Читать книгу Historia de um beijo - Enrique Pérez Escrich - Страница 4
CAPITULO II Uma noite no Colyseu
ОглавлениеQuando Ernesto ficou só, em vez de pegar na paleta e nos pinceis approximou-se da janella e ficou pensando na joven hespanhola que acabava de sahir.
Depois de uma hora de meditação, retirou-se da janella, dizendo para comsigo:
—Se me encommendassem um quadro onde figurasse alguma das tres encantadoras filhas de Jupiter e de Eurinome pediria a Amparo para me servir de modelo.
E, tomado de uma subita inspiração, pegou na paleta e nos pinceis e começou a pintar, n'um pedaço de tela, uma cabeça, mas com tanta rapidez que, em vinte minutos, estava completamente esboçada.
Afastou-se um pouco do cavallete para examinar o seu trabalho, e disse:
—Sim, é ella. Tenho boa memoria.{11}
E como não se contentasse com a sua opinião, chamou o creado e perguntou-lhe:
—Com quem se parece esta cabeça?
—Bravo! Com quem se ha-de parecer? Com a senhora que esteve cá, respondeu o creado sem vacillar. Não é preciso ser muito esperto para a reconhecer.
Ernesto tornou a pegar nos pinceis e retocou o seu trabalho.
Duas horas depois tinha terminado um soberbo retrato de Amparo, que o pintor mais escrupuloso não recearia pôr em exposição.
Tinha promettido a D. Ventura ir no dia seguinte almoçar com elle ao hotel de Londres na praça de Hespanha, onde estavam hospedados.
Ernesto levantou-se cedo, fez a barba, vestiu-se com mais cuidado do que de costume, admirando-se de ter gasto tanto tempo ao espelho.
Assim que terminou a sua toilette, satisfeito de si mesmo, enrolou a tela com o retrato de Amparo, embrulhou-a n'um papel e sahiu de casa dizendo ao creado que tinha o dia livre, visto não voltar senão á noite.
D. Ventura e a filha occupavam dois quartos no primeiro andar do hotel de Londres.
Quando Ernesto subia a escada ouviu os accordes de um piano. Deteve-se: tocavam a magnifica symphonia de Guilherme Tell.
—Será Amparo? pensou elle.
E vendo um creado no corredor, disse-lhe:
—Qual é o quarto do sr. D. Ventura d'Aguillar?
—O seis: ahi onde estão tocando.
Ernesto não se tinha enganado: era Amparo quem tão magnificamente interpretava uma das mais bellas composições de Rossini.
Receoso de interromper aquella brilhante corrente de notas que tão docemente resoavam no coração, esperou junto da porta que terminasse a symphonia.
Logo que ella acabou bateu á porta.
—Entre, disse D. Ventura.
Entrou. Amparo estava ainda sentada ao piano. Por cima d'este estava um grande espelho e no limpido{12} crystal Ernesto viu retratado o encantador rosto de Amparo, que sorria, enviando-lhe um olhar que o perturbou por um momento.
—Bravo, é um homem de palavra, disse D. Ventura. Ahi está uma qualidade que não é muito vulgar nos artistas.
—Então não me esperavam?
—Eu esperava, mas o meu pae, não, disse Amparo, fazendo girar o banco do piano, até ficar voltada para o pintor.
Amparo tinha um vestido tão simples como elegante. O seu cabello negro e frizado, estava atado com uma fita azul que fazia realçar a brancura do seu rosto e o tom rosado das faces.
O pintor achou-a muito mais formosa do que no dia anterior.
De bôa-vontade ficaria contemplando o encantador modelo que tinha ante si; mas isso álêm de inconveniente seria ridiculo.
A donzella, por seu lado, olhava o pintor com o mais seductor dos seus olhares e enviava-lhe o mais bello dos seus sorrisos.
Comprehendera o que se passava na alma de Ernesto. Só D. Ventura não via nada. É bem certo o dictado que diz que os paes são todos myopes.
—Que traz ahi, sr. Ernesto? É algum quadro? perguntou Amparo vendo o rolo que o pintor tinha na mão.
—Como estava distrahido! respondeu Ernesto. Hontem de tarde fiz um trabalho. É um atrevimento que espero me desculpem.
O pintor desenrolou a tela e apresentou-a, sorrindo-se.
A joven não poude conter um grito de assombro, e D. Ventura pronunciou uma interjeição.
—Sou eu!
—É a minha filha!
—É um retrato d'esta senhora, e venho offerecel-o como uma recordação da visita que tiveram a bondade de me fazer.{13}
—São levados da breca estes pintores, exclamou D. Ventura. Como se póde reter na memoria de uma fórma tão completa as feições de uma pessoa e passal-as para a tela com tanta verdade?! Porque és tu! Sim, tão parecida como duas gottas d'agua; muito mais parecida do que uma photographia.
Ernesto sorriu-se das admirações de D. Ventura. Amparo parecia agradecer-lhe com um olhar cheio de ternura aquella recordação tão delicada.
—Pois é a cousa mais facil do mundo, disse o pintor olhando para Amparo, comprometia-me a fazer outro d'aqui a tres annos sem me esquecer do menor detalhe do vestido e do penteado que tem n'esta occasião.
—Pegue-lhe na palavra, papá, disse Amparo, e d'aqui a tres annos, se nos encontrarmos em Madrid havemos de vel-o ficar mal.
—Fica encommendado o retrato. Mas agora parecia-me melhor que nos servissem o almoço e que pensassemos em que devemos entreter o dia.
—Já visitaram as vilas ou casas de campo dos arredores? perguntou Ernesto.
—Já visitámos uma... Como se chama a que vimos hontem? perguntou D. Ventura á filha.
—Vila Aldobrandini.
—É magnifica, mas está pouco menos do que abandonada. Deliciosa mansão se se arranjassem os jardins em fórma de amphitheatro. O Dominiquino deixou-nos n'essa casa sumptuosa uns quadros inegualaveis. Faz pena ouvir, no meio de tanto abandono, o cadente murmurio das suas cascatas que se assimilham á harmonia dos orgãos aquaticos da antiguidade como ao mesmo tempo vêr as soberbas estatuas e outros objectos de esculptura de grande merito.
—Com franqueza não a achei grande cousa... como disseste que se chamava, Amparo?
—Aldobrandini, papá. Valha-o Deus, que cabeça a sua!
E Amparo trocou um sorriso com Ernesto.
—Podemos vêr outras que estão melhor conservadas, ajuntou o pintor. Por exemplo, é digna de visitar-se{14} a Vila Borghése pelo seu grandioso lago, pelo hypodromo, pelo templo, pelos jardins e, sobretudo, pelo rico museu de numismatica, e se desejarem visitaremos a Vila Albani e o seu celebre museu. Os antigos romanos tiveram grande predilecção pelas casas de campo. Os historiadores d'aquelle tempo contavam cousas fabulosas. Os poetas, esses sonhadores de todas as epochas, esses pobres loucos que não tendo um real de seu phantasiam palacios e cascatas brilhantes, falam com grande entusiasmo das quintas que nos arredores de Roma possuia Cesar, Lucullo, Marcello, Nero, Pompeu, Salustio e muitos outros homens celebres; mas hoje não existem mais do que ruinas. A casa de campo de Mecenas, onde iam Augusto, Virgilio, Horacio, Plocio, Tiscca e Polion descançar das fadigas de Roma, converteram-se hoje em forja de um pobre ferreiro. Que ode tão sentimental escreveria o pudico auctor da Eneida se ressuscitasse ao contemplar as ruinas de Roma.
D. Ventura ouvia Ernesto de bôcca aberta. Tudo isto para elle era grego. Amparo não deixava de se sorrir. Entre elles começava a existir uma grande intimidade, a intimidade que produz as sympathias.
—Sabe o que desejo vêr, sr. Ernesto? disse Amparo. É o Colyseu. Li, não me recordo em que livro, que visto n'uma noite de luar é surprehendente.
—Os viajantes julgam segundo a impressão que os objectos produzem no seu temperamento. Por isso emquanto uns ao percorrer a Palestina a descrevem cheia de frondosidade e poesia que a adornava no tempo de Salomão, outros a classificam de um arido areal, um deserto insupportavel, pobre, povoado por tribus selvagens e ascorosas, mas o Colyseu começado por Vespasiano e acabado por Tito, visto, quer á luz do sol quer á da lua é verdadeiramente admiravel.
—Ainda assim prefiro vel-o de noite, disse Amparo.
—Então aproveitaremos o luar, e hoje mesmo se póde realisar o seu desejo.
—Que dizes a isso, papá?
—Que estou ao teu dispor.
—Fica, pois, combinado para esta noite.{15}
Almoçaram como bons hespanhoes, depressa e sem lhe dar grande importancia, pois não é a Hespanha a terra dos Lucullos.
Do meio-dia ás 5 horas da tarde visitaram algumas casas de campo dos arredores de Roma.
D. Ventura estava encantado. Ernesto sabia tudo; era, como vulgarmente se diz, um livro aberto.
Não encontraram uma pedra, uma columna, um sepulchro do qual o pintor não soubesse a historia.
Amparo escutava-o com prazer. Encostando-se-lhe familiarmente ao braço fazia-lhe perguntas, principalmente quando encontrava alguma inscripção latina.
O dia passou-se agradavelmente para os tres; as horas foram curtas, e os laços de amisade estreitaram-se duplamente com aquelle agradavel passeio.
Ás seis horas regressaram ao hotel. O jantar já os esperava. Depois metteram-se n'um trem que os conduziu ao Colyseu.
A noite estava serena; a lua no seu auge, e a sua clara luz banhava as colossaes ruinas onde em outros tempos oitenta e sete mil espectadores iam gozar o barbaro espectaculo das luctas humanas.
Então, o povo romano pedia pão e circo, e os imperadores tinham o cuidado de satisfazer os desejos da terrivel fera que dormia, lambendo-lhe os pés.
Ernesto levava os dois amigos a um e outro lado, esplicando-lhe com o mesmo conhecimento que poderia fazer-lhe um cicerone do tempo do imperador Claudio, descrevendo-lhe ao mesmo tempo aquellas terriveis luctas, dos adestrados gladiadores, cujo sangue regou com abundancia a arena do circo.
—Assistiram mulheres a esse barbaro espectaculo? perguntou Amparo.
—Ao principio era-lhes prohibida a entrada, respondeu Ernesto, mas depois foi auctorisada, reservando-lhes Octavio Augusto as bancadas mais altas do amphitheatro. Precisamente aqui onde estamos era a tribuna do imperador, e alli a das vestaes, cujo docel era egual ao do imperador. A este sitio chamava-se{16} Spoliarium, para onde conduziam os cadaveres dos gladiadores ou os que estavam mortalmente feridos, puxando-os com um gancho de ferro. Esta obra colossal foi construida no curto espaço de quatro annos. Tinha setenta portas, sem contar com as entradas reservadas para o imperador e a sua côrte. As festas da inauguração no tempo de Flavio Sabino Tito duraram cem dias consecutivos, e n'ella perderam a vida dois mil gladiadores.
—Parece impossivel que tão sanguinolentos espectaculos agradassem a mulheres, exclamou Amparo.
—A vida dos feridos, continuou Ernesto, quando caíam banhados de sangue na arena, ficavam sempre á disposição dos espectadores. O vencedor collocava a ponta da espada no peito do vencido e esperava que o publico lhe dissesse; «Mata» ou «Perdôa». Outras vezes o ferido arremessava as armas e caía ao pé das grades a implorar clemencia. Se os espectadores levantavam o dedo pollegar, concedia-se-lhe a vida; mas se o viravam para baixo, então o ferido apresentava o peito ao seu adversario para que o acabasse de matar.
—Mas perdoavam sempre? disse D. Ventura.
—Algumas vezes. Durante o reinado do infame Caracalla nem uma só vez se concedeu o indulto aos gladiadores vencidos. O povo romano de então, era tão feroz como sanguinario, e só gozava com a agonia dos seus similhantes, pois, como disse o grande poeta inglez Lord Byron, ácêrca dos costumes do povo, assim apparecem singelas e naturaes as cousas mais horriveis e sangrentas.
D. Ventura escutava em silencio o narrador, que lhe contava com a precisão de um bom livro, todas as horriveis scenas que tiveram logar no Colyseu.
Algumas vezes Amparo, para caminhar com mais segurança por aquellas sumptuosas ruinas, dava a mão a Ernesto. Aquellas duas mãos apertavam-se docemente, transmittindo um suave estremecimento.
D. Ventura era um homem de bem, mas um homem todo prosa; e aquillo tudo, apezar do luar e das{17} descripções historicas de Ernesto, parecia-lhe um montão de ruinas, uma toca de lagartos.
Comtudo, para não ser desmancha-prazeres, dizia de quando em quando:
—Soberbo! Magnifico!
Á meia-noite regressaram ao hotel.
Quando Ernesto se despediu, Amparo disse-lhe, apertando-lhe a mão e dirigindo-lhe um olhar cheio de doce esperança:
—Passei uma noite deliciosa. Estou certa de que sempre me lembrarei do Colyseu de Roma.
Para Ernesto aquella despedida foi uma promessa irmã da esperança, essa bella flôr que perfuma a alma.