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CAPITULO I
A benção de Deus

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Ao cair duma tarde de primavera, entramos no pateo duma casa situada na rua dos Embaixadores, em Madrid, onde nos chamaram, desde logo, a atenção duas janelas que, a julgar pelo ruido que delas sahia, uma devia ser a da oficina dum carpinteiro, e a outra a dum latoeiro.

Perto desta ultima janela, uma mulher já de edade, a julgar pelos seus cabelos brancos, estava sentada, lendo com grande interesse um livro, que tinha sobre os joelhos. Não podemos, pela posição em que ela está, ver o seu rosto, porém chama-nos a atenção a seriedade com que lê o livro e o desejo, que se lhe nota no rosto, de aproveitar na leitura os ultimos instantes que lhe restam da luz do dia.

Não sabemos que estranha simpatia nos arrasta para aquela mulher.

De repente, entra no pateo um rapaz, que diz:

—Senhora Josefa, o mestre chama-a.

Então ela levantou a cabeça, porém a surpreza, em que estavamos, não nos deixou ouvir a resposta. Aquele nome, aquelas feições e aquela voz traziam-nos á memoria uma pessoa a quem muito estimavamos, e uns acontecimentos que seguramente se nos tinham apagado da memoria.

Josefa atravessou o pateo e desapareceu.

—Quem é esta senhora?—perguntámos ao rapaz que neste momento recolhia a cadeira em que Josefa estava sentada.

—A mãe do mestre—respondeu-nos ele, e desapareceu por uma porta, que havia no pateo, e que dava passagem para a loja do vidraceiro.

Então sahimos para a rua, e, olhando para a vitrine duma loja que ha ao lado do portal, a nossa vista foi fixar-se no seguinte letreiro, que se lê no cimo dela:

JULIÃO

Vidraceiro, Chumbeiro e Latoeiro

Este nome tambem nos traz á memoria uma pessoa e um facto, e a nossa surpreza foi grande quando a porta da loja se abriu e apareceu nela um rapaz, a quem havia bastante tempo conheceramos quando era ainda menino, disputando com um sacerdote.

Efectivamente, este homem é Julião, e a senhora que lia no pateo era Josefa, a vendedeira.

Mas que mudança! Quem havia de reconhecer neste joven o filho de Josefa?

Pouco depois da epoca em que o conhecemos, o Senhor lhe proporcionou trabalho em casa dum bom mestre, onde, ao fim dum ano, se cativou das suas simpatias.

Era o mestre de Julião de edade avançada, viuvo e pae duma joven de 19 anos, que o tratava com todo o carinho duma boa filha, e a qual se chamava Maria das Dôres.

Ao cabo dum ano, que Julião esteve á frente da casa, progrediu esta de tal maneira que o mestre não deixava de falar em toda a parte no seu oficial. Passados dois anos, depois que Julião estava em casa do mestre, viu-se este atacado duma pneumonia, e, sentindo que os seus ultimos momentos se aproximavam, chamou Julião e disse-lhe:

—Julião, tu tens-te portado em minha casa como um homem de bem... os meus ultimos momentos aproximam-se, e desejo, já que outra coisa não pode ser, que me dês a tua palavra de honra que continuarás em minha casa sendo o que eras até aqui... Lembra-te de que esta casa é o amparo duma orfã, e de que, se tu nos deixares, não sei o que será dela... eu bem queria... mas...

E o ancião deteve-se como se temesse dizer alguma inconveniencia.

—Mestre—respondeu Julião soluçando,—Deus não quererá que morra, mas, se essa fôr a Sua vontade, cumpra-se... eu lhe prometo que continuarei velando pela casa com mais solicitude do que até aqui... e que Maria das Dôres será para mim uma irmã... já que outra coisa não...

—Julião—disse-lhe o seu mestre,—fala claro; um velho que se acha ás portas da morte faz-te este pedido.

—Pois bem—respondeu Julião,—já ha tempo que, comigo mesmo, tenho admirado as virtudes e prendas que adornam sua filha, porém o receio de que me atribuissem fins interesseiros, pela diferença de posições, obrigaram-me a calar e a não dizer palavra.

—Graças te dou, oh meu Deus—exclamou o ancião,—porque coroaste os meus desejos.

E, mandando chamar a filha, depois de consultar a vontade dela e de receber a aprovação de Josefa, Julião e Maria das Dôres se receberam por marido e mulher, na presença do oficial do registo civil. Pouco depois falecia o mestre de Julião.

A benção de Deus se estendeu sobre os dois esposos até ao ponto de conceder-lhes, como fruto do seu matrimonio, um menino, ao qual pozeram o nome de Paulo.

Tal é o estado de Julião e sua familia.

Já que é nosso amigo, entremos na sua loja. Nada ha de extraordinario que nos chame a atenção, excepto um quadro em cartão, colocado numa das paredes, que diz:

Lembra-te de santificar o dia de descanço. Trabalharás seis dias, e farás neles tudo o que tens para fazer; o setimo dia, porém, é o dia de descanço consagrado ao Senhor, teu Deus; não farás nesse dia obra alguma, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o peregrino que vive das tuas portas para dentro; porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra e o mar e tudo o que neles ha, e descançou ao setimo dia; por isso o Senhor abençoou o dia setimo e o santificou.

Vamos agora travar conhecimento com um dos visinhos de Julião,—o dono da oficina de carpinteiro.

Chama-se João, homem de 65 a 68 anos. Apezar desta edade, ainda está vigoroso, e, se não fôra por algumas dôres que sofre, em consequencia de ter dormido muitas noites ao relento, no tempo da guerra dos sete anos, estaria forte como um rapaz. O seu caracter é bom, liberal desde a medula dos ossos, e é sargento da Guarda Nacional.

A sua familia compõe-se de Brigida, sua esposa, e uma joven de 18 a 20 anos, chamada Antonia, fresca e louçã como as flores de maio e na qual ele faz consistir toda a sua felicidade.

João está despedindo os oficiaes e aprendizes, dizendo-lhes:

—Vinde ás dez horas; já sabeis que ámanhã é dia de Santo Antonio, e que não se trabalha.

—Porém, mestre—observou um—a obra que ha oito dias encomendaram tem de se entregar na segunda feira.

—Nesse caso, trabalharemos no domingo até ás tres horas da tarde. No dia de Santo Antonio não se préga um prego em minha casa; é o dia do santo do nome de minha filha, e tanto basta. Ás dez horas aqui vos espero para o baile: não esqueçaes as guitarras; até eu hei-de bailar... É Santo Antonio quem vae presidir á festa. Minha filha poz-lhe no altar o docel de veludo, que me custou cerca de dez libras, e se lhe acenderão pelo menos quarenta luzes. Ide ver o altar.

Todos ficaram admirados do bom gosto que presidiu ao adorno do altar, e, pensando já no divertimento que iam ter, sairam alegres, esfregando as mãos de contentes.

Quando o mestre ficou só, avistou Julião, que brincava com o filhinho, e, dirigindo-se a ele, disse-lhe:

—Boas noites, visinho.

—Boas noites, sr. João—respondeu Julião.



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