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FLIRTS

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Maria do Carmo, curvada sobre a meza, folheia os ultimos envois de Paquin e Redfern. Um candieiro com um largo quebra-luz de seda e rendas lança-lhe sobre o cabello uma aureola de oiro. O corpo está mergulhado na penumbra. Na sala, os moveis tomam aspectos fantasticos. Os espelhos teem um brilho pallido. Gonçalo, ao entrar, beija a mão que Maria do Carmo lhe estende, sem levantar os olhos dos papeis.

MARIA DO CARMO—trinta annos, com dez de casamento. Sem filhos. A vida passa-se-lhe em visitas, raouts, recéções e bailes. Alguns livros da moda, recommendados por Marcel Ballot, no Figaro, e Jean Lorrain, por curiosidade. Interessante como um enigma, ás vezes perversa. Não se lhe conhece um amante, mas indicam-se muitos. Não toca piano.

GONÇALO—não tem uma branca, mas no meio da animação, ficticia, vê-se um grande cançaço de viver, como se tivesse experimentado tudo. Procura por toda a parte, como um gourmet, o manjar fino. Epicurista, delicadamente depravado, como um roué da Restauração, ou um elegante do fim da republica romana.

—Ainda bem que veiu!... Preciso do seu bom conselho...

—Como sempre, depois de ter feito alguma tolice?...

—Impertinente!

—É sempre assim. Pede-me o conselho depois de não precisar d'elle! De resto, dá na mesma: ninguem segue conselhos.{24}

—Não. Tenho aqui estes dois albuns. De Paquin... De Redfern... São as ultimas creações. Estou tentada a escolher quasi tudo e a não escolher nenhum... Quer acreditar que tenho dias vazios na minha vida? Dias sem vontade, d'uma grande lassidão, em que nem sequer tenho forças para fingir que sorrío!...

—Ame um pouco...

—É coisa que se encommende? Acordo um dia, com a resolução de amar. É logo. O primeiro que me apparece na Avenida, aquelle que melhor dorme em S. Carlos, o caixeiro que me vende as fitas no Martins! Vê-se bem que nunca amou!

—Não amei! Mas eu não sou, eu amo. É a minha maneira de existir. Um nasce cego; nasci amoroso...

—Calle-se! Diga lá, qual d'estes vestidos prefere?

—Sabe que é muito difficil escolher um vestido pelos desenhos feitos d'après os manequins? O mesmo vestido toma aspectos differentes conforme as pessoas...

—Não faça filosofia. Olhe este de Paquin: ligeiro, todo em rendas, em coisas leves, parece feito com flôres; o Redfern é mais hieratico; mesmo nos vestidos de baile conserva a raideur dos córtes tailleur. São vestidos para a Bouro, que parece ameaçar-nos constantemente com a sua corôa de marqueza. Este?{25}

—Não lhe irá bem, talvez... O talhe da saia engrossa a sua figura, a que não vão bem...

—O senhor treslê... Tudo me vae bem... Deixe lá os figurinos... Não sabe nada de vestidos... É como do coração. Aconselha-me a que ame...

—E dou-lhe um bom conselho. Nem parece que sou seu amigo.

—Trouxe hoje a alma de cinico?

—Era a que tinha mais á mão. Estava ao cimo da gaveta...

—Continuo a dizer: não percebe nada dos negocios do coração...

—Não ha negocios do coração. O coração dá-se...

—Não; troca-se...

—Para quê? Não é preciso, no amor, ser-se correspondido. Basta amar. É possivel que para a felicidade seja necessaria a permuta...

—O amor é o choque...

—Muitas vezes o cheque.

—Que jeu de mots tão velho! É o choque de duas almas. É preciso que girem bem, no encontro. São duas electricidades que se combinam. Conhece a theoria das duas metades da maçã?

—Conheço: é uma figura de rétorica...

—Não é. Andam duas creaturas por esse mundo, ignorando o seu futuro, achando a vida sem rasão, idiota...{26}

—Escolhe uma mentira vital, como diz Ibsen. Conheço-lhe o charabia...

—Deixe-me acabar. Corre mundos, faz tolices, fecha-se dias em casa, até vae ao circo ver as focas... E nada! Um dia, sem saber como nem porquê, uns olhos encontram-se com os seus, numa multidão. Ha a faisca... Pode ser um santo ou um bandido, lindo como o Rubempré, estupido como um tenor, candidato á grilheta ou futil como um janota. Fica-se presa; somos d'elle para toda a vida, ficamos amarradas a elle, como uma sombra... É assim o Amor, é feito de imprevistos... Não tem rasão alguma de ser, mas é.

—Uma coisa fatal? Tem que ser?

—Sim.

—Permite-me que discorde?

—É teimoso.

—Sou. Já viu alguma discussão dar resultado? O amor é sempre creado por nós. Não amamos senão a pessoa que queremos amar. É, como tudo, um acto voluntario. Ha escolha. Vemos uma mulher, vinte, trinta vezes, sem nos fazer impressão alguma. Um dia ella repara em nós. Se é bonita, elegante, calça no Chapelle e veste na Lippman, pelo menos, a nossa vaidade sente-se satisfeita e começamos a descobrir-lhe encantos, a crear alguns, a afeiçoal-a ao nosso geito. Ao conversar com ella, pomos intensão nas frases ôcas que diz, vemos mysterio{27} no seu sorriso... Estamos presos.—Um bello dia, porém, por qualquer motivo, torna-se util acabar com o pesadello da mulher que aparece em toda a parte: sae das brasas do fogão, a que nos aquecemos, da pagina que lemos, do fumo do cigarro, do papel em branco em que vamos escrever ao nosso procurador. Repara-se um pouco nella. Descobre-se o primeiro defeito. Exageramol-o para o grotesco. E da deusa perfeita tambem as flores e fica uma caração que faz rir.

—Uma theoria...

—Não é, creia. Acontece-me isso duas ou tres vezes por anno. Sabe que ando sempre com uma paixoneta... ou mais. Levo oito dias a fazel-as cair do peito.

—E vive feliz?

—Inteiramente feliz. Saber contentar-se não é a suprema sabedoria? Para que se inventou o flirt?

—O flirt? Que horrivel coisa? É a «sombra chineza» do Amor...

—É melhor. É o perfume. Os delicados contentam-se. É preciso comer uma flor? Não, basta respirar-lhe o aroma. Ora essas conversas, meio sentimentaes, a um canto, ditas em voz baixa, sublinhadas pelos olhos que toda a alma illumina, são como o roçar de azas que fossem flores. Ha o ligeiro premir dos dedos, sob os leques, certos tremores de labios, como se os beijos n'elles esvoaçassem, uma concentração{28} de todo o ser, que parece boiar no ether, leve... As phrases não se arrastam, n'um espasmo. Teem palpitações, lançam-se n'uma curva larga, até desapparecer em estrella. Não conhece o flirt. Todo o ser é livre e vae entregar-se, rendido... Cada palavra toma um sentido misterioso... Vou-lhe contar um flirt... Estava na Suissa.

—Internacional?

—Cosmopolita. N'um d'esses cantos, que ultimamente o Cook estraga, na Engadine. Paisagem de gelo, hotel de gente podre...

—De chic?

—De chic. Conheci uma americana, deliciosa como um fructo acre, que vivia fora da coterie swell. O americano vae-se tornando terrivelmente rasta. Trinta annos? Talvez... Mas trinta annos frescos, sem rugas, viuva depois de dois mezes de escasso matrimonio com um formidavel brasseur d'affaires de New-York, cerebro em ebulição permanente que acabou n'uma neurasthenia aguda. Iamos passear sós, pelo gelo. Sentavamo-nos nos pontos de vista que o Bœdeker não indica, paisagens tristes de tanta brancura, sem uma mancha. Fugiamos dos five-ó-clock, das parties bulhentas em complicada companhia. Comecei a amal-a. Tinhamos lido os mesmos livros, sobre elles fallavamos: gostavamos das mesmas musicas, d'esse Schumann cheio de côr, dolente e envenenado;{29} preferiamos aos flamengos gordurosos e aos hespanhoes sombrios, o delicado misterio dos Vinci, a graça fina e brilhante de Raphael.

A fallar de quadros e de romances, as nossas almas tocavam-se, porque um sentido novo brilhava em cada palavra; e parecia que cada frase terminava n'um beijo. Ás vezes, levemente, as nossas mãos tocavam-se. Era rapido e delicioso. D'esse contacto ficava uma lembrança, como d'um perfume. Amor platonico? Não. Um flirt. Sem arroubamentos. Sempre a Alma livre, sempre o beijo a tremer na bocca, sem cair... Uma ou outra vez, comprehende, por esquecimento...

—Comprehendo. Sem malicia...

—Essa mulher tinha realisado todo o meu sonho! De resto acontece-me isto muitas vezes. O sonho varía com as mulheres que nos interessam. Mas essa parecia realisar tudo. No seu corpo ambiguo, de egipcia, parecia conservar-se, como um fructo no gelo, uma adolescencia eterna. As suas mãos finas, pesadas de tantos anneis em que Vever pozera todo o seu genio estranho, floriam gestos d'uma caricia delicada e terna. A sua alma, que parecia ter visto tudo, ainda sentia a vida com frescura. As horas que passei junto d'ella! O perfume, uma mistura sabia d'Houbigants, então dernier bateau, perturbava... Longe d'ella, não pensava n'outra coisa. Recordava-me dos gestos, os pequenos{30} detalhes da toilette e da conversa, um rosar de pelle sob as rendas, uma palavra, um grain de beauté, que tinha na nuca. Sabe como acabou? Ella propoz-me casar. Fechei-me no quarto, horrorisado. Casar, eu? Uma mulher que me julgava capaz d'isso! Era preciso abater esse amor orgulhoso, que crescia no meu peito. Que defeito tinha ella? A principio não vi nenhum... Fui procurando. Tinha, ás vezes, quando fallavamos em francez, erros de grammatica deliciosos. Comecei a achar ridiculo essa ignorancia. D'ahi passou para os vestidos, para o corpo, o peito chato, sem ancas... Tudo caiu. Essa mulher pareceu-me horrorosa... Comecei a troçar d'ella, do seu bas-bleuismo... Por fim ella resolveu partir. Lembro-me perfeitamente. O gerente do hotel levou-lhe um enorme ramo de bluets, os raros amigos tambem lhe levaram flôres. Todo o carro estava cheio de flôres. Sentou-se entre ellas, afagava-as, cortára algumas para cheirar. Chorára. Ainda me deitou um molho, que tinha beijado. O carro partiu, como se fosse um açafate. E a sua face branca era como uma flôr triste... Não tive pena. O amor já caira. A gente ou gosta ou não gosta, conforme quer.—Vamos fazer um flirt para experimentar?{31}

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