cantharida canonica!


Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aquelles periodos sonoros, tumidos de desejo; e no silencio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amelia: o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça ás costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vêl-a em collete diante do toucador desfazendo as trancas; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos. Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.


Começára então a recommendar-lhe a leitura dos Canticos a Jesus.


—Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse elle, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura.


Ao outro dia, ao almoço, Amelia estava pallida, com as olheiras até ao meio da face. Queixou-se de insomnia, de palpitações.


—E então, gostou dos Canticos?


—Muito. Orações lindas! respondeu.


Durante lodo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste—e sem razão, ás vezes, o rosto abrazava-se-lhe de sangue.


Os peores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha passar as noites «em familia». Até ás nove horas o parocho não sahia do quarto; e quando subia para o chá desesperava-se de vêr o escrevente embrulhado no seu chale-manta, sentado junto de Amelia.


—Ai o que estes dois têm para ahi palrado, senhor parocho! dizia a S. Joanneira.


Amaro tinha um sorriso livido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos na chavena.


Amelia, na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o parocho a mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos da costura; o escrevente calado chupava o cigarro; e havia grandes silencios em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.


—Olha quem andar agora nas aguas do mar! dizia a S. Joanneira fazendo devagar a sua meia.


—Safa!... acrescentava João Eduardo.


As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro: detestava-o pela sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante d'elle sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.


—Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joanneira.


—Estou tão cansada! respondia Amelia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirosinho de fadiga.


A S. Joanneira, então, que não gostava de «vêr gente mona», propunha uma bisca de tres; e o padre Amaro, tomando o seu candieiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.


N'essas noites quasi detestava Amelia; achava-a casmurra. A intimidade do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidia mesmo fallar á S. Joanneira, dizer-lhe «que aquelle namoro de portas a dentro não podia ser agradavel a Deus». Depois, mais razoavel, resolvia esquecel-a, pensava em sahir da casa, da parochia. Representava-se então Amelia com a sua corôa de flôres de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençoes de renda... e todas as provas, as certezas do amor d'ella pelo «idiota do escrevente» cravavam-se-lhe no peito como punhaes...


—Pois que casem, e que os leve o diabo!...


Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o frou-frou das suas saias. Mas d'ahi a pouco, como todas as noites, escutava com o coração aos saltos, immovel e ancioso, os ruidos que ella fazia em cima ao despir-se, palrando ainda com a mãi.


Um dia Amaro jantára em casa da snr.a D. Maria da Assumpção; fôra depois passear pela estrada de Marrases, e á volta, ao fim da tarde, encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no patamar, estavam os chinelos de ourelo da Ruça.


—Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi á fonte e esqueceu-se de fechar a porta.


Lembrou-se que Amelia tinha ido passar a tarde com a snr.a D. Joaquina Gansoso, n'uma fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joanneira fallára em ir á irmã do conego. Fechou devagar a cancella, subiu á cozinha a accender o seu candieiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joanneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surprehendido, afastou subtilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou.—Oh Deus de Misericordia! a S. Joanneira, em saia branca, atacava o collete; e, sentado á beira da cama, em mangas de camisa, o conego Dias resfolegava grosso!


Amaro desceu, collado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados da Sé. O céo ennevoára-se, leves gotas de chuva cahiam.


—E esta! E esta! dizia elle assombrado.


Nunca suspeitára um tal escandalo! A S. Joanneira, a pachorrenta S. Joanneira! O conego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os impetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição, as dignidades ecclesiasticas! Que faria então um homem novo e forte, que sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava no seminario, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cincoenta annos parocho da Gralheira:—«Todos são do mesmo barro!» Todos são do mesmo barro,—sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminarios, dirigem as consciencias envoltos em Deus como n'uma absolvição permanente, e têm no emtanto, n'uma viella, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das attitudes devotas e da austeridade do officio, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!


Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquella, a S. Joanneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho conego? A S. Joanneira fora decerto bonita, bem feita, desejavel—outr'ora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, áquelles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hospedes, viviam da concubinagem. Amelia ia sósinha á igreja, ás compras, á fazenda; e com aquelles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante!—Resumia, filiava certas recordações: um dia que ella lhe estivera mostrando na janella da cozinha um vaso de rainunculos, tinham ficado sós, e ella, muito córada, puzera-lhe a mão sobre o hombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra occasião ella roçára-lhe o peito pelo braço! A noite cahira, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéa deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o conego era o amante da mãi! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada; emquanto em cima a grossa S. Joanneira beijocasse o seu conego cheio de difficuldades asthmaticas,—Amelia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um chale sobre os hombros nús... Com que phrenesi a esperaria! E já não sentia por ella o mesmo amor sentimental, quasi doloroso: agora a idéa muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panellinha, dava áquelle homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua.—Que pechincha de casa!


A chuva cahía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.


—Ih, como vem frio! disse-lhe Amelia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a humidade da nevoa.


Sentada á mesa, costurava com um chale-manta pelos hombros: João Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joanneira.


Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber porque, o duro choque d'uma realidade antipathica: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dansar uma sarabanda na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam—vendo alli Amelia ao pé do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candieiro de familia!


E tudo em redor lhe apparecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armario cheio de louça luzidia da Vista-Alegre, o sympathico e bojudo pote d'agua, o velho piano mal firme nos seus tres pés torneados; o paliteiro tão querido de todos—um Cupido rechonchudo com um guardachuva aberto erriçado de palitos, e aquella tranquilla bisca jogada com os dichotes classicos. Tudo tão decente!


Affirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joanneira, como para descobrir n'ellas as marcas das beijocas do conego: ah! tu, não ha duvida, és «uma barregã de clerigo ». Mas Amelia! com aquellas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da mãi; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança d'um amor legal!—E Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.


—Cansadinho, senhor parocho, hein? disse a S. Joanneira. E para João Eduardo:—Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar?


O escrevente, namorado, distrahia-se.


—É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joanneira a cada momento.


Depois elle esquecia-se de comprar cartas.


—Ah menino, menino! dizia ella com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas!


Amelia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro, que lhe disfarçava a fórma do seio.


E Amaro irritava-se d'aquelles olhos fixos na costura, d'aquelle casaco amplo escondendo a belleza que mais appetecia n'ella! E nada a esperar! Nada d'ella lhe pertenceria, nem a luz d'aquellas pupillas, nem a brancura d'aquelles peitos! Queria casar—e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, d'um odio complicado d'inveja ao seu bigode negro e ao seu direito d'amar...


—Está incommodado, senhor parocho? perguntou Amelia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.


—Não, disse elle sêccamente.


—Ah! fez ella com um leve suspiro, picando rapidamente o posponto.


O escrevente, baralhando as cartas, começára a fallar de uma casa que queria alugar; a conversa cahiu sobre arranjos domesticos.


—Traze-me luz! gritou Amaro à Ruça.


Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôz a vela sobre a commoda; o espelho estava defronte, e a sua imagem appareceu-lhe; sentiu-se feio, ridiculo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma colleira, e por traz a corôa hedionda. Comparou-se instinctivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabello todo, a sua liberdade! Para que hei de eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; elle só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do peccado! Ella sympathisava talvez com elle, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cubiçava uma situação legitima e duradoura, o respeito das visinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!


Odiou-a então, e o seu vestido afogado, e a sua honestidade! A estupida, que não percebia que ao pé d'ella, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciencia! Desejou que ella fosse como a mãi,—ou peor, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma femea facil como uma porta aberta ...


—Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada!—pensou, recahíndo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!


Abafava. Abriu a janella. O céo estava tenebroso; a chuva cessára; o piar das corujas na Misericordia cortava só o silencio.


Enterneceu-se, então, com aquella escuridão, aquella mudez de villa adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu sêr, o amor que sentira ao principio por ella, muito puro, d'um sentimentalismo devoto: via a sua linda cabeça, d'uma belleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ella n'um desfallecimento d'adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angelica; pediu-lhe perdão anciosamente de a ter offendido; disse-lhe alto: És uma santa! perdôa!—Foi um momento muito dôce, de renunciamento carnal...


E, espantado quasi d'aquellas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôz-se a pensar com saudade—que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amoravel, dedicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo d'adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! Á idéa d'aquellas felicidades inaccessiveis, os olhos arrazaram-se-lhe de lagrimas. Amaldiçoou, n'um desespero, «a pêga da marqueza que o fizera padre», e o bispo que o confirmára!


—Perderam-me! perderam-me! diria, um pouco desvairado.


Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias de Amelia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciume. A cancella bateu, Amelia subiu cantarolando baixo.—Mas a sensação d'amor mystico que o penetrára um momento, olhando a noite, passára; e deitou-se, com um desejo furioso d'ella e dos seus beijos.



O crime do padre Amaro, scenas da vida devota

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