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CAPITULO V O grupo de Niobe
ОглавлениеA Florença dos nossos dias é muito differente da que engrandeceram os Médicis; mas por toda a parte se encontram as pégadas de Cosme o Virtuoso, chamado o pae da patria, talvez pelo excessivo rigor com que tratava os filhos.
Indubitavelmente os Médicis foram grandes negociantes. A sua fortuna fabulosa e a sua honradez ao{30} mesmo tempo, elevou-os á primeira dignidade da republica florentina.
Mas como em todas as familias ha sempre um judas que vende a sua raça, succedeu que emquanto Cosme o Virtuoso, chamado pae da patria, mandava emissarios por todo o mundo em busca de manuscriptos para enriquecer as bibliothecas, pensionando com luxo artistas, e Lourenço Magnifico sahia em segredo de Florença e apresentando-se ante Fernando de Napoles, com quem estava em guerra, dizia-lhe: «Aqui me tens só e desarmado. Se é a mim a quem odeias satisfaz a tua vingança com a minha morte, pois ditoso me julgarei libertando com a minha vida a de tantos valentes, dispostos a despedaçarem-se pelas nossas rivalidades», outros Médicis deshonraram o illustre appellido que tinham herdado de seus nobres antepassados.
Sublime foi o rasgo de abnegação levado a cabo por Lourenço de Médicis, evitando a corrente de sangue que ameaçava inundar Napoles e Toscana, apezar de dizer a historia que o papá Sixto IV preferia a guerra, esquecendo-se de que era um representante de Christo, do Deus da bondade, do perdão e da tolerancia.
Mas a natureza é variada, e depois dos grandes Médicis da republica vieram os pequenos ladrões do despotismo.
Chegou Alexandre, verdugo do povo, morto ás mãos do sobrinho, que com incrivel cynismo lhe perguntou ao enterrar-lhe a espada no peito: «Senhor, estaes dormindo?» Veiu depois Fernando, que morreu d'uma indigestão de fructa verde, e por ultimo o estupido Cosme III, cuja esposa Margarida de Orléans, não podendo supportar a repugnancia que lhe causava o marido, o abandonou, envergonhada de lhe ter pertencido. Para que a estupidez de Cosme chegasse ao cumulo, dedicou-se em procurar a mulher pelas côrtes da Europa: mas em toda a parte se riram d'elle, despedindo-o vergonhosamente como a um ente repugnante.{31}
Deixemos os Médicis á historia, e continuemos a narração interrompida ao avistar as altas muralhas de Florença.
Na estação, entre os muitos corretores d'hoteis que disputam os estrangeiros, D. Ventura encontrou-se com um hespanhol que tinha casa de hospedes, entrou em ajuste com elle, e conduziu-os n'um trem para casa.
D. Ventura alugou todo o rez-do-chão, com o direito de lhe pertencer o jardim plantado de laranjeiras, limoeiros e grandes acacias.
O rez-do-chão compunha-se de um quarto com janellas para o jardim, uma sala grande, um quarto de vestir, uma casa de jantar e uma sala. Amparo installou-se em dois quartos. D. Ventura e Ernesto ficaram com a sala e outro quarto contiguo á casa de jantar; a sala declarou-se terreno neutral e todos podiam dispôr d'ella para o que necessitassem. Era o ponto de reunião dos nossos viajantes.
O senhor Rosales, dono da casa, era um sujeito muito amavel e serviçal. Disse-lhes que tinha sempre muitos bons hospedes; que o primeiro andar estava todo alugado ao sr. Conde de Loreto e ao seu velho mordomo; que no segundo estavam varios portuguezes e que era tão apaixonado das cousas de Hespanha, que mandava vir grão e chouriço hespanhoes, para que quando algum hospede quizesse de vez em quando comer rico cosido madrileno, podel-o servir.
D. Ventura esteve quasi a abraçar o seu hospedeiro, porque como bom madrileno começava a sentir a falta d'aquelle manjar predilecto.
Emquanto a Amparo acercou-se da janella do gabinete, viu o formoso céu de Florença, aspirou o perfume das laranjas e dos limões, exclamou:
—Oh! que delicioso cheiro! que bem que ficamos aqui!
A alegria de Amparo reflectia-se no coração de Ernesto.
No primeiro dia entretiveram-se os nossos viajantes{32} em arranjar itinerario. Ernesto propoz visitar na manhã seguinte o palacio de Médicis.
Em Florença o céu tem sempre luz, doçura, poesia. Os nossos viajantes levantaram-se, dispostos a emprehender o seu passeio. A manhã não podia estar melhor, o céu mais azul.
Como não necessitavam de cicerone, porque Ernesto conhecia Florença tão bem como Roma, sahiram em direcção ao celebre palacio de Médicis.
Amparo e Ernesto levaram os seus carnets, e D. Ventura o seu Guia.
Logo que chegaram ao palacio e entraram nos jardins, Ernesto, depois de fazer observar aos seus amigos as duas distinctas architecturas do edificio, a construida na Edade Media e a edificada por Vasari no seculo XIV, exclamou:
—Quando o viajante passeia por estes vastos jardins, parece que encontra de menos Lourenço de Médicis, cognominado o Magnifico. Oh! ditosa epocha aquella em que Lourenço, agarrando o braço de Miguel Angelo, reprehendia com doçura paternal a indolencia do grande artista, incitando-o ao trabalho! Ditoso tempo aquelle! Lourenço ria e applaudia os comicos epigrammas do alegre Pulci, fazendo-o escrever o Morgante Maggiore, o poema heroe-comico mais celebre de Italia, e em que Angelo Poliano lhe lia os discursos de historia e philosophia.
E mudando de entoação continuou com accento alegre:
—É preciso confessar, meu caro senhor D. Ventura, que hoje os reis, os potentados da terra se occupam pouco ou nada dos pobres sonhadores, dos filhos do genio. Então, ante o talento dobravam a fronte os soberanos. Cosme de Médicis encontrou um manuscripto de Tito Livio, enviou-o a Fernando de Napoles, com quem estava em guerra, e foi tão grande a alegria d'este rei, que receando ser ingrato, assignou o tratado de paz que Cosme solicitava; devendo as mães de Italia a sua tranquillidade e a vida dos filhos a umas folhas de pergaminho manuscriptas.{33} Hoje, nem todos os preciosos manuscriptos das bibliothecas romanas decidiriam dos reis, quando disputam um palmo de terra, a deporem as armas. Mas entremos na sala que immortalisou o cinzel do filho de Paros.
D. Ventura, que ouvia com satisfação as palavras de Ernesto, exclamou:
—Para que diacho me comprou este livro se aqui não diz nada do que tem estado a contar?
—Senhor D. Ventura, respondeu o pintor, sorrindo-se, breve chegará a hora em que lhe seja util. A collecção de camafeus, medalhas e debuxos compõe-se de vinte e oito mil estudos e croquis, feitos pelos mais celebres pintores italianos, e em chegando ahi, fecho a bôcca e pego no lapis. É então que o livro falará pelo cicerone.
Ernesto conduziu os seus amigos á sala de Niobe e ao chegar deante d'aquelle grupo que representa a mais sublime epopeia da dôr maternal, ao deter-se em frente d'aquella mãe, cem vezes mais dolorosa do que a dos Machabeos, tirou o chapéu com veneração e ficou como que fascinado ante aquella esculptura, creada pelo magico cinzel de Scopas 478 annos antes de Christo, para que fosse o pasmo e a admiração das edades futuras.
D. Ventura descobriu-se tambem, apezar de não comprehender o valor de tão interessante grupo que tinha ante si. Para elle, aquillo era uma mãe chorando seu filho morto e uma joven ferida que agonisava; para Ernesto e Amparo, que tinham uma alma mais artistica, mais enthusiastica, aquelle drama maternal, aquella cabeça sublime modelada, enlouquecida pela dôr, era uma obra sem rival. Scopas, o artista da verdade, apparecia ante os seus olhos como o gigante da esculptura.
—Que bello grupo!
—Sim, senhora D. Amparo, respondeu Ernesto. Para os que têem a arte em alguma conta só para vêr esse grupo vale a pena vir a Florença, ainda que das regiões mais afastadas do universo. Essa{34} scena é tão sublime, tão dramatica, que os exigentes criticos de Athenas inclinaram a cabeça com admiração, assombrados de tão grande obra. Na figura da mãe está toda a alma de Scopas.
D. Ventura, que não compartilhava do enthusiasmo do pintor nem de Amparo, um pouco enfadado com tantas exclamações, nas quaes não podia tomar parte por se julgar profano no assumpto, disse, instigado pela curiosidade:
—Mas o que representa esse grupo que tanto admiram?
—Scopas foi um artista pagão. No seu tempo estava em moda a Mythologia, e os homens adoravam as deusas e os deuses do Olympo, apezar dos seus defeitos e fraquezas, disse Ernesto. Pois bem, Niobe era filha de Tantalo e esposa de Anfior, rei de Tebas, tão presumida da sua fecundidade, que se queixou amargamente aos deuses vendo que no Olympo se dava sensivel preferencia sobre ella á deusa Latona, filha de Saturno e de Febe, mãe de Apollo e Diana, e esposa, segundo se assegura, de Jupiter. Os deuses irritaram-se da soberba d'aquella pobre mortal que se atrevia a refutal-o e combinaram um terrivel castigo. Appollo e Diana feriram com as suas flechas os filhos de Niobe; Jupiter converteu em pedras os subditos da orgulhosa rainha de Thebas, que queria ser mais do que uma deusa. Durante nove dias, os filhos de Niobe permaneceram no solo cobertos de sangue; a agonia foi grande, terrivel, tragica, até ao grau mais sublime; Niobe, louca de dôr e de amargura, derramando um mar de lagrimas, arrancando os cabellos de desespero, pedia soccorro com gritos d'alma, mas os seus vassallos permaneceram immoveis e indiferentes. Por fim ao decimo dia Jupiter compadeceu-se d'aquella mãe e julgando-a já sufficientemente castigada, tornou á vida os thebanos, permittiu que tomassem algum alimento, mandou enterrar os filhos, e convertendo Niobe em uma rocha, collocou-a no cume d'um solitario monte, onde chora eternamente a perda dos queridos fructos das suas entranhas, sendo um{35} monumento de vergonha dos vingativos deuses do Olympo.
Quando Ernesto acabou o conto mythologico D. Ventura, movendo a cabeça em signal de duvida, disse:
—Mas tudo isso é uma fabula.
—Que deu bastante assumpto, respondeu o pintor, para que Scopas, deixasse essa sublime e inimitavel esculptura, que é uma verdade admirada por todas as nações; grupo sublime do qual nos permittirá que tiremos um rapido croquis.
E Ernesto começou a copiar a obra prima do celebre filho de Paros.
D. Ventura encolheu os hombros, e emquanto Amparo e Ernesto desenhavam a Niobe, entreteve-se a vêr os bustos antigos, as estatuas egypcias, os sarcophagos e o retrato de Bruto feito por Miguel-Angelo.
O rico commerciante passava com ligeireza por todas aquellas obras de merito. Para elle não tinham a importancia que lhe attribuiam; e do fundo do coração dizia que os artistas eram uns pobres loucos que viviam de illusões, exaggerando tudo.
Ernesto e Amparo entretanto tiravam um desenho do grupo: e tão embebidos estavam no seu trabalho que não repararam que um rapaz elegantemente vestido, de correctas feições e maneiras distinctas, se deteve a poucos passos d'elles, e tomando das mãos de um creado que o seguiu o carnet de desenhos, começou a tirar uma copia da celebre esculptura de Scopas.
Chamava-se Fernando de Villar, Conde de Loreto.
Quando Amparo desviou os olhos do papel onde desenhava viu o conde, e este cumprimentou-a com um ligeiro movimento de cabeça. Ernesto cumprimentou-o mas com uma certa frieza que demonstrava o desgosto que lhe causava a presença d'aquelle homem.
Ao sair da sala de Niobe, D. Ventura disse:
—Viram o conde de Loreto?
—Era o joven que desenhava proximo de nós? perguntou Amparo.{36}
—Sim. Occupa o andar por cima de nós.
E deixando a conversação continuaram visitando o palacio.
O rico museu dos Médicis, contem dezenove galerias.
Não é, pois, nosso intento percorrer minuciosamente estes immensos arsenaes da arte, detendo-nos ante cada obra-prima que se apresenta aos avidos olhos do viajante enthusiasta.
Os nossos amigos dedicaram os dias a vêr os museus, as bibliothecas e as egrejas. Para as noites ou assistiriam aos espectaculos, ou passeariam nos jardins, aspirando os perfumes.
A segunda noite da sua estada em Florença, Amparo passeava no jardim com Ernesto, quando lhe chegaram aos ouvidos as melodiosas notas de um orgão expressivo, tocado com tanto gôsto como mestria. Detiveram-se e ouviram com a religiosidade dos amantes de musica.
No dia seguinte Amparo perguntou ao senhor Rosales quem tocava o orgão.
—O senhor conde de Loreto. É um grande musico.
Desde então Amparo abriu algumas noites a janella para ouvir o orgão
Um dia D. Ventura deteve-se deante da celebre mula negra do palacio Pitti.
—Isto será um capricho de algum celebre esculptor? perguntou.
—Isto é a vergonha de um nobre tão ingrato como parvo, respondeu Ernesto.
—Temos outra historia como a da Niobe?
—Não, esta é historica e vergonhosa para o auctor. Luc Pitti foi um homem cuja riqueza e liberdades lhe tinham grangeado a estima dos seus concidadãos e a aura da popularidade. Pitti quiz luctar em magnificencia com Cosme de Médicis, e começou a construir um palacio, que é este em que nos achamos; mas bem depressa se viu arruinado, e a obra teve que suspender-se. O povo sempre generoso e{37} agradecido com os que d'elle se recordavam e os Médicis, protectores da arte, vieram em ajuda do soberbo Pitti, publicou-se um decreto concedendo o perdão a todos os criminosos e malfeitores que viessem trabalhar no palacio de Luc. O povo correu em tropel a trabalhar nas obras: todos os condemnados de Italia vieram tambem. O palacio acabou-se com o suor dos pobres; mas Pitti tão nescio como ingrato, fez construir essa mula gravando-lhe no pedestal um distico latino para sua eterna vergonha, pois prova-nos a sua inqualificavel ingratidão, porque a mula representa o povo e o distico diz: «Esta azemola trabalhou e conduziu tudo; pedras, marmores, madeiras e columnas.»
Outra tarde Ernesto conduziu os seus amigos á egreja de São Giovanni, fazendo-lhes admirar os quadros de Andrea del Sarto, tão miseravelmente retribuido pelos frades, e ante a inimitavel Virgem do Sacco, por cuja obra, que admira o orbe, pagaram-lhe com um sacco de trigo os irmãos servitas da Annunciada, abusando da pobreza do artista, que se vingou, pondo o mundo por testemunha da sua humilhação dando á sua obra o nome de Virgem do Sacco.
Visitaram tambem os sepulchros dos poetas e dos grandes artistas. Junto ao de Dante Alighieri, onde chora a poesia e medita a estatua de Florença, Amparo e Ernesto recordaram Beatriz e os seus interessantes amores.
Assim se passavam os dias, crescendo nas almas dos dois jovens esse preludio do amor que se chama sympathia.
Mas deixemos a luz d'esse esplendoroso sol de Floreça, para gosar dos poeticos raios da lua. A noite tem tambem os seus attractivos.