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CAPITULO III Sonhos côr-de-rosa
ОглавлениеErnesto teve aquella noite um sonho côr-de-rosa, porque a bella Amparo foi o anjo do seu sonho.
Os homens de genio e sobretudo os pintores, quando pensam no amor, antes de amar, criam um typo perfeito como todas as sublimes creações da imaginação; uma d'essas mulheres de extraordinaria belleza cheia de luz, sem um senão no moral, sem um defeito no physico, perfeita de corpo e d'alma: mas quando chega o momento de, ou cançados do celibato, ou para pagar esse tributo de que poucos se salvam, chamado matrimonio, se decidem a casar, então já é outra cousa, pois muitas, mesmo muitissimas vezes a poesia se incarna na prosa, e depois... Satanaz toma parte activa na symphonia do matrimonio.
O amor é cego, e os homens e as mulheres devem resignar-se a não vêr bem, precisamente quando deviam ter olhos de lynce.{18}
Ernesto levantou-se alegre e cantando a symphonia de Guilherme Tell; e pensando em Amparo pegou na paleta e poz-se a pintar no seu quadro.
A filha do D. Ventura tinha-se photographado d'uma maneira tão profunda na sua imaginação, que o pintor achou sem saber como que uma das figuras do seu quadro tinha grandes parecenças com Amparo. Admirou-se, mas agradou-lhe ao mesmo tempo.
Ás dez horas largou a paleta, almoçou, e pegando n'uma folha de papel, poz-se a pintar uma aguarella do Colyseu visto á luz do luar.
—Isto será uma recordação dedicada a Amparo, disse elle. Dir-lhe-hei que a colloque no seu gabinete para que nunca se esqueça da noite que representa.
Ernesto esmerou-se marcando com arte e delicadeza todos os detalhes da aguarella. Collocou n'um ponto conveniente um pintor tirando o croquis do Colyseu, e ao seu lado um cavalheiro e uma joven.
Apezar das figuras terem apenas duas pollegadas, o pintor tinha o maximo empenho em que ficassem parecidas com os originaes que representavam. A empreza era difficil; mas por fim, apoz algum trabalho, conseguiu o que desejava.
Satisfeito com a sua obra e com a alegria do homem que sente na alma os primeiros perfumes do amor e julga causar uma surpresa agradavel á provocadora dos seus sonhos, ao cair da tarde dirigiu-se para Roma.
D. Ventura e a filha estavam tomando café. Tinham acabado de jantar.
—Chega a proposito, disse D. Ventura.
—Dou-me por feliz, respondeu Ernesto, cumprimentando a joven.
—Sente-se e tome café comnosco.
—Primeiro que tudo, desejo saber em que consiste a opportunidade da minha chegada.
—Aborreciamo-nos, disse Amparo, Roma é uma cidade morta; nem sequer tem theatros.
—Diz muito bem. Roma é um cadaver que todos os annos ressuscita pelo Carnaval, e vive um mez{19} commettendo as mais excentricas loucuras; depois torna a cahir na soledade da tumba, até ao anno seguinte.
—Quer dizer que errámos a epocha da nossa viagem, disse D. Ventura.
—Justamente. Mas se a sr.ª D. Amparo quizer ir ao theatro, temos actualmente um aberto.
—Qual?
—O do Tiano.
—Dizem que não é bonito.
—Sim, mas em compensação representam admiravelmente.
—Sabe, senhor Ernesto, que esta noite tive uma ideia? disse Amparo, cerrando docemente as palpebras para conservar a luz dos seus formosos olhos fixos no pintor.
—Estou crente, de que foi uma ideia sublime.
—Vaes ouvir, papá; o senhor Ernesto já disse que a minha ideia era sublime; agora só necessito que o papá a ache tambem.
—Olha que os artistas são muito aduladores; não te fies n'elles. Mas vamos, dize qual é a tua ideia.
—Resume-se em deixarmos Roma e irmos passar um mez em Florença; mas com uma condição: que o senhor Ernesto nos acompanhe como nosso cicerone.
—Essa exigencia é uma loucura, filha da pouca experiencia propria da tua edade, disse D. Ventura. Ernesto está pintando um quadro que tem de mandar para a proxima exposição de Madrid, em setembro.
—Sim, o senhor Ernesto tem o quadro muito adeantado e d'aqui até setembro vão ainda quatro mezes, disse rapidamente Amparo, dirigindo ao pintor um olhar supplicante para que elle annuisse.
—Acceito sem vacillar, disse Ernesto, e dou as minhas razões. Preciso só de um mez para concluir o meu quadro. E antes de voltar a Hespanha tinha necessidade de ir a Florença para tirar uns croquis da Venus de Médicis, do Grupo de Niobe e de alguns quadros da escola flammenga que existem no celebre palacio de Pitti. Quero tambem tirar alguns croquis da cathedral de Santa Maria de Fiore, d'essa memoravel architectura{20} da qual Miguel Angelo, disse ser impossivel fazer outra mais bella, pois era digna de servir de frontespicio ao Paraiso, e que o imperador Carlos V devia pôl-a n'um estojo para melhor a conservar. Assim pois, tudo se resume em adeantar dois mezes a minha viagem a Florença. Quando partirem para Hespanha, eu regressarei a Roma para terminar o meu quadro, e prometto que o verão collocado n'um dos salões da Exposição no dia 20 de setembro.
Amparo applaudiu, como uma creança que manifesta sem reserva a sua alegria. A viagem projectada por ella era encantadora. Grande foi o seu contentamento vendo que era acceite o seu plano, porque nada é tão grato ao coração de uma mulher joven, como realisar um dos seus sonhos côr-de-rosa que de vez em quando lhe acariciam a alma.
Na noite anterior deitara-se, pensando no seu poetico passeio ao Colyseu. Como o somno se mostrasse rebelde, recapitulou na memoria até as mais pequeninas cousas acontecidas nas celebres ruinas.
Os olhares de Ernesto, os suaves apertos de mão, a lua que banhava, poetisando, as pardas e as derrubadas galerias do Colyseu, as descripções historicas que com doce e carinhoso accento narrava Ernesto, tudo isto formava um conjuncto agradavel ao coração de Amparo.
Amava Ernesto? Nem ella mesmo sabia que responder a esta pergunta que fez pelo silencio da noite.
O pintor era novo, elegante, bem parecido, com uma educação pouco vulgar, e pelo menos era-lhe sympathico.
Como ha sempre algum egoismo no coração da mulher, Amparo pensou que continuar a sua viagem pela Italia acompanhada de Ernesto tinha muito mais encanto, era mais divertido do que viajar sósinha com o pae.
Amparo não pensou senão em si. Com algum conhecimento mais profundo da vida material dos artistas, isto é, a prosa do talento, teria pensado que talvez Ernesto não se encontrasse em condições de emprehender{21} uma viagem em carruagem de primeira classe, e installar-se n'um hotel de luxo.
É bem certo que Amparo ignorava o valor do dinheiro: gastava o do pae, que era rico, sem se preoccupar com o valor que tem um duro[1] para quem não possue vinte reales.
Por outro lado Ernesto, um verdadeiro artista, sonhava que era um principe e julgava os seus sonhos uma realidade... Era mais ambicioso de gloria do que de ouro.
Quando acceitou a projectada viagem por Amparo, sem pensar se o dinheiro que possuia por sua unica fortuna chegaria para occorrer a todas as despezas, só pensou na felicidade de viajar com aquella mulher formosa, por uma terra encantadora, cujo céu azul e o perfume das brisas são o orgulho das filhas de Toscana, a admiração dos estrangeiros.
Combinada a partida para quatro dias depois, Ernesto apresentou a aguarella do Colyseu, que arrancou um grito de admiração e muitos olhares de agradecimento a Amparo.
O pintor regressou a casa já bastante tarde, tão alegre, tão feliz, que não teria trocado a sua existencia por cousa alguma d'este mundo.
A felicidade está ás vezes em tão pequenas cousas!... O pobre artista julgava-se amado, e começava a amar com toda a sua alma virgem e apaixonada.
Quando chegou a casa, pegou n'uma folha de papel para fazer o orçamento das suas despezas.
—Necessito, disse elle, de quatro mil reales para a viagem. Vejamos como estou a respeito de fundos.
Ernesto só tinha seiscentos. Era-lhe preciso arranjar dinheiro.
Procurou na memoria os nomes de alguns amigos pintores que como elle viviam em Roma, mas um sorriso lhe assomou aos labios.{22}
—Todos elles, disse, são tão pobres ou mais do que eu; não devo expôr-me a uma negativa forçada, que é tão desagradavel a quem a dá como a quem a recebe. Melhor será sacrificar alguns dos meus quadros. O senhor Daniel é um judeu, menos judeu que os dez mil que pelo interesse do commercio o papá consente em Roma. Escrever-lhe-hei.
E pegando na penna escreveu:
Senhor Daniel Raithany
«Meu bom amigo
«Vou emprehender uma viagem a Florença e preciso vender alguns quadros. Tenha, pois, a bondade de vir hoje ao meu atelier, onde o espero até ás quatro horas da tarde.
Seu amigo,
Ernesto Alvarez.»
O pintor chamou o creado e disse-lhe:
—Amanha, quando te levantares, vaes a Roma entregar esta carta ao sr. Daniel, negociante de quadros. Mora no bairro dos judeus; já o conheces.
Depois deitou-se para sonhar com Florença e Amparo.
Ernesto achava-se na ditosa edade dos sonhos côr-de-rosa, e viu durante algumas horas passar pelos olhos da sua illusão um panorama encantador onde a flôr mais perfumada, mais bella, mais resplandecente, era Amparo que, olhando-o com languidez, lhe dizia uma e mil vezes mais: «amo-te! amo-te! amo-te!»
E para que desperta um homem d'estes sonhos encantadores?{23}