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A Bisantina

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No café, diante do cocktail vulgar, eu esperava um amigo. Fôra mais cedo para a entrevista, de maneira que antes da hora lêra os jornaes, folheára as revistas, olhára para o relogio, consultára até o barometro, interessado. Iam saindo os clientes, aos poucos. Conforme se levantavam das mezas, o criado, n'um crac apagava a lampada electrica. Eu ficára já, n'um canto, quasi na meia luz. No fundo da sala as lampadas faiscavam nos espelhos, telintavam os pratos, as discussões cruzavam-se.

Esperava em vão... Comecei a ceiar.

D'ahi a pouco um rapaz veiu sentar-se ao pé de mim. Conhecia-o de o vêr nos cafés nocturnos, quasi sempre em companhia de mulheres faceis, estardalhando, contando façanhas de orgias nas vadrouilles de Montmartre; de quando em quando, como n'uma expansão, falava de um quadro que entrevira n'um museu, alguma{50} luminosa festa da Renascença, um nú veneziano, ou preciosas figurinhas dos primitivos, simples e mal desenhadas, entre brocados de oiro.

Mas nunca me ligára, correndo a minha vida n'outra direcção. N'essa noite, admirei-me de elle deixar a bulhenta sociedade que sabrait le champagne, para se acolher ao silencio, á quasi obscuridade.

A principio bebeu a pequenos goles o Bucellas que mandou buscar. Tinha o ar de quem hesita em praticar um acto, o recolhimento subito d'um gesto esboçado, ensimesmava-se, enchia novamente o copo, lia attentamente o rotulo da garrafa.

Por fim debruçou-se para a minha meza:

—O senhor gosta de coisas exoticas, das mulheres finamente perversas, do brilho das podridões...

—Ó, não! Apenas do faisandé!...

—É uma questão de palavras... Tudo o que é ambiguo, perturbante, insexual, tenta-o; compraz-se no esmiuçamento das taras, é o chronista do irregular, do à coté. Prefere as monstruosas orchideas ás rosas, o enigma dos Vincis, á belleza forte dos Rubens. Deixa-me contar-lhe uma historia?

Por certo que a minha phisionomia traiu o receio da maçada eminente. Toda a gente imagina que a sua vida é um «motivo» interessante{51} para um livro. E eu tenho deixado cair, como folhas secas, tantos casos que me contam, compridamente, com meandros de detalhes!

—O senhor tem o dever de me ouvir e não se arrependerá! O senhor é um psicologo...

—Não faço profissão...

—Não importa. Tem obrigação.

—N'esse caso...

Resignei-me.

O noctambulo começou a contar. Tinha a linguagem pittoresca, imageada, parecia comprazer-se com a sua phrase. Notei-lhe grande copia de estrangeirismos. Mas o caso pareceu-me interessante. Aqui o deixo registado.

—Comprehende que eu, fetard cançado, que tenho visto museus entre duas ceias no Maxim ou no Carlton, que aprecio mais o tea-room do Grand Hotel, de Roma, que o Salon Carré do Louvre ou a sala de Velasquez, no Prado, só lhe poderei fallar da mulher ou do amor. E das mulheres que tenho conhecido, um pouco por todo o mundo, d'aquellas que teem ficado com um pouco da minha mocidade entre os dentes brancos ou os dedos esguios, só me recordo da ultima, que é a melhor e a peior, a que faz rir e soluçar, curva-nos n'uma somnolencia em que nos apparece muito mais bella do que é realmente, cingida com todas as joias com que a nossa phantasia a enfeita, mais cruel tambem, porque o amor torna mais cruciante{52} as dores, intensifica o desespero, cria a halucinação da Magua, inventa a Chiméra da turtura, essa Chimera de afiadas garras que nos retalham... Estou muito eloquente. Faça-me signal, quando lhe parecer Cicero...

Imagine que conheci, n'uma pequena cidade italiana onde me fôra curar d'uma paixoneta recente, uma creatura singular, cujo encanto me prendeu quasi de subito. Era uma figura de bisantina, atavismo talvez, influencia das pinturas de Ravenna, onde passára a mocidade. E, artista, cultivava essa feição, arranjava penteados hieraticos, sem complicadas e rutilantes gemas, que o cofre do pae, mediscatro qualquer, não era abundante, mas com flores, essas rosas vermelhas de Pæstum, que ella propria cultivava, amorosamente, no pequeno jardim de sua casa. O que tinha de bisantina realmente, era a bocca fresca, a bocca innocente que sorria apenas, n'uma candura de primeira commungante, uma bocca que deixava em nós a impressão de que era um seraphim a sorrir. E não apetecia beijal-a: apenas quedar-se a gente deante d'ella á espera que nascesse a claridade auroral do sorriso, em que mostrava levemente o traço branco dos pequeninos dentes. Mas os olhos escuros desmentiam toda a infantilidade da bocca, o aspecto angelical do seu corpo magro d'adolescente, o collo branco e purissimo. Os olhos brilhavam como n'um{53} assalto, a ferir, sem ternura, no fundo uma repulsão ou um escarneo...

Essa mulher tentou-me. Largos mezes fui todos os dias á sua casa onde me recebeu com palavras dulcissimas. Estendia-me a mão deliciosa para beijar, dizia-me frases que entonteciam como um vinho aspero, fazia passar por mim o perfume forte que punha nos longos cabellos, que ás vezes caíam pesadamente da cabeça, estendiam-se pelas costas, como uma rosa que se desfolha, d'uma vez, da haste. Ás vezes furtivamente, apertava-me a mão com força. E sorria-se ingenuamente a face de perola, eu via a innocencia de toda aquella figura, porque ella fechava os olhos, como se todo o seu ser adormecesse n'um espasmo.

Ao sair, tinha remorsos de não ter beijado a bocca fresquissima, de não ter, sob a pressão dos meus labios, maguado os olhos maus.

E toda a noite soluçava, enraivecido a desejal-a, até que de tarde ia visital-a, encontrava-a estendida, n'uma atitude de imperatriz, bisantina, em sedas moirées, toda a gama do verde e do lilaz, a garganta descoberta. E n'um gesto estudado, estendia-me a mão, que eu beijava longamente, essa mão em que as gemas não brilhavam: escuras, opacas, pedras finas, opalas, como gottas de agua d'um lago envenenado.

E a scena repetia-se. Eram perturbadores oaristos, que deixavam os nervos tensos e vibrantes.{54} Na voz amortecida e doce, dizia as palavras magicas que accendem fogachos. E quando ella via toda a minha Alma arremessada para ella, tinha o fechar de olhos, abria o sorriso celeste, e eu fugia com medo de mim e com medo d'ella. Como? Uma creança ingenua! Era preciso fugir!

Um dia tive que partir.

Tinha, na pequena cidade, perdido largos mezes. Fui a uma ultima entrevista, chorei como uma creança ao dizer-lhe a magua immensa de a deixar. Contei-lhe toda a tortura d'aquelle tempo de infinita delicia e infinita tortura; pela primeira vez disse-lhe claramente, entre lagrimas tristes, quanto amára todo o seu ser, todo o seu corpo flexivel, todo o seu espirito cançado, mas mesmo assim brilhante. Que me dissesse uma palavra de esperança, que me deixasse levar uma harmonia divina, uma palavra de amor!

Teve uma frase, apenas, com uma expressão de immenso sentimento:

—E não trouxe um fonografo!{55}

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