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CAPITULO IV O pintor e o judeu

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Daniel Raithany era um dos maiores negociantes do bairro judaico. Tinha em toda a Europa fama de intelligente e honrado, apezar de ninguem ignorar que vendia caro e comprava barato. Esta qualidade era descupavel, tratando-se de um negociante judeu; mas, em compensação, tinha uma grande qualidade, que era que quando um admirador de pintura, ainda que de Londres, Paris, Vienna, S. Petersburgo, Madrid ou de qualquer das grandes capitaes da Europa necessitava para a sua galeria um quadro d'este ou d'aquelle auctor celebre, escrevia-lhe uma carta, e não olhando a preço tinha o que desejava.

Nunca enganava ninguem, dando uma copia por original. Daniel era intelligente, e apezar de não saber pintura, tão conhecedor era das escolas que mais de uma vez, em casos duvidosos, o chamavam como períto.

Todos os pintores eram amigos de Daniel e era tão difficil enganal-o vendendo-lhe gato por lebre, como vulgarmente se diz, que ninguem tentava fazel-o.

Dizia-se que o negociante conseguira juntar muitos milhões. Comtudo a sua loja apresentava sempre o mesmo aspecto modesto, e a sua pessoa conservava a mesma linha; isto é, usava constantemente uma sobrecasaca verde com grandes abas, calças e collete preto, uma gravata de velludo, um chapéu usado, um chapéu de chuva velho debaixo do braço e uma cadeia d'aço, em cuja extremidade estava preso um modesto relogio de prata.

Daniel era um homem alto, magro e pallido, nariz arqueado, cabello grisalho, olhos verdes, pequenos o encovados; um d'esses typos vulgares, mas em{24} quem, olhados com attenção, se encontra bondade e doçura no semblante.

Ernesto estava pintando. Eram dez horas da manhã quando viu entrar no atelier o judeu.

Daniel entrou como sempre, sorrindo-se, com o chapéu de chuva debaixo do braço, e a caixa do rapé que nunca abandonava, na mão esquerda.

—Bons dias, millionario, disse Ernesto, extendendo-lhe a mão. Muito agradecido pela sua pontualidade.

—Em questão de dinheiro, respondeu Daniel, é preciso sermos pontuaes, e aproveitarmos o tempo. Por um minuto se póde perder um bom negocio.

—Pelo que se vê o senhor é negociante até á medulla dos ossos. Mas vamos falar do nosso.

O pintor deixou a paleta e os pinceis, indicou-lhe uma cadeira e sentou-se n'outra.

—Preciso dinheiro.

—Já o suppunha.

—Por isso lhe pedi que me viesse visitar.

—E eu, conhecendo a impaciencia dos artistas, apressei-me em vir.

—Agradecendo-lhe pela segunda vez, começarei por lhe dizer que dentro de tres dias parto para Florença.

—Uma viagem de recreio.

—De recreio e estudo. Tenciono tirar alguns croquis da celebre galeria do palacio de Pitti.

—Bello pensamento!

—E como para ir a Florença é preciso dinheiro e como eu não o tenho, ou melhor, tenho pouco, quero que me compre alguns quadros. Póde escolher, exceptuando o que está no cavallete, pois esse é, como sabe, para a Exposição de Madrid, e póde dizer-se que me não pertence.

Daniel guardou silencio, levantou-se, poz os oculos e começou a passar revista aos quadros, e estudos que estavam nas paredes.

Ernesto entretanto accendeu um charuto e recostou preguiçosamente a cabeça no espaldar da cadeira.{25}

Mais de tres quartos de hora durou a revista passada ás telas por Daniel. Quando estava perfeitamente inteirado, tirou os oculos, com todo o seu vagar, guardou-os no bolso, e, sentando-se, disse:

—Tem seis quadros de comestiveis, quatro pequenos de costumes hespanhoes, e dois de flôres. Fico com os doze, pois tenho probabilidade de os vender a um inglez que me encarregou de comprar alguma cousa n'este genero, e dou por elles quatrocentos duros.

—É pouco dinheiro.

Daniel encolheu os hombros.

—Não dou mais, respondeu; é impossivel.

—Dou-lh'os por doze mil reales e creia que ainda ganhará uns duzentos por cento.

—N'estes tempos não é possivel. Desde que a photographia póde offerecer o fac-simile de uma obra-prima por um franco, a pintura perdeu muito.

—Senhor Daniel, concedo-lhe o direito de regatear o preço de um quadro, de dizer que é mau sendo bom, mas não lhe consinto que ponha a photographia a par da pintura. Poderá ter-se uma copia do Ticiano estampada em um boccado de papel por dois reales, mas não se terá Ticiano, nem pela photographia se poderá nunca formar uma ideia, ainda que vaga, do que vale o citado auctor.

Daniel fez um gesto de indifferença, o ajuntou:

—Sabe que tenho em muita consideração os seus trabalhos, e que se não estivesse tão occupado, o encarregaria de algumas copias, e isso deve inspirar-lhe confiança para crer que não procuro exploral-o. Quem sabe se terei quatro ou mais annos armazenados na loja esses doze quadros que pretendo comprar. E se assim succeder, o senhor bem sabe que dinheiro vale dinheiro, e isso representa uma grande perda.

Ernesto comprehendeu que o judeu não lhe daria mais, visto conhecer a necessidade que elle tinha do dinheiro.

Calculou que com a importancia offerecida e o que possuia podia fazer desafogadamente e até com luxo a viagem e resolveu acceitar o negocio.{26}

—Está fechada a transacção, disse o pintor. Mando-lh'os ainda hoje mesmo.

Daniel tirou a carteira, e d'ella a importancia offerecida em notas do Banco Romano, e entregou-a ao pintor, dizendo:

—Muito dinheiro podia ganhar!

—Não desejo outra cousa, respondeu Ernesto, pondo o dinheiro sobre a mesa.

—Seriamente?

—O dinheiro é a primeira necessidade do homem n'este valle de lagrimas.

—Então posso offerecer-lhe á volta de Florença algumas notas mais, se me trouxer algumas copias da escola flammenga e franceza dos originaes que existem no palacio Pitti.

—Isso depende do tempo.

—A actividade augmenta as horas.

—Não me comprometo, mas farei todo o possivel porque receio que me faça falta o dinheiro para ir a Hespanha expor o meu quadro.

—Pois já sabe o meio de o obter.

Daniel começou a despendurar os quadros que comprara e ia-os collocando todos juntos, para que Ernesto ao mandal-os se não esquecesse de algum.

Depois despediu-se do pintor, tornando-lhe a recommendar que trabalhasse muito.

—O trabalho, senhor Ernesto, é a maior fortuna do homem. Não se esqueça de que as formigas e as abelhas são muito mais ricas do que as cigarras.

Ha conselhos que só produzem um ligeiro murmurio nos ouvidos de quem os ouve.

Daniel sahiu. Ernesto chamou o creado.

—Logo levas esses doze quadros a casa do senhor Daniel Raithany, disse-lhe. Vou fazer uma viagem a Florença. Demoro-me um mez. Podes dispor de ti como te aprouver, n'esses trinta dias, mas nem uma só noite deixarás de dormir em casa.

Entregou o dinheiro que julgou sufficiente para o sustento do creado, mandou que lhe servissem o almoço, e depois sahiu.{27}

Uma vez em Roma comprou alguma roupa para a viagem.

Á tarde foi visitar os seus amigos e jantar com elles.

D. Ventura começava a olhar Ernesto como da familia; é verdade que quando se encontra um compatriota a algumas centenas de leguas distantes da mãe patria, sente-se uma alegria tão grande no coração que o tratamos como se fosse um parente.

A D. Ventura parecia o mais natural do mundo que um rapaz tão bem educado, tão fino, tão illustrado como Ernesto o acompanhasse na sua viagem a Florença.

Emquanto a Amparo, não pensou senão em realisar o seu desejo; viajando com Ernesto, tinha mais encanto a excursão, porque o pintor lhe era sympathico.

Os olhares, os sorrisos, os apertos de mão, as palavras carinhosas são impulsos muitas vezes naturaes do coração feminino, e é sem duvida por isso que não lhes dão nenhuma importancia.

Mas Ernesto pensava de outro modo, e ia reunindo na sua alma simples e apaixonada, um sem numero de esperanças encantadoras, que eram o seu maior thesouro, e que deviam tornar-se a sua maior desgraça, porque o amor quasi sempre é um jogo em que um dos jogadores perde.

Os preparativos de uma viagem em que esperamos gozar e divertirmo-nos são muito encantadores. Ernesto offereceu a D. Ventura um Guia do forasteiro em Florença, preciosamente illustrado, e a Amparo um elegante album para desenhos.

—Temos que trabalhar muito, dizia o pintor, e não podemos consentir que nos importune com perguntas.

—Sim, sim, o senhor Ernesto tem razão; temos que fazer muitos desenhos, e para que se não aborreça, emquanto trabalhamos, lerá o seu Guia deante das obras d'arte que vamos visitar.

D. Ventura para quem não havia maior felicidade{28} do que a alegria de Amparo, vendo-a contente e feliz, ria-se com a expansão de um pae que ama com loucura a filha.

Só uma vez se poz serio vendo crescer aquella sympathia entre Amparo e o pintor, e disse:

—E a rapariga acaba por se enamorar de Ernesto. Fez algumas reflexões mentaes e ajuntou:

—Diabo, Ernesto é pobre; minha filha tem quatro milhões de dote no dia do casamento e mais oito quando eu morrer.

Aqui tornou a deter-se; mordeu o labio inferior como o negociante que pensa n'um negocio importante, mas rapidamente se lhe alegrou o rosto e exclamou:

—Se ella o ama e quizer casar com elle, que se case; vale mais ter por genro um homem como Ernesto, pobre, do que um parvo rico.

Desde aquelle momento, Ernesto podia contar com a protecção do pae.

Chegou o dia da partida. A viagem podia fazer-se de dois modos: em pequenas jornadas, parando-se para vêr as povoações de alguma importancia artistica, ou em caminho de ferro.

D. Ventura optou pela ligeireza da locomotiva, e os nossos tres viajantes, alegres como estudantes em ferias, installaram-se n'um compartimento de primeira classe. A fortuna favorecia-os: iam sós. Emquanto foi dia, Amparo e Ernesto passaram a maior parte do tempo á janella da carruagem, admirando o panorama que se ia desenrolando a seus olhos.

Os jovens só trocaram algumas palavras em voz baixa; mas os olhos têem uma linguagem tão expressiva, que dizem tudo, quando se movem impulsionados por uma alma apaixonada.

D. Ventura lia o livro offerecido pelo pintor, ou dormitava. Quando chegou a noite, Ernesto bastante timido, apoderou-se de uma das mãos de Amparo, não menos linda do que a da Laura que inspirou a Petrarcha quatro sonetos, e disse-lhe:

—Que feliz eu sou!...{29}

Amparo sorriu-se e retirou a mão.

Depois, reclinando a cabeça em um dos cantos da carruagem, cerrou os olhos, fingindo que dormia.

Assim collocara certa distancia entre si e Ernesto. Amparo, apezar de nova, tinha mais conhecimento do coração humano do que o seu companheiro de viagem, e temeu que prolongando a conversação á tenue luz do vagon e quasi tocando-se os joelhos, fizesse alguma d'essas concessões de que mais tarde se arrepende a mulher.

Ernesto procurou tambem posição commoda e tentou dormir, mas foi em vão.

Nasceu o dia, e com elle a animação entre os viajantes.

A linha seguia n'aquelle momento o curso do rio Arno. A conversação renovava-se a cada paragem do comboio. D. Ventura lia o nome das estações e procurava no Guia a parte interessante da terra.

Em Signa atravessaram o Arno e não demorou muito vêr-se ao longe as torres elevadas de Florença, os quatro pontos e os quatros bairros.

Ernesto exclamou:

—Alli está Florença, berço do renascimento das artes, patria de Dante, de Petrarcha, e de Galiléu!

Historia de um beijo

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