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CAPITULO II
Devoção e... vinho

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O pequenito parece que se vae saindo.

—É verdade, sr. João—respondeu Julião. Depois de guardarem alguns momentos de silencio, disse Julião:

—Porque não se senta, sr. João?

—Com muito gosto—respondeu este, sentando-se num banco ao lado de Julião, e acrescentando: Como vamos com respeito a trabalho?

—Tenho mais do que o que se pode fazer. Acabo de tomar uma encomenda de caldeirões para um regimento de artilheria, e trabalhamos sem cessar, graças a Deus.

—Pois eu tambem tenho muito que fazer. Alem do trabalho da casa, ainda tenho oito obras de fóra.

—Eu—continuou Julião—vou começar a fazer serão de ámanhã em deante.

—Como assim?—perguntou o carpinteiro—vae trabalhar ámanhã, que é dia de Santo Antonio?

—E porque não? Ámanhã, no meu entender, é um dia como os outros.

—Certamente—replicou o sr. João.—Olhe, eu não sou lá muito amigo dos santos; mas no dia de Santo Antonio não consinto que em minha casa se prégue um prego. É santo a quem quero muito, porque é o advogado da minha filha. É verdade que eu devia trabalhar ámanhã, porque na segunda feira tenho de entregar umas travessas! Mas, dia por dia, prefiro trabalhar no domingo.

—Trabalhar ao domingo é coisa que eu não farei, porque Deus assim o manda e é preciso obedecer-Lhe.

Neste momento, Dôres, Brigida e Antonia assomaram á porta das suas respectivas habitações, cumprimentando-se ao mesmo tempo.

Dôres pegou no menino, que estava ao colo do marido, e dirigiu-se para a carpinteria, a cuja porta estava a sr.ª Brigida acenando-lhe para que fosse ter com ela.

Deixemos os dois homens continuar na sua conversação e escutemos o que dizem as duas mulheres.

—Que me quer, sr.ª Brigida?—disse Dôres ao chegar.

—Que nos deixes ver o teu filho.

—Pois está bem gorducho—disse com orgulho Dôres, apresentando-lhe o menino.

—Oh! está lindo como os amores!—insistiu Brigida, tomando o menino nos braços, e acrescentando:—Ah! que se o seu avô o visse!...

—Por fim—interrompeu a mãe de Antonia—tu foste feliz, porque perdeste um pae muito bom mas encontraste um marido tão bom como ele.

—Isso é verdade; não tenho motivos senão para dizer bem do meu Julião.

—Deve querer muito ao filhinho, não é verdade?—perguntou Antonia.

—É cego por ele—respondeu Dôres.

—É natural—acrescentou a sr.ª Brigida—Como é o primeiro e está tão lindo... Santo Antonio o abençôe.

—Senhora Brigida—respondeu Dôres, pegando no menino,—abençoando-o Deus, é quanto basta.

—Filha, e os santos tambem, e porque não?

—É que—disse a filha do carpinteiro—Dôres tem presente o rifão que diz: O que Deus não quer, santos não podem; não é verdade?

—Pois olhe—disse Brigida,—eu tenho muita fé em Santo Antonio, porque é um santo de muita virtude, ou ele não fosse chamado Advogado dos impossiveis. Sem ir mais longe, outro dia perdi uma nota do banco de 100 pesetas; imediatamente acendi uma véla a Santo Antonio que tinha na sala, rezei-lhe um Padre Nosso, e em seguida, remexendo bem na comoda, no terceiro gavetão, onde eu não costumo guardar dinheiro, encontrei a nota; desde então não ha de faltar ao santo, todos os dias, uma lamparina acesa. Já vês, pois, que...

—Pois eu não vejo nisso outra coisa senão que com o andar do tempo perderá realmente as 100 pesetas, gastando-as em azeite com o santo. Demais, se, em logar de haver mal gasto o tempo em rezar e acender luzes ao santo, tivesse remexido bem a comoda, teria achado o seu dinheiro, pois que não estava perdido; se em vez de o ter metido na comoda, o tivesse deixado cair na rua, veria como Santo Antonio não lho traria a casa.

—Filha, és muito incredula!

—De modo nenhum, senhora Brigida, eu creio...

—Em quem crês? Porém não é isso; o que eu pergunto é: Qual é o Cristo da tua devoção? É o Cristo do Prado, da Fé, o Cristo do Perdão, ou, emfim, qualquer dos muitos outros Cristos?

—A nenhum desses, porque não conheço mais do que o Cristo, Filho de Deus, que está nos céus.

Neste momento foi interrompida a conversa, porque lhes chamou a atenção um tropel de gente que vinha rua acima. No meio da multidão, vinham dez ou doze rapazes com guitarras e bandurras, e na frente deles um rancho de mulheres, jovens tambem, e vestidas ao uso do povo, de saias redondas, como eles dizem, porém com luxo. Ao chegar á oficina do carpinteiro, deixaram de tocar, pararam, e o que fazia de director disse:

Vá; siga a seguidilla.

As guitarras deram a entrada, e uma mulher cantou:

Ó Antonio glorioso

Livrae-nos de todo o mal,

Alcançando-nos a vitoria

De toda a força infernal.

—Senhores, lá para dentro toda a gente—disse o sr. João;—porém onde estão essas mulheres?... Brigida... Antonia...

—Ah! mãe!—exclamou Antonia,—vão entrar, e eu não queria que me vissem emquanto não estivesse com o vestido novo.

—Sim?—respondeu a mãe,—pois verás como tudo se arranja!

Brigida dirigiu-se para a porta, e chegou ainda a tempo para dizer ao marido, que vinha á frente dos convidados:

—Alto lá! não é permitida a entrada até que o santo, o presidente da festa, esteja devidamente preparado.

—Muito bem, exclamaram a uma voz todas as pessoas presentes.

A mãe de Antonia entrou, fechando a porta sobre si, e momentos depois, quando a filha já estava com o seu vestido novo, veiu de novo á porta, dizendo:

—Podem entrar.

Homens e mulheres penetraram na sala, e, depois de trocados os primeiros cumprimentos, cada um procurou logar, ficando algumas mulheres ajoelhadas deante do altar, rezando ao santo.

—Senhores—exclamou João,—emquanto se prepara a ceia, entretenham-se como puderem. Cantem e bailem umas seguidillas.

Oh’ Santo Antonio,

Meu amante coração,

Quer na vida, quer na morte,

Sêde a nossa salvação.

—Bravo! bravo!... venha de lá outra, disseram alguns.

As guitarras continuaram tocando, e outro rapaz cantou:

Ó Antonio glorioso,

A ti chego confiado,

Que nas minhas aflições

Hei de ser remediado.

—Agora, para poder continuar—disse o que tinha cantado—é preciso que venha vinho para molhar as guelas.

—É isso mesmo—exclamou entusiasmado o mestre carpinteiro—tem razão o rapaz. Vinho tinto, sim, porque sem ele não se pode tocar, nem cantar, nem bailar. O vinho é preciso para tudo, e tanto que sem ele os padres não podem dizer a missa. Bem se expressou aquele que disse: «Onde não ha vinho não ha talento». Brigida,—acrescentou ele, dirigindo-se a sua mulher—enche um cangirão com vinho e tral-o cá.

Deixemos agora que se divirtam e festejem o santo portuguez a seu modo. Entretanto vamos visitar o nosso amigo Julião e sua familia.

O nosso amigo, acompanhado de sua mãe, está sentado á mesa, á espera que lhe sirvam a ceia. O pequenito Paulo dorme no seu berço, e Dôres vem da cosinha com a comida, que coloca em cima da mesa.

Á sala, onde estão, chega o ruido que vae na casa de seu visinho João.

—Demos graças ao Senhor—disse Julião, depois que Dôres se sentou á mesa.

Todos inclinaram a cabeça, e Julião dirigiu a Deus a seguinte oração:

—Oh! nosso Deus! Damos-Te graças pelos bens que nos dispensas, dando-nos saude, trabalho e sustento; abençôa a minha familia, e o meu filhinho, abençôa a oficina, e perdôa a esses pobres cegos ali do lado que Te estão ofendendo; lembra-te dos pobres e dos enfermos; o que tudo Te pedimos pelos merecimentos de Jesus Cristo, Nosso Salvador. Amen.

—Conte-nos agora—disse Julião, dirigindo-se a sua mãe,—o que vocemecê leu hoje na sua Biblia.

—Cheguei ao versiculo 25 do cap. 11 do Evangelho segundo S. Mateus, onde Jesus diz: «Graças Te dou a Ti, Pae, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sabios e entendidos e as revelaste aos pequeninos». Meditei sobre isto, e que grande verdade é que Deus nos revelou coisas tão importantes que as podemos sentir mas que nunca poderemos expressar!

—Oh! sim—exclamou Julião.—Deus ensina-nos diariamente coisas muito boas, não é verdade, Dôres?

—Oh! sim—respondeu ela,—a mim tem-me ensinado, por Sua misericordia, muitas coisas; a principal tem sido mostrar-me que sem Jesus Cristo eu era uma pecadora perdida, e que, graças a Ele, agora sou salva; antigamente eu andava fazendo obras que julgava meritorias, taes como dar dinheiro para sufragios, jejuar, ouvir missa, etc.

—E eu—disse a mãe de Julião—que me fiava nos conselhos dos confessores, e mandava dizer missas, acender velas aos santos; que comprava a Bula da Santa Cruzada, para poder comer carne, e a Bula dos Defuntos! E a respeito das indulgencias? Se algum valor elas tivessem, eu ganharia mais indulgencias do que cabelos tenho na cabeça! Quando penso no erro em que vivi, estremeço de medo!

—Pois eu—disse Dôres—ainda me lembro de que não havia dia nenhum, em que fosse ao mercado fazer as compras, que não lançasse dinheiro na caixinha das almas!

—Oh! terrivel conta—disse Julião,—teem que dar a Deus aqueles que se esforçam por manter no erro a gente simples e credula.

—E quanta gente vive por esse mundo enganada!—exclamou a mãe de Julião.

—Eu—interrompeu Dôres—sinto-o por todas as pessoas com quem trato, porém sinto-o de preferencia por Antonia, á qual desejava tornar conhecida a verdade. Tanto ela como sua familia são muito boas pessoas; desde creança quero-lhe como a irmã.

—Sim—disse Josefa;—no emtanto repara como passam a noite, cantando e bailando deante dum altar. O erro dos romanos vae tão longe que lhes faz colocar sob o mesmo teto Deus e o diabo ao mesmo tempo. Bailando adoram, e adorando bailam.

—E o peor é—acrescentou Julião—que não levam geitos de se emendarem. A inobservancia do domingo é coisa muito má, e eu vejo com grande sentimento que o nosso visinho prefere trabalhar no dia de domingo, comtanto que guarde o dia de Santo Antonio; quer dizer: profana o dia do Senhor para guardar o dia dum santo imaginario. A regeneração das classes trabalhadoras deve principiar pela observancia do domingo; para elas o dia do repouso é uma necessidade para se refazerem as forças fisicas que se gastam nos outros seis dias. Eu por mim mesmo tenho observado que aqueles que trabalham os seis dias e não descançam ao setimo gastam-se mais depressa, e gozam menos saude, do que aqueles que guardam o dia do Senhor: e isto sem falar do concernente á saude da alma.

Neste momento, tendo acabado já de cear, chamaram á porta que dava para o pateo. Julião levantou-se, indo abril-a, e Antonia, acompanhada de outra joven, apresentou-se na sala, onde ainda estavam sentadas á mesa Dôres e Josefa.

—Deus lhes dê boas noites—disseram ambas ao entrar, e a filha do carpinteiro acrescentou:

—Venho da parte de meu pae dizer-lhes que teria muito prazer se viessem cear comnosco.

Julião e sua mulher acompanharam a filha do carpinteiro e a sua amiga a casa.

—Mestre, mestre—exclamou o carpinteiro ao ver entrar Julião,—venha cá para o meu lado e sirva-se dalguma coisa.

—Muito obrigado, sr. João—respondeu Julião,—porém permita-me que não me sirva de nada; sua filha é testemunha de que nos viu sentados á mesa.

—Bem, não me importa—disse o carpinteiro,—hoje ha em minha casa carta branca para que cada qual faça o que quizer em honra de Santo Antonio; que todos se divirtam e que ninguem esteja triste.

A ceia continuou sem nenhum incidente, até que á sobremesa o sr. João disse:

—Agora os brindes; que cada qual brinde por quem quizer.

Julião estava sentado na cadeira, pensando no triste estado daquela gente. Dôres falava com Antonia e outras raparigas da sua edade.

—Brindo—exclamou o sr. João—por Santo Antonio, que é o santo de minha filha, pela liberdade, e para que fiquem confundidos os inimigos da ordem.

Ao brinde do dono da casa corresponderam os convidados, bebendo cada qual o seu copo. A este brinde sucederam-se outros.

Um dos assistentes, joven ainda, oficial de confeiteiro, observou que Julião não tomava parte nos brindes, e, fazendo convergir sobre ele as atenções de todos, disse-lhe:

—Então vocemecê porque não bebe? Não gosta de vinho?

—Não bebo—respondeu Julião—porque acabo de cear em minha casa, e eu não costumo beber senão ás comidas.

—Ora—disse o confeiteiro com modos impertinentes—isso será muito bom para a saude, porém eu creio que o vinho é sempre bom.

—Cada um tem as suas idéas, e eu tenho as minhas.

—Pois olhe: o que a mim me parece é que vocemecê tem cara de padre, e que se não brinda é porque não é homem.

—Ai!—exclamou Julião com toda a calma,—por aquilo que eu brindaria seria para que Deus lhe desse mais juizo e menos palavriado.

Uma gargalhada geral ressoou em toda a sala ao ouvirem as palavras de Julião. Este, conhecendo, pelo estado dos convidados, que aquilo não era logar proprio nem para ele nem para sua esposa, deixou a sala, despedindo-se cortezmente de todos.

O baile prolongou-se até á uma hora da madrugada; não havia cabeça que estivesse em si. O sr. João, numa linguagem ininteligivel, disse:

—Senhores... ámanhã... disse... ámanhã... será dia. Proponho que vamos á horta, ao campo... como ha que madrugar... é preciso dormir... com que cada mocho a seu souto... tenho dito.

—Bem, bem!—exclamaram todos com alegria.

—Ordem, companheiros!—gritou com voz um pouco rouca o confeiteiro;—antes de nos separarmos venha mais um gole e dancemos o galope infernal.

—Sim, sim, disseram alguns, vamos ao galope infernal.

Encheram-se os copos e esvasiaram-se, e as guitarras tocaram desafinadamente. Alguns pares começaram a bailar... Bailar? Melhor diriamos que aquilo não era baile, mas sim dança de furias; aquela massa de gente empurrava-se e pisava-se, indo dum lado para o outro. Por fim sucedeu o que era de esperar. O confeiteiro e a sua companheira cairam no chão e aos outros aconteceu o mesmo, por estarem com a cabeça toldada pelo vinho.

Que scena! homens e mulheres, em revolta confusão, rolando pelo chão; o calor sufocava! as vozes, no meio das quaes se ouviam alguns ais, ensurdeciam, e tudo isto diante do santo da sua devoção! Por fim foram levantando-se conforme poderam, os devotos do santo, á excepção duma joven que ficou estendida no chão, por efeito duma pancada violentissima que havia recebido. Então é que foram os lamentos e os ais; uns resavam ao santo, outros abriam roda, e abanavam com os lenços, e finalmente Antonia correu ao seu quarto por um frasquinho de essencia que, aplicado ao nariz da pobre menina, fêl-a voltar a si.

Finalmente, depois do susto que tiveram, o que é muito natural, os convidados sairam para a rua, ficando só a familia da casa. Antonia entrou no seu quarto chorando, porque na ocasião do baile tinha caido, e na queda tinha partido um dos brincos, perdendo tres diamantes que tinha mandado engastar nele.

Que dirão seus paes? Encontrará Santo Antonio os diamantes?



Julião e a Biblia

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