Читать книгу Os deputados brasileiros nas Côrtes Geraes de 1821 - Manuel Emílio Gomes de Carvalho - Страница 12
ОглавлениеSUMMARIO:
O conde de Palmella.—Hesitação d'el-rei—O decreto de 18 de fevereiro.—Irritação popular.—A junta consultiva.—26 de fevereiro.—O rei resolve partir.—Protestos do commercio.—Reunião dos eleitores na praça do commercio.—Providencias de Silvestre Pinheiro.—Dissolução violenta da assembléa.—Os poderes da regencia.—Embarque do rei.
Antes de proseguirmos no estudo das sessões das Côrtes, devemos expôr os acontecimentos determinantes do regresso do rei, sem o que não conheceremos a agitação creada nos animos fluminenses com a revolta portuguêsa, agitação que, com desenvolver o sentimento da liberdade e o civismo, deram em resultado a independencia. Quando, aos 12 de outubro, o brigue «Providencia» trouxe ao Rio a noticia da insurreição do Porto, do gabinete 24 de junho de 1817 não havia senão dous ministros, o conde dos Arcos e Thomaz Antonio Villanova de Portugal. O conde de Palmella ainda não viera tomar conta dos negocios extrangeiros e da guerra, retido na Europa por missões diplomaticas e interesses privados. El-rei e o seu conselho não se inquietaram com o grave successo, persuadidos de que o levante morreria com as medidas liberalizadas pela regencia e confirmadas pelo monarcha: a convocação das côrtes antigas e a amnistia dos rebeldes. Em novembro, porém, o panico foi enorme com a communicação de que a revolta, victoriosa em Lisboa a 15 de setembro, se apossára do poder e se estendia por todo o Reino, através de aclamações enthusiasticas. O rei, atordoado e desfeito,[37] quiz ouvir pessoas de todas as classes e de todas as graduações, e pessoas de todas as classes e de todas as graduações acudiram a emittir o seu voto. Uns não vieram senão para dizer que haviam previsto o temeroso acontecimento; muitos lamentavam se não terem tomado determinadas providencias. Dos que encaravam o presente, os alvitres foram em extremo discordantes. Alguns, acaso por caridade, para tranquillizarem o rei pusillanime, ou por ignorancia, affirmavam que não havia materia para inquietação. Em breve os revoltosos se arrastariam aos pés de S. Magestade, invocando a régia misericordia, e caso o não fizessem, ahi estavam para os domar os exercitos da Santa Alliança, os quaes invadiriam Portugal á solicitação d'el-rei. Outros, considerando extincta a monarchia no velho reino, opinavam pelo abandono daquelle miseravel pedaço de terra, e que todos os desvelos da corôa se applicassem ao Brasil, rico e em progresso. Fóra desses pareceres extremos, estavam os moderados, com divergencias menos sensiveis. Quaes aconselhavam a restituição d'el-rei á metropole, a fim de dirigir a revolução e manter os direitos da dynastia; quaes se inclinavam á partida do principe, por convir a presença do soberano no Brasil para sustar qualquer innovação, até á feitura no velho reino da carta constitucional, destinada a todos os Estados da monarchia[38]. No ministerio não havia mais concordancia do que na massa confusa dos conselheiros effectivos e improvisados. Thomaz Antonio, o principal valido e o ministro mais escutado, ponderava que os rebeldes acabariam por verificar que sem o concurso d'el-rei nada fariam. Então, S. M. mostraria o seu paternal coração, interessando-se novamente pelo velho reino, e lhe dictaria leis a seu inteiro aprazimento. O monarcha ou qualquer pessoa de sua familia volveria, nesse caso, certo da tranquillidade; substituiria o governo revolucionario por pessoas de sua confiança, admittindo na nova administração alguns dos insurrectos; dissolveria o congresso constituinte e convocaria as côrtes velhas,—clero, nobreza e povo—meramente consultivas. O que importava era acautelar o Brasil do fogo revolucionario[39]. O conde de Palmella notava judiciosamente, mais tarde, que esse projecto, conveniente outr'ora, já não satisfazia ás aspirações. Esquecia-se tambem o primeiro ministro de indigitar as medidas capazes de resguardar o novo reino do liberalismo, que, sob a fórma de governo representativo, avassallava os povos da Europa e da America. Do conde dos Arcos, que não gozava da confiança do monarcha[40] sabia-se apenas que parecia favoravel ás reivindicações populares, sem se conhecer o seu plano. O conde de Palmella, aguardado com anciedade, afinal chegou aos 23 de dezembro, para reger a secretaria da guerra e dos extrangeiros. Ficou surpreso por não haver ainda o soberano tomado decisão alguma, e opinou que os navios surtos no Rio não levantassem ferro, fosse qual fosse o destino, sem levarem as resoluções reaes, vista a inquietação do Brasil e de Portugal.[41] A expectativa prolongada indefinidamente arriscaria a aggravar a situação na antiga metropole e provocaria a adhesão do novo reino á revolta. Sem perda de tempo, submetteu a el-rei o seu plano. S. Magestade devia mandar o principe real em companhia do conde dos Arcos a Lisboa, a fim de propôr ás Côrtes as bases de uma constituição liberal com duas camaras, e ao mesmo tempo convocar no Rio uma assembléa de procuradores das camaras e villas, para a elaboração da carta constitucional applicavel á antiga colonia[42]. Não se póde prevêr se esse projecto vingaria a termos de assegurar a integridade da monarchia, mas certamente não desabona a intelligencia do seu auctor, reconhecida, aliás, até pelos proprios adversarios. O subtrahir a antiga colonia á sujeição das Côrtes e o enviar D. Pedro a Lisboa, onde crearia um partido assás forte, para fazer medrar o projecto, eram porventura o unico meio de conservar unidos os dous reinos e de tornar proficuo o trabalho das constituintes portuguêsas. A proposta encontrou resistencia, e o fino diplomata para a vencer condescendeu com modificar o plano, na parte concernente ao Brasil, onde o descontentamento do regimen se não manifestára com violencia. Em vez de juntar em côrtes os representantes eleitos das camaras e villas, consentiu na consulta aos brasileiros conspicuos ácerca das necessidades da patria e das providencias convenientes á satisfação d'ellas e advertiu a urgencia de leis que definissem o poder dos governadores.[43] Ao mesmo tempo, inquieto, procurou ordenar as cousas militares. Officiaes despachados para as provincias não seguiam para o seu destino, e outros vinham á Côrte sem licença, todos com razões inconsistentes. Prescreve o pagamento dos soldos em atrazo, e aos que devem partir, além das comedorias de estylo, que se lhes adiante o vencimento de tres mêses[44]. Aos 17 de fevereiro, um navio inglês trouxe a nova temida de haver alcançado victoria na Bahia a revolução de Portugal. Informado do successo pelo embaixador de Inglaterra, Palmella «com dôr no coração e lagrimas de raiva» participa ao soberano o facto. Havia tanto tempo pregava que na conjunctura a inacção era a peior das politicas! Pondera a conveniencia de um conselho immediato dos ministros e de antemão impugna as pretenções de resistencia ao movimento, allegando que o governo não póde contar com o exercito[45]. A defecção da Bahia, com revelar não se illudir o diplomata, quando julgava urgente medidas liberaes para prevenir a annuencia do novo reino á causa de Portugal, augmentou-lhe o prestigio no palacio e amolleceu a opposição que lhe creava Thomaz Antonio «o mais inepto e lisonjeiro dos homens».[46] Antigo magistrado, o longo exercicio da profissão tirára a Thomaz Antonio a resolução, a iniciativa; pouco intelligente e cortesão, não enxergava nas revoluções que encaminhavam os povos europeus para o regimen representativo mais que os excessos, principalmente as violencias contra os soberanos. Não reconhecia que, em consequencia do desenvolvimento da instrucção, a doutrina da origem divina da realeza cedia por toda a parte ao principio de que os reis não passavam de delegados do povo, e deviam-lhe portanto contas dos seus actos. Ao conde dos Arcos repugnava o projecto de Palmella, porque fazia partir o principe herdeiro, com quem pretendia ficar no Brasil para realizar os seus sonhos de gloria. Palmella, o mais atilado e o mais patriota dos ministros n'essa grave conjuncção, aproveitou com vivacidade do seu ascendente inesperado nos conselhos da Corôa, para restaurar na integridade primitiva o seu projecto e reclamar a prompta execução de certas medidas. Urge o embarque de D. Pedro no termo de oito dias e os procuradores eleitos devem reunir-se em Côrtes dentro de seis mezes. Ha todavia outros assumptos que exigem solução prompta. A gestão da fazenda publica, o pagamento á divisão do Rio da Prata, a reorganisação do exercito, a administração da justiça e as attribuições dos capitães-generaes demandam a attenção diligente da corôa. Remata a série de reformas improrogaveis com a suppressão da «fatal alçada de Pernambuco».[47] Referia-se ao tribunal creado para punir os revolucionarios de 1817, tribunal maldito, que envolveu os derradeiros annos de D. João VI no Brasil no rumor lugubre de forcas que se levantam, de grilhões arrastados e de soluços de dôr e de miseria de centenares de victimas. Discutiu-se com calor a proposta. Nada mais duro aos homens que a limitação do seu poder, principalmente aos reis: representantes da Divindade como entrevira o paganismo e affirmavam com segurança os próceres da Egreja como se hão de submetter á vontade dos povos? D. João VI não escapou á regra geral. Custava-lhe em êxtremo prestar contas do producto dos impostos, não distribuir pensões aos amigos, a seu prazer, não ter em suas mãos a liberdade e a propriedade dos subditos, não governar, em summa, a seu inteiro arbitrio. Estava prompto a convocar os delegados das camaras e villas do Brasil para os consultar ácerca das necessidades do paiz e dos meios de as provêr, mas se não resignava a enviar o filho a Portugal para reconhecer a independencia do poder judicial, a liberdade individual, promover a repartição egual dos impostos, declarar a responsabilidade dos ministros e attribuir o poder legislativo cumulativamente á corôa e ás assembléas eleitas pelo povo[48]. O filho iria, é certo, mas simplesmente «para ouvir as representações e queixas dos povos e para estabelecer as reformas, os melhoramentos e as leis que pudessem consolidar a constituição portuguesa»[49]. Não havia mistér de referir com individuação aos fundamentos da carta constitucional propostos pelo ministro dos estrangeiros. Palmella retrucou com vivacidade que, sem a menção d'aquelles pontos substanciaes, se tornava por demais vago o pensamento da Corôa sobre o assumpto para inspirar confiança aos vassallos e por conseguinte, o rei não lograria desarmar a revolução. Na ignorancia do que lhes offerecia o soberano, os subditos prefeririam estar com o governo rebelde de Lisboa, que lhes promettêra uma constituição mais liberal do que a hespanhola. Uma vez que o monarcha não dispunha de forças para reprimir a insurreição, importava pactuar com ella e prestar-lhe o concurso leal de sua experiencia dos negocios publicos. Essa attitude lhe grangearia a confiança da nação e teria a inestimavel vantagem de o forrar á humilhação de receber a carta constitucional que as Côrtes lhe quizessem impôr. A contra-gosto, D. João VI e Thomaz Antonio cederam ás ponderações irrefragaveis do ministro dos estrangeiros[50]. No correr do debate, Thomaz Antonio lembrou a conveniencia de chamar em junta, promptamente, pessoas conspicuas do Rio, e da qual fariam parte os procuradores das camaras e villas, á medida que chegassem, com o fim de se estudarem as reformas accommodadas ao paiz. Adiantava-se d'esse modo, allegava o proponente, o trabalho da assembléa brasileira, porque, quando se reunisse, grande parte de seus membros havendo já accordado sobre as providencias, rapido se tornava o exame de cada uma d'ellas. Conforme Silvestre Pinheiro, envolvia semelhante proposição o intuito diabolico de frustrar o projecto, porquanto a reunião preparatoria não daria fructo ou teria resultado differente do que esperava o ministro dos Estrangeiros; e qualquer das hypotheses enfraqueceria o seu prestigio. Dada a derradeira mão á proposta, o illustre diplomata, conhecedor da aversão do soberano ao regimen constitucional e das complacencias servis de Thomaz Antonio, remette-a ao rei com a seguinte intimativa: «Olhe V. M. que, se publicar só a metade do projecto de lei, nem contentará os portuguêses europeus residentes n'esta côrte (classe muito numerosa e importante) nem a Bahia, nem as outras provincias, que talvez a esta hora já estejam sublevadas». Se o fizer, dispense-o immediatamente do cargo: não quer assistir como seu ministro «á ultima e fatal scena da dissolução da monarchia»[51]. Não eram vãs as suas apprehensões. O temperamento absolutista de D. João VI e a subserviencia do principal favorito mutilaram o plano do diplomata, considerado, pelos cortezãos, agente dos revolucionarios e liberal exaltado[52]. Expurgiram d'elle os artigos substanciaes da futura constituição, os quaes pela precisão davam seriedade ao compromisso e deixavam generalidades demasiado vagas, para merecerem fé. Na parte, porém, relativa ao Brasil, conservaram o projecto tal qual fôra concertado no conselho. É o famoso decreto de 18 de fevereiro, publicado juntamente com a provisão de 23, que nomeava os membros da junta consultiva. Ali annunciava o soberano a partida de D. Pedro para a Europa, a fim de promover as reformas e melhoramentos necessarios á consolidação do pacto social, sem poderes, todavia, para approvar em nome do monarcha a mesma constituição. Ao mesmo passo, convocava em côrtes no Rio os procuradores eleitos pelas camaras das cidades e villas de juizes lettrados, não só do Brasil, mas tambem das Ilhas, para examinarem as disposições constitucionaes applicaveis ao novo reino e aos dominios ultramarinos e propôrem as medidas conducentes á prosperidade da antiga colonia. Palmella pede excusa para não comparecer ao despacho de 24. Soffre horrivelmente e está desnorteado com o truncamento da sua proposição. Tem phrases de singular energia. «Meias medidas revelando impossibilidade de fazer resistencia e repugnancia em fazer concessões constituem a mais infeliz das politicas... Sem lisura a monarchia se não póde salvar...» Acaba solicitando a sua exoneração, que conservará, todavia, secreta, para não suscitar embaraços ao governo e para que se lhe não attribuam desejos de popularidade. Negou-lh'a el-rei, e no dia immediato o illustre conde presidiu em sua casa á primeira e unica sessão da junta consultiva. Os decretos desagradaram a todos. Os portuguêses esbravejavam contra a resolução, que subtrahia o Brasil á constituição da metropole e ás Côrtes Geraes de Lisboa, receiosos do afrouxamento da união. Os officiaes e soldados do Reino mostravam-se particularmente irritados com a partida do principe e não do rei, visto que, emquanto não volvesse o throno á antiga séde da monarchia, lhes falleceria esperança de prompto regresso á patria. Os golpes do amor-proprio são os mais duros de supportar, e o governo teve a desgraça de maltratar rudemente a philaucia dos reinoes com dar preponderancia na composição da junta ao elemento indigena. Até agora excluidos dos conselhos da corôa e da alta administração civil e militar, os brasileiros iam, na verdade, pela primeira vez, ter voz nos destinos da sua terra. Isto, porém, que os satisfaria pouco antes, agora lhes não sorria, em virtude das exigencias crescentes do espirito liberal, desenvolvido com os successos, da mãe-patria e porque attribuiam ao governo o intento de negar ao Brasil vantagens reconhecidas a Portugal. Assim, emquanto neste as côrtes eram legislativas, suppunham que no novo reino a futura assembléa não passaria de corpo consultivo. A effervescencia dos animos attingira o paroxysmo. Nos quarteis a agitação sobresaltava o ministro, e nas ruas arrancavam-se os editaes apenas affixados, quando os não enxovalhavam com immundicies[53]. O dia 25 era domingo, e uma côrte devota devia observar com rigor a prescripção do descanso. Palmella, sem tempo a perder e julgando porventura que essa particularidade quadrava á maravilha com o seu intento de mostrar anciedade pela prompta organização do Brasil, não cedeu ao escrupulo religioso do paço. Realizou-se a sessão em sua casa, na cidade nova, a qual, por ser a caminho da quinta real da Boa-Vista, se cobria agora de casas «não raro de bellas frontarias»[54]. Da assembléa iniciada ás 11 da manhã e concluida ás 6 da tarde, pouco ou nada se sabe, e se não póde deixar de sentir que os coevos não nos tenham revelado os pensamentos dos primeiros brasileiros juntos em côrtes. Silvestre Pinheiro reconhece nos que a compunham, illustração, virtude e patriotismo, mas, com principios tão oppostos que não era licito esperar do conselho resultado proveitoso[55]. Outros contemporaneos não são mais explicitos. O nosso chronista assignala, comtudo, que, depois de muito pelejar, Palmella logrou persuadir a junta da conveniencia da partida do principe e não do monarcha[56]. Assim, num congresso de 20 pessoas, das quaes apenas tres eram portuguêses,[57] houve dezesete brasileiros, dos quaes muitos funccionarios publicos, que não temeram affrontar o desagrado régio e do poderoso Thomaz Antonio, opinando com insistencia pela restituição á Europa do velho soberano, convencidos acaso de que não poderia governar constitucionalmente quem exercêra o despotismo, ou de que não havia meio mais efficaz para encaminhar os negocios no sentido da independencia[58]. Não é temerario suppor que se valeram do ensejo os nossos fortes antepassados para verberar o decreto de 18 de fevereiro referendado aos 22 pelo ministro do reino, o qual sobresaltava a opinião. Faziam parte da reunião o desembargador Luiz José de Carvalho e Mello, o futuro visconde da Cachoeira e um dos auctores da constituição de 1824, o desembargador José Severiano Maciel da Costa, uma das personagens mais conceituadas da epoca pelo saber, criterio e virtudes e que governara com lustre a Guyana conquistada aos francêses e Marianno da Fonseca. Este, o futuro marquês de Maricá, muito palrador e que agora tinha a delicada incumbencia da censura, havia de querer desaggravar-se de um regimen que o retivera no carcere, por occasião da conjuração mineira, mais de dous annos sob o pretexto de que sympathisava com as ideias da revolução francêsa.[59] O liberalismo de Carvalho e Mello e de João Severiano parecia tão adiantado que muitos imputaram a detenção d'elles alguns dias mais tarde ás suas tendencias republicanas[60]. Provavelmente ponderaram os nossos maiores que com recusar o famoso decreto representantes ás villas destituidas de juizes lettrados, deixava á revelia interesses de vasta extensão do Brasil e creava um principio de direito publico, desconhecido dos escriptores. Além de serem todas as terras de Portugal apresentadas no futuro congresso de Lisboa, teria este funcção legislativa, ao passo que as côrtes do novo reino não transporião os limites acanhados de assembléa consultiva. Não se podia aceitar para as duas secções da monarchia sujeitas ás mesmas leis e instituições e ligadas pela identidade de sangue, de lingua, e costume tão flagrante desegualdade, affrontosa ao Brasil. Não era licita a allegação de falta de homens cultos n'esta parte da nação para cohonestar a injustiça. José Bonifacio, paulista, inaugurara a cadeira de mineralogia na universidade de Coimbra, onde leccionavam cursos medicos o fluminense Angelo Ferreira Diniz e o pernambucano José Corrêa Picanço. Na academia Real de Marinha de Lisboa professava com applauso outro fluminense, Francisco Villela Barbosa. Na magistratura emparelhava com os primeiros nas sciencias juridicas o bahiano Vicente Ferreira Cardoso, desembargador da relação do Porto. Não são dos menores ornamentos do alto clero, os brasileiros D. Francisco de Lemos, bispo de Coimbra e egregio reformador da famosa universidade, e D. José de Azeredo Coutinho, inquisidor-mór e ex-bispo d'Elvas. Na imprensa portuguêsa de Londres, Hipolito da Costa, que a iniciou, não vale menos que o europeu José Liberato. Mais de quinze brasileiros figuram com honra entre os socios da Academia Real de Sciencias de Lisboa. Ao lado d'essas figuras eminentes que continuam a servir ao governo na metropole, quantos outros ahi não fizeram senão se instruir e volveram ao Brasil onde dão luzimento á grande familia portuguêsa? Quem nas lettras de um e outro reino occupa mais alto logar que o fluminense Antonio de Moraes e Silva? Se no tocante á alta cultura o Brasil vale Portugal, lhe não é inferior na instrucção primaria, excluida da sua população a gente escrava. O elemento servil que empesta a America não é tão pouco motivo para lhe regatearem o governo representativo, porque um e outro coexistem nos Estados-Unidos. Não ha senão uma razão ponderosa para que se não outorgue aos portuguêses da America assembléa legislativa de que está de posse o velho reino, e é que a solicitam sem violencia. Provavelmente não foi senão a segurança formal de Palmella de fazer a corôa corrigir o decreto no sentido de crear no Brasil o regimen constitucional, que os nossos ascendentes acquiesceram ao parecer do diplomata ácerca da permanencia no Brasil de D. João VI e do consequente regresso á Europa de D. Pedro. Emquanto a junta discutia, os que intentavam aclamar no Rio a adhesão á causa de Portugal, á imitação das provincias septentrionaes, receosos de serem colhidos pela policia, deliberaram precipitar o levante previsto para primeiro março.[61] Reunidos á tarde, como costumavam, na casa do padre advogado Marcellino José Alves Macambôa, e consultados os officiaes presentes, quasi todos de patente inferior, assentaram que no dia seguinte ao tiro da alvorada despedido pelo navio do registro do porto, as tropas, os conspiradores e os seus sequazes se acharião no largo do Rocio para proclamar a solidariedade politica com o Reino. Então um escrupulo levantado não se sabe por quem, deteve esses homens que se aprestavam para a batalha: Se a princêsa cujo parto era imminente, de assustada com o movimento das tropas viesse a soffrer? D. Maria Leopoldina pela graça das maneiras e pela caridade, conquistára o coração do povo, e havia n'esse affecto muita compaixão, porque se affirmava que D. Pedro com os seus desatinos fazia chorar a princêsa, tão loura e tão meiga. Decidiu-se que o padre Góes, um dos presentes, iria pôr o principe sciente das occorrencias. No conceito dos que acreditam na cumplicidade do filho de D. João VI, a visita não passou de ardil para levar ao conhecimento do comparte a nova resolução dos conjurados. De feito se não podia acertar com explicação mais sympathica aos que allegassem mais tarde haver visto o padre Góes a tal hora extraordinaria na quinta da Boa Vista. Sem tempo que perder, os militares dispersaram-se de prompto. Juntamente com a policia guardavam a cidade essa noite praças do batalhão 15. O seu official, ás duas horas da madrugada, percorreu os postos e distribuiu sessenta cartuxos a cada uma d'ellas com ordem de acudirem ao Rocio no caso de conflicto. Por esse tempo a artilheria montada sob o commando do capitão João Carlos Pardal, rodava sinistramente de S. Christovão, onde aquartelava, para o sitio ajustado, na ignorancia absoluta do chefe. O capitão Luiz Antonio do Rego, do brilhante batalhão dos caçadores do Rio, caçadores de terra, como se dizia, estava tão informado do sentir dos seus homens como do proprio commandante, com a differença que os primeiros professavam o liberalismo mais ardente e este era reaccionario ferrenho. Sorrateiramente como ladrão penetra no quartel e de mansinho desperta os soldados um a um e lhes murmura ao ouvido a grave decisão. Foram dos primeiros a apparecer no Rocio. Tão luzido como este e seu rival era o batalhão dos caçadores de Portugal dirigido por Valente, defensor acerrimo do regimen em vigor. Ainda assim Garcez compromettera-se trazer o corpo á revolta. Lograra fazer sair parte dos homens, quando Valente surgiu e intimou aos soldados tornassem á caserna. Garcez de arma em punho obrigou-o ao silencio sob pena de o amordaçar para todo o sempre com uma bala. As praças proseguem na marcha, e Garcez, em acordando do estupôr, correu a annunciar a el-rei o terrivel successo. As tropas brasileiras compareceram todas, sem enthusiasmo apparente, todavia, porque o empenho dos indigenas era deixar ás forças portuguêsas a liquidação do regimen. Com o instincto dos seus interesses que tanto existe nos individuos como nas collectividades, o partido brasileiro reservava a sua iniciativa e o seu supremo esforço para as questões que divisava no horisonte. Não havia outra razão para a sua attitude apagada, pois que o odio do americano ás instituições dominantes era porventura mais energico ainda do que a aversão que lhes votava o reinol, menos exposto ás violencias do recrutamento e e aos caprichos da auctoridade do que os filhos da terra. Ao atilado Silvestre Pinheiro não passou despercebido o plano dos brasileiros[62]. Ou porque não houvesse tempo de ser prevenida ou porque, mais disciplinada, lhe repugnasse a revolta, a marinha não forneceu contingente algum. Pouco antes do tiro da alvorada surgiu de improviso o brigadeiro Carretti, a quem os officiaes offereceram o commando das forças, e as tropas com as quaes se não contavam, começaram a affluir, testemunhando a unidade do pensamento do exercito. Já o povo se ajuntava nas ruas circumjacentes, e ás janellas assomavam vultos despertados com o insolito rumor. Ao alvorecer D. Pedro appareceu a cavallo com um papel na mão, apenas seguido de um creado, e, por entre aclamações delirantes, se dirigiu ao meio da praça, no claro deixado pelos regimentos e artilheria, onde se achavam o brigadeiro Carretti e os conjurados civis. Serenados os vivas a el-rei e á constituição de Portugal, leu então o decreto de 24 de fevereiro, que não se tornára ainda publico e o qual deveria ter sido lavrado depois da carta vehemente de Palmella em que se queixava da mutilação do seu projecto aceito no conselho de ministros. Outorgava ao Brasil a carta constitucional do Reino com as modificações convenientes ás condições particulares da antiga colonia. Macambôa, calmo e respeitoso, pediu licença para uma declaração. O povo e as tropas solicitaram o juramento d'el-rei ao pacto social em elaboração nas côrtes de Lisboa, e na qual collaborarião os deputados brasileiros, sem alteração alguma. Em seguida, não sem audacia, apresentou os nomes das pessoas que deviam succeder aos ministros actuaes e a outros altos funccionarios. O principe, que já estivera no paço, de onde trouxera o novo decreto, ahi volveu novamente para submetter ao pae os votos dos rebeldes. N'este comenos os conspiradores convidaram o senado da camara a se ajuntar na sala do Theatro S. João, mais tarde S. Pedro de Alcantara. De volta ao Rocio, ás sete horas da manhan, D. Pedro communicou que o soberano annuira em todos os pontos aos desejos da multidão, e dictou ao escrivão da camara o auto do occorrido, no qual confirmava em nome do pae, a promessa jurada de dar ao Brasil a constituição, tal qual a fizessem as côrtes da antiga metropole. Com os principes assignaram o instrumento os novos ministros, os vereadores e os funccionarios de vulto. Ás 11 horas appareceu o velho monarcha festejado com phrenesi, e populares em delirio, julgando que bestas não eram dignas de puchar semelhante varão, ajoujaram-se com convicção á lança da traquitana. Do terraço do Theatro o rei sanccionou o juramento prestado pelo filho. As demonstrações de regosijo, manifestadas por alguns dias, tanto nos navios surtos na bahia como na cidade, attingiram proporções de que não houve outro exemplo no Brasil. Melhor que as ruas embandeiradas e cobertas de folhas de mangueira, que os cantos e as bandas de musica nos largos, que os festões de lanternas chinêsas nas sacadas, que os applausos estrondosos com que os espectadores acolhiam as allusões ao novo regimen, enxertadas pelos actores nos dialogos, melhor que tudo isso, testemunha o enthusiasmo do commercio e das classes lettradas, o seguinte facto: uma subscripção corrida no theatro a favor das tropas, alcançou o algarismo phantastico de trinta contos. A certeza de que o socego e a liberdade dos cidadãos não estarião mais na dependencia do arbitrio das auctoridades e de que o fructo do trabalho não soffreria mais ataques provindos de emprestimos forçados e da repartição caprichosa dos impostos, explica cabalmente que jámais se reproduzissem no Rio transportes de enthusiasmo tão vivos nem tão persistentes. A independencia servia aos brasileiros e a abolição aos escravos; a carta, constitucional, porém, aproveitava a todos, porque a propria gente servil se não sonhava com a liberdade, esperava que sob o novo regimen se attenuarião as angustias de sua miserrima condição. Não ha louvores a que não tenham direito os conjurados. Não indicaram nenhum dos consortes para os cargos publicos, nem procuraram desaggravar-se de homens que na policia e no negregado juizo da inconfidencia traziam os moradores mais pacificos expostos a vexames. Designaram pessoas que exerciam, ou haviam exercido com louvor, funcções publicas. Nos officios portuguêses succediam a portuguêses e brasileiros a brasileiros, com que se tornava evidente a harmonia entre os irmãos de áquem e d'além-mar. Entre os nomeados havia personagens que davam realce á familia portuguêsa. José da Silva Lisboa, mais tarde visconde de Cayru, o novo inspector dos estabelecimentos litterarios e presidente da commissão de censura, alliava conhecimentos vastos de uma sciencia nova, a economia politica, á cultura classica, e certamente não exergaria ideias subversivas em todas as reformas apregoadas pelos publicistas. Fôra, aliás, um dos mais ardentes propugnadores da abertura dos postos brasileiros ás nações amigas, quebrando d'esse modo o deprimente monopolio commercial. Occupou a pasta da marinha o vice-almirante Ignacio da Costa Quintella, brilhante homem do mar e fervente amador das boas lettras. Para escrever cousas immortaes bastaria relatar os seus feitos. Acima de todos refulgia o novo ministro da guerra e dos extrangeiros, Silvestre Pinheiro Ferreira, cuja fama transpôs as fronteiras da patria nas asas da philosophia e do Direito Publico. Nunca, talvez, assistiu nos conselhos da corôa em Portugal um espirito no qual confluissem em tão subido grau e com harmonia mais perfeita, a humanidade, a intelligencia, o liberalismo e a instrucção.[63] Com esses varões de longa notoriedade havia outros menos conhecidos mas que não desmentiram o acerto da escolha e ganharam renome nas lutas do imperio[64]. Macambôa procedeu com habilidade e prudencia exigindo para o Brasil em toda a integridade a constituição portuguêsa. Assim sobre-grangêar o apoio das tropas e dos reinoes, tirava ao monarcha e á chusma dos cortesãos, velleidades reaccionarias, a pretexto de conter aquella lei artigos inadaptaveis ao reino americano. Havia, além d'isso, suspeitas ácerca da lealdade da corôa, tanto mais que acquiescêra ao novo regimen coagida pelas tropas, e as côrtes geraes inspiravam confiança immaculada a todos os liberaes. O homem mais influente então, não só no congresso de Lisboa mas em todo Portugal. M. Fernandes Thomaz, por seu espirito democratico, instrucção e honestidade, fazia prever na futura constituição a responsabilidade dos ministros, a repartição egual dos tributos por todas as classes, a publicidade das contas do erario e o maior respeito á liberdade e á propriedade dos cidadãos, todos os artigos, em summa, já inscriptos na lei de Cadix, a qual devia servir, aliás de modelo ao pacto social por vir. O regresso de D. Pedro, resolvido pela provisão de 18 de fevereiro, com os successos de 26, ficava de novo indeciso e constituia questão ardente que dividia os animos. Cumpria no entanto assentar quem iria a Lisboa, se o principe, se o soberano, restaurar a união da monarquia na realidade desfeita desde que a revolução se senhoreara do velho reino e estava em via de o organizar sem dependencia da corôa e do Brasil. O ministro da marinha, o vice-almirante Monteiro Torres, o ministro da fazenda, o conde de Lousan e o vice-almirante Quintella, propugnavam o embarque do soberano com considerações ponderosas. No Brasil o rei não podia sanccionar com brevidade os artigos constitucionaes á medida da sua approvação no congresso. Protrahido, por conseguinte, o periodo revolucionario, não era loucura temer que acabasse por gerar desordens. Accrescia que os promotores da revolta que não comprehendiam a regeneração sem a transferencia da côrte para a antiga séde da monarchia, não se contentarião com a assistencia do herdeiro do throno. Demais, como havia o soberano sujeitar á auctoridade central do Brasil a Bahia, que presta homenagem á assembléa constituinte, sem estar em Lisboa? Os argumentos de Silvestre Pinheiro, partidario da permanencia de D. João VI no reino americano, não valiam menos. Em virtude da indisciplina das auctoridades militares e civis não via senão o soberano que fosse capaz de conter a anarchia imminente no Brasil. Temia uma constituição demasiado democratica e defeituosa por causa da confusão dos poderes da carta constitucional hespanhola, a que se devia cingir o congresso português. Justamente porque estando em Lisboa, devia o rei approval-a immediatamente, optava para que não abandonasse elle a antiga colonia. O tempo necessario á viagem da Europa ao Rio com amortecer as paixões nascidas dos debates publicos, tornaria os espiritos mais dispostos a aceitarem resoluções da Corôa, provavelmente repellidas na hypothese de breve intervallo entre a votação e a assignatura régia. Rendendo-se ao voto da maioria do conselho, D. João VI lançou aos 7 de março a nova do seu retorno á patria e da estada no novo reino como regente do filho mais velho, até a promulgação da lei fundamental. Através do documento se enxergava quanto doía ao infeliz rei separar-se da terra onde vivera mais de trêze annos com saude e tranquillidade, para se installar na patria agitada e de triste memoria. Mais de um d'esses rudes filhos das margens do Douro que labutavam no Rio, não contiveram a commoção perante a confissão do soberano que partindo fazia «um dos mais custosos sacrificios» de que era capaz. Ao mesmo tempo, annunciava a publicação das providencias para a eleição dos deputados do Brasil ás Côrtes Geraes e julgava conveniente a vinda immediata dos nomeados a fim de poderem embarcar com a familia real e a sua comitiva[65]. O clero, o commercio, o funccionalismo e os proprietarios representaram contra a resolução de D. João VI.[66] Das petições conhecemos na integra a que a classe commercial dirigiu ao senado da camara para demover el-rei do seu proposito. Os negociantes, na generalidade portuguêses, importa não esquecer, impugnaram a disposição régia por dous motivos: o dever do soberano de residir no mais importante dos seus estados, e Portugal, que «pouco vale e póde por si» certamente não disputaria o primado ao novo reino. No caso, porém, de não ser possivel fixar-se a côrte n'esta parte do Atlantico, ella devia estancêar alternadamente nas duas secções da monarchia[67]. A esta razão ajuntava-se uma outra que tinha talvez o primeiro logar no animo previdente e perspicaz dos peticionarios: o receio de que a trasladação da realeza para a Europa reconduzisse o Brasil á condição de colonia, vindo a restaurar-se o monopolio mercantil a favor da antiga metropole. Assim antes que na assembléa constituinte se discutissem providencias contra o ultramar americano e soasse a voz de revolta de José Bonifacio, os portuguêses do Rio haviam levantado a questão formidavel da séde da monarchia, a qual tornou uma das divergencias fundamentaes no congresso entre os representantes de um e outro reino, e haviam lançado o germen de desconfiança contra o poder legislativo de Lisboa. D. João VI ouviu com prazer a leitura d'esse memoravel documento, apresentado pelo senado da camara. Se não deferiu ao pedido desistindo do intento, não fixou tão pouco a epoca de sua realização. Bastou esta simples omissão para estimular nos que anhelavam pelo retorno do soberano a suspeita de que se não effectuaria. Constituiam esses o mais vigoroso partido e pertenciam a classes que até agora não haviam imaginado a possibilidade de se unirem. Eram os cortesãos, saudosos dos vastos solares, e que se não habituavam ás descommodidades do Rio e «á falta de gente branca»[68]; eram os soldados arrancados pela violencia do recrutamento ás cidades e campos de Portugal, e que se não resignavam ao exilio; officiaes anciosos mais que nunca do regresso, na esperança de promoções, em consequencias das vagas no exercito do Reino pelo licenciamento de numerosos militares inglêses, em geral de patente elevada, e eram os caixeiros, quasi todos portuguêses, fascinados da liberdade, os quaes com os brasileiros formavam a parte nobre do partido em razão de não attenderem a conveniencias pessoeas. No conceito d'estes nada se podia esperar do filho de D. Maria, que annuira ao regimen constitucional constrangido e vivia entre palacianos a quem nutria largamente na ociosidade. Talvez mais que todos desejava o embarque do monarcha o filho mais velho, o qual para promover os aprestos da esquadra, retardados com o pretexto de falta de dinheiro, recorreu á bolsa farta do visconde de Asseca, o presidente da junta do Commercio[69]. Nos cafés, nas lojas da rua Direita e da rua da Quitanda e nos quarteis commentavam em termos desairosos ao soberano, a sua obstinação em não partir. Embarcaria? O facto de se apparelharem os barcos não significava na realidade que largarião ferro. Podiam ahi apodrecer. Quem assegurava que não metterião n'elles D. Pedro e outras pessoas desagradaveis ao governo? O unico meio de o fazer partir é empurral-o para bordo, porque o homem não anda senão a toque de caixa. A toque de caixa deixou Portugal, a toque de caixa deu a constituição, a toque de caixa tomará o caminho da Europa. A ditos semelhantes, transmittidos ao governo por informantes seguros, succederam avisos de que ia estalar um motim dentro de tres dias, para estimular o desventurado D. João VI a sair barra fóra. A tropa de linha e as milicias, compostas de empregados do commercio, escorvavam as armas e não falavam senão em voltar ao Rocio. Sem poder contar com a policia, suspeita de connivencia com a opposição, o governo estava de antemão condemnado a subscrever ignominiosamente todas as exigencias que approuvesse á tropa formular. Silvestre Pinheiro entendeu que só um acto extremado proveniente do soberano, e assás atrevido para atemorizar os adversarios em tropel no paço e nas casernas, rehabilitaria a autoridade desprestigiada e desopprimiria a cidade do medo de anarchia. O principe real vivia cercado de «má gente»[70], e nem sempre se esquivava á influencia de «homens depravados», os quaes certos do seu apoio commettiam insolencias e aconselhavam sublevações. Para o resguardar do contacto com tal gente, não o bastava reter no palacio, porque ahi iriam procural-o: devia el-rei ordenar-lhe se recolhesse á fortaleza de Santa Cruz. O acto que tomava assim a fórma de prisão, ganhava mais força por testemunhar a resolução do rei de punir os suspeitos de mais alta graduação. D. João VI rejeitou o alvitre, demasiado audaz para a sua natureza timorata. O principe, informado do conselho, detestou desde então o ministro e não lhe chamava senão «Pinheiro Silvestre»[71]. Silvestre Pinheiro foi mais feliz com outro parecer: D. Pedro convocaria a officiaes para lhe expôr os boatos de insubordinação attribuidos ao exercito e exigiria de cada um d'elles o protesto solemne de não agir senão de conformidade com as instrucções emanadas «por via regular da secretaria do Estado». Era fazel-os jurar que não obedecessem ao principe sob qualquer pretexto. D. Pedro desmentiu o rumor, e os outros ministros julgaram risivel a proposição. Como, porém, não tinham outro argumento, e ao principe regular e decentemente não era licito furtar-se á incumbencia, vingou o alvitre, e a opposição adormeceu por algum tempo. O jurar uma carta constitucional por fazer, creava um problema que se antolhava insoluvel: como governar emquanto se não constituisse a nova lei? O rei e os seus ministros sem hesitação entenderam que a machina administrativa continuaria a marchar sob o impulso dos usos e alvarás em vigor. O povo com acerto ponderava que sendo o fundamento do regimen constitucional a sua participação nos negocios publicos, nada mais legitimo que a creação de um conselho sem cujo assentimento não poderia a corôa agir em casos de monta. Urgia, de mais, o estabelecimento da junta para varrer a suspeita de que o juramento da constituição não passara de farça do despotismo para illudir a cidade. Os liberaes representaram ao ministerio n'esse sentido. O governo sem coragem para repellir de frente a proposta, considerada destruidora do principio da auctoridade, differiu o despacho com intuito de frustrar a petição. A este erro grave, a corôa sobrepôs outro que sobresaltou grandemente a população. Nos primeiros dias de março mandou recolher á fortaleza de Santa Cruz, sem o communicar a Silvestre Pinheiro, a cujo cargo estava o forte como ministro da guerra, o visconde de S. Lourenço, Targini, o famoso thesoureiro-mór, o almirante Rodrigo Pinto Guedes e os desembargadores Luiz José de Carvalho e Mello e João Severiano Maciel da Costa. O almirante avisado a tempo logrou fugir. Por muito viva que fosse a alegria do povo com a prisão de Targini execrado por causa dos peculatos que se lhe attribuiam, não attenuou a indignação formidavel provocada pela violencia contra aquelles magistrados merecedores do respeito publico, e cujas opiniões liberaes não eram ignoradas. Do ultimo formava Silvestre Pinheiro o mais subido conceito: alliava á energia grande capacidade e tinha «a mais bem merecida reputação de liberalismo, mas de liberalismo, fundado em principios de moderação e de solida doutrina». Não demonstravam estas arbitrariedades a urgencia de um conselho saído do povo para cohibir os abusos do poder? Não tinham os patriotas razão de crer que a adhesão do rei ao regimen constitucional era mais de apparencia que de substancia? Até hoje se não sabe porque foram presos. Para ficarem ao abrigo dos desacatos da multidão, allegava o rei; argumento improcedente por serem os reclusos, salvo Targini, geralmente bemquisitos. Por causa de suas idéas republicanas, informa Mello Moraes,[72] Silvestre Pinheiro explicava a violencia como manifestação da anarchia governamental. Parece, em verdade, não haver outra causa. Se todos sentiam a liberdade ameaçada com tão flagrante acto de despotismo, mostravam-se por egual inquietos ácerca da situação economica. O desapparecimento do ouro e a insolvencia do banco emissor, do banco do Brasil, em razão de não saldarem os seus compromissos o governo e os fidalgos, depreciando continuamente o papel moeda, reduzia a fortuna particular, affectados particularmente os trabalhadores, porque o salario não augmentava na proporção da alta do ouro. Como se não bastassem esses motivos de descontentamento, a corôa e os seus ministros irritaram a susceptibilidade dos patriotas com desconhecer, acaso mais por ignorancia ou por força de habitos seculares do que por calculo, a solicitude d'elles pela causa publica. Estavam prestes as naus, imminente a partida do monarca e se não conheciam os secretarios de estado de D. Pedro nem, até, as attribuições da regencia. Murmurava-se apenas que estas conferiam ao principe real a autoridade mais ampla. Os partidarios do constitucionalismo bradavam que se infringia o novo regimen, deixando de submetter ao povo as instrucções com as quaes governaria o paiz o preposto d'el-rei, clamor tanto mais justo que o verdor dos annos de D. Pedro e a influencia exercida sobre elle por homens violentos ou de moralidade suspeita, faziam temer praticasse desatinos, se lhe não assistissem ministros experimentados. Cada dia que passava, desenvolvia o sobresalto da cidade. Silvestre Pinheiro julgando legitima a anciedade publica, propôs um alvitre para a dissipar. O ministro do reino convocaria os eleitores das comarcas, os quaes concorriam ao Rio, para a designação dos que deviam nomear os deputados ás côrtes, e lhes apresentaria os nomes dos ministros do principe assim como o regimento com que este administraria o Brasil, regimento que o rei sanccionaria depois de ouvido o parecer do eleitorado[73]. Certamente que algumas dezenas de cidadãos, que não exprimiam nem, até, o sentir da provincia do Rio, não eram o orgão legitimo da vontade nacional, mas significava o facto a disposição do monarcha de seguir, tanto quanto lhe permittia o aperto das circumstancias, o novo regimen. A proposta passou no conselho com a modificação, suggerida pelo ministro do reino, de presidir a assembléa o desembargador ouvidor Joaquim José de Queiroz, e deram-se logo as providencias necessarias ao seu cumprimento immediato e á tranquillidade publica. Antes de tudo urgia conter o exercito. Convocados na sala do Theatro S. João os commandantes e officiaes da 1.ª e 2.ª linha que desassocegavam o governo, o governador das armas, Carlos Frederico Caula, depois de haver em termos breves demonstrado o dever do exercito de se conservar neutro nas lutas politicas, jurou fidelidade á constituição portuguêsa e á familia real e que não seria instrumento de nenhum dos partidos. Um a um os officiaes repetiram o protesto solemne. Ao mesmo tempo publicava-se o edital convidando os eleitores a se reunirem no dia immediato na praça do commercio a fim de apresentarem os seus diplomas e de tratarem de assumptos connexos. Através do vago de um dos fins da convocação, propositalmente feito para não despertar a curiosidade, o povo descobriu o verdadeiro objecto da assembléa: el-rei ia submetter ao eleitorado as instrucções que intentava deixar á regencia e os nomes dos ministros de D. Pedro. Sem embargo de ser sexta-feira da Paixão, observada com gravidade no povo, que n'esse dia trajava de preto, elle esqueceu os deveres religiosos para se occupar inteiramente da politica. A escassez do tempo visto que a reunião se effectuava no dia immediato, determinou actividade febril nos que tomavam a peito os negocios publicos. Construiram-se bancadas, com dinheiro recolhido por subscripção, para o publico na sala da proxima assembléa, adornando-se o local reservado aos eleitores. Publicaram-se memorias que corriam de mão em mão com assentimento da policia. Os typographos renunciaram ao descanço e protestavam não deixar os prelos emquanto houvesse trabalho. O enthusiasmo animava todos na marcha para a liberdade, um dos estadios da qual ia ser transposto, por coincidencia, reputada auspiciosa, no mesmo dia em que se festejava a resurreição de Christo. Os mais exaltados lembravam á surdina que era tambem o anniversario da execução de Tiradentes. Já havia mais de 160 eleitores e continuavam a affluir dos outros recantos remotos da provincia. Eram na maioria lavradores, commerciantes e medicos, que deviam ter as particularidades dos que vivem no campo, onde vêm quasi sempre as mesmas pessoas e estas em pequeno numero; simples e acanhados, reflectidos e de pouco falar. Em desempenho do mandato recebido dos concidadãos, affrontaram as descommodidades de longa jornada, através de caminhos difficeis, e o movimento estonteador da capital. Alguns eram tão carregados de annos que mal podiam andar, outros traziam a saude compromettida. Todos homens dignos e devotados ao bem publico. Diz um contemporaneo que eram «a flôr da provincia». Silvestre Pinheiro reconhece que eram «pessoas das mais capazes que se poderião imaginar». Cedo as archibancadas se encheram de espectadores. Os soldados entravam sem armas e os paisanos depositavam no vestibulo as bengalas. Mal soaram quatro horas, o ouvidor tomou a presidencia e convidou para secretarios o português José Clemente Pereira, um dos promotores da Independencia, e o brasileiro Joaquim Gonçalves Ledo, muito conceituado pela eloquencia incisiva e mais tarde um dos redactores intemeratos do Reverbero. No recinto reservado, dividido das archibancadas por solida balaustrada, estavam a mêsa da presidencia e os eleitores, desageitados nas roupas das ceremonias solemnes, muito amarrotadas por causa da estreiteza das canastrinhas de onde acabavam de emergir. O silencio não podia ser mais profundo quando o presidente começou a lêr o decreto dos poderes da regencia. Finda a leitura, das bancadas pediram a repetição, por haverem escapado muitas phrases. O presidente passou o papel ao coronel José Manoel de Moraes, que de logar elevado e em voz resoante e pausada, satisfez a solicitação. De accordo com a determinação da corôa, o presidente perguntou aos eleitores se tinham alguma observação que fazer a respeito do assumpto. Os chefes de partido, conforme se ajustara préviamente, podiam fallar, e o presidente aguardava, acaso, um discurso, quando, em côro, a maioria proclamou se adoptasse interinamente a constituição hespanhola. Era o voto do partido brasileiro composto dos indigenas e dos portuguêses domiciliados no novo reino. A maior parte d'elles não conheciam a carta constitucional invocada, mas o bom senso indicando que devia garantir a liberdade e a propriedade, á mingua de outra adoptava essa lei para subtrahir os interesses geraes e particulares ao arbitrio de um principe muito joven e accessivel a influencias suspeitas, tanto mais que n'ella, consoante o compromisso tomado pelos revolucionarios da metropole, se deviam inspirar os constituintes para a feitura do pacto social. Os partidarios de D. Pedro e do conde dos Arcos, assás numerosos, aterrados de semelhante resolução, que tolhia os planos de seus chefes, balbuciaram apenas alguns protestos timidos. Os que hostilizavam com egual desabrimento o conde dos Arcos e a acção dos brasileiros nos negocios publicos, defensores do absolutismo e do mais rigoroso regimen colonial para o reino americano, fracos em numero mas fortes pela intensidade da paixão, que constituiam a terceira parcialidade, aventuraram ditos cheios de odio e fel. Nem a estes energumenos nem aos protestos da facção de D. Pedro, a maioria, no prazer da victoria, prestou attenção, e pediu se lavrasse immediatamente o auto do juramento da constituição acclamada. Emquanto se lançava o termo, alguem,—seria Macambôa?—ponderou a utilidade de haver com a regencia, além dos ministros escolhidos pela corôa, um conselho que os eleitores designarião. Era a renovação da idéa contida no requerimento, que o governo recalcitrava em não despachar. O parecer vingou a despeito da impugnação de Duprat, de Lisboa. Este «mancebo ardente e espirituoso», que trazia no cerebro idéas claras e precisas dos ascendentes francêses, declarou com energia que se não devia cuidar de outra cousa que mandar in-continentí uma deputação levar a el-rei o têrmo do juramento. Era a questão primaria e urgente, da qual convinha não divertir os espiritos. O lente de mathematicas Antonio José do Amaral, o padre dr. Francisco Ayres da Gama, o illustrado Antonio Rodrigues Velloso de Oliveira, desembargador do Paço e ex-chanceller do Maranhão, e o desembargador Francisco Lopes de Sousa, que formavam a commissão incumbida de levar a el-rei as resoluções da assembléa, não puderam saír senão tarde. A noite era tenebrosa e chovia. Dirigiram-se a pé ao paço da cidade seguidos da caixeirada que os acclamava. Presentidos, os moradores assomavam ás janellas, illuminadas em festa: os homens saudavam-nos com enthusiasmo e as mulheres atiravam-lhes beijos e flores. Informados pela rainha em pessoa que D. João VI se achava na quinta da Boa Vista, transportam-se para lá em seges. O rei escolheu-os com urbanidade na presença do principe real e dos semanarios. Um dos membros da deputação explicou os votos da assembléa. Adoptada a carta constitucional da Hespanha, ponderou, o principe tinha regras fixas de comportamento e resguardava-se do risco de comprometer a sua popularidade com decisões mal acolhidas do povo. D. João VI pediu tempo para consultar os secretarios d'Estado, reunidos em outra sala. A materia era, todavia, conhecida de todos; emissarios d'el-rei e dos ministros da guerra e do reino, presentes á assembléa já lhes haviam communicado os desejos dos eleitores, e então ficara assentado, sem opposição de D. Pedro, que o monarcha aceitaria, a constituição de Cadix e não daria juizo sobre o conselho antes de conhecer os nomes dos que o deviam compôr. Novamente submettida a questão aos ministros, estes mantiveram o voto anterior. Lavrou-se então o decreto mandando observar «estrícta e litteralmente no reino do Brasil a constituição hespanhola até o momento em que se ache inteira e definitivamente estabelecida a constituição deliberada e decidida pelas côrtes de Lisboa»[74]. Logo que teve noticia da partida da commissão para S. Christovão, D. Pedro, persuadido de que o populacho a acompanharia e receoso de desacatos por parte delle, mandara defender por um batalhão de infanteria e um parque de artilheria a Quinta e destacára outro corpo para o campo de Sant'Anna, passagem forçada para S. Christovão. Ao mesmo tempo o governador das armas por prudencia retinha promptos nos quarteis os batalhões portuguêses. Foram aquellas manobras que determinaram os boatos de movimento de forças contra a praça do commercio? O que é certo é que os eleitores e os assistentes sobresaltados com a ausencia prolongada dos deputados deram credito áquelle rumor e começaram a crear conjecturas assustadoras, que tudo servia para confirmar. Um assignalava que se não descobria na sala um só official da divisão portuguêsa; outro dizia que as patrulhas se multiplicavam em torno do edificio. As explicações sensatas dos mais calmos e a dispersão dos policiaes pelo respectivo commandante, não logravam conter a apprehensão em crescimento a cada minuto de demora da deputação. Soou então um boato infernal: o rei retinha os commissarios e apparelhava-se para embarcar ao romper da alvorada. Houve a maior agitação. Não se podia na verdade, imaginar mais doloroso desengano a esses homens, que ha vinte e quatro horas viviam na espectativa anciosa de uma nova era. Surgiram proposições extremas. Qual julgava conveniente a opposição a todo o transe á partida do rei, qual entendia que para o prender no Rio bastava remover das náus os cofres do Estado e as barras de ouro. Um eleitor da Candelaria propôz uma ordem, estrondosamente acclamada, ás fortalezas para não deixar saír embarcação nacional ou estrangeira, mercante ou de guerra, até que fossem deferidos os votos da assembléa. O empenho de haver uma constituição avassallava todos os espiritos, tal qual nas côrtes geraes da revolução francêsa. A junta eleitoral incumbiu ao tenente general Joaquim Xavier Curado, valente militar brasileiro e cheio de serviços á patria, e ao coronel José Manoel de Moraes de transmittirem a resolução aos fortes, e a despeito da hora avançada da noute se metteram em escaler para a cumprir acompanhados de alguns curiosos. O governador das armas foi tambem constrangido a confirmar aos commandantes das fortalezas a mesma injuncção. Por um d'esses lances dramaticos que o Destino se compraz em crear na vida dos homens, apenas haviam partido os portadores d'essa intimação que chegavam os deputados. A assembléa resfolegou desopprimida e os festejou, feliz de os vêr sãos e livres. Um eleitor, sargento-mór de policia, de voz bem timbrada, leu mais de uma vez o novo decreto. Renasceu a alegria tão ruidosa quanto commovente, soaram vivas; abraçavam-se uns aos outros; muitos choraram e todos á porfia se mostravam reconhecidos ao soberano, a quem se referiam com expressões de ternura filial. Em virtude de haver clareado a assembléa apenas conhecidas as resoluções régias, o presidente propoz se fizesse em outra occasião a escolha do conselho de D. Pedro. Os partidarios, porém, da eleição immediata, tenazes e energicos, não tiveram difficuldade em triumphar da resistencia, que a tal hora da noute podiam oppôr, eleitores, que o cansaço e as commoções combaliam. Não havia n'esse empenho a intenção mais leve de molestar o monarcha, senão de affirmar o direito do povo de interferir nos negocios publicos, pois que os votos recahiram nas pessoas designadas pela corôa para ministros da regencia, com excepção do desembargador Sebastião Luiz Tinoco substituido por Martins Francisco Ribeiro de Andrade. Emquanto taes successos occorriam na praça do commercio, tomavam-se graves alvitres na quinta da Boavista. O descontentamento dos cortezãos e de algumas pessoas da familia real com a outorga da constituição hespanhola se estendera e se transformara na mais vehemente indignação, conhecida a intimação aos fortes. Os ministros a uma voz consideraram o acto prova evidente de insubordinação e concordaram na urgencia de reduzir a assembléa atrevida. Na maneira de executar a ultima determinação é que appareceu a divergencia de Silvestre Pinheiro. O ministro, que sem outro apoio que o talento e a illustração, galgára a culminancia social, guardava a lembrança das angustias que na infancia e adolescencia compartira com o povo. Conhecia quanto soffria dos abusos da auctoridade e quanto fel deixam na alma os desenganos successivos na longa jornada para o reinado da justiça. A explosão do desespero exprimia tantas afflições acumuladas, que merecia mais piedade do que repressão. Aconselhou, todavia, restabelecer a supremacia da auctoridade punindo o descommedimento mas com a benignidade compativel com a exaltação dos animos nas côrtes. Oppunha-se a que as tropas sitiassem a praça do commercio, attenta a impossibilidade de se poder contar com o sangue frio d'ellas e dos officiaes perante as massas populares, os quaes, a seu turno, se irritarião com o desdobramento imprevisto das forças. Demais, não assistia ao governo o direito de cercar individuos reunidos com o consentimento do mesmo governo para se occuparem de negocios publicos. Em virtude da fermentação dos animos previra esses desatinos, e, por isso aconselhara a consulta ao eleitorado em local reservado e sem assistencia do publico. Os que então o combateram intentavam agora conter os excessos resultantes da propria imprevidencia com apparato militar mais apropriado a provocar os brios de uma assembléa do que a acalmar meia duzia de demagogos. A ordem dada ás fortalezas não passava de fraqueza dos eleitores para com alguns violentos, no intuito de evitar propostas mais desvairadas, fraqueza muito commum nas reuniões politicas. Não era outrosim licito castigar a multidão por crimes de alguns. Propunha a concentração dos regimentos nas ru Os que então o combateram intentavam agora conter os excessos resultantes da propria imprevidencia com apparato militar mais apropriado a provocar os brios de uma assembléa do que a acalmar meia duzia de demagogos. A ordem dada ás fortalezas não passava de fraqueza dos eleitores para com alguns violentos, no intuito de evitar propostas mais desvairadas, fraqueza muito commum nas reuniões politicas. Não era outrosim licito castigar a multidão por crimes de alguns. Propunha a concentração dos regimentos nas ruas confluentes á Bolsa, mas á consideravel distancia d'ella, e obrigava-se a fazer despejar o edificio sem perturbação da ordem. Não receava tão pouco escapassem ás auctoridades os demagogos, conhecidos de todos. A eloquencia de Silvestre Pinheiro não dissuadiu os collegas do emprego das armas para dissolver a reunião. Dous eram officiaes e enxergavam na injuncção aos fortes a mais grave das indisciplinas; e o civil, o conde de Lousan, absolutista ferrenho que mais tarde serviu a D. Miguel com dedicação, entendia que o povo não tinha senão obrigações. Correu violento o debate, e não faltaram doestos e ameaças ao mais humano dos ministros. Vencido, Silvestre solicitou a sua exoneração; recusava-se terminantemente a cumprir a deliberação do conselho no sentido de assaltar a Bolsa. Negou-lh'a o rei, e deu-lhe plena liberdade de acção. Silvestre sahiu immediatamente a executar o seu plano. O governador das armas iria á Praça communicar ao presidente a necessidade de encerrar a assembléa, e distribuiria companhias pelas ruas adjacentes para tolherem o transito para a Bolsa e apprehenderem os energumenos notorios, que forçosamente passariam por ellas. O ouvidor, que continuava a presidir o ajuntamento, á intimação do general Caula, pediu apenas meia hora para concluir a nomeação do conselho e assignalou a boa tranquillidade e o bom humor dos eleitores e do publico. N'isto se levantaram boatos de que se congregavam no Rocio differentes batalhões. Duprat em termos patheticos conjurou ao general velasse pela segurança dos cidadãos reunidos com assentimento da corôa. O general prometteu sob palavra de honra que as forças não avançarião e tomou o caminho do Rocio. De feito ahi se ajuntavam a divisão portuguêsa e os batalhões brasileiros sob o commando do general Caretti. O governador das armas, em nome do ministro da guerra, intimou-o a não mover as tropas para a cidade antes que viesse de S. Christovão, onde ia pedir a el-rei esclarecimentos ácerca de tão extranho facto. Silvestre Pinheiro postou-se numa das ruas para sustar a marcha das forças. Não tardou Caula em volver com a nova, annunciada a Silvestre Pinheiro, da desfilada impendente dos regimentos lusitanos contra a Praça de conformidade com as instrucções regias. Ahi acabara-se de proceder á eleição e muitos já se haviam retirado. O secretario arranjava os documentos, quando correu voz, que os soldados avançavam. Todos acudiram á porta, atravancada pelos que, sahidos ha pouco, retrocediam aterrados: approximava-se a artilheria e nas ruas lateraes scintillavam as bayonetas aos primeiros clarões do dia. Uma companhia de caçadores postando-se defronte da entrada principal descarregou no interior do edificio cincoenta tiros sem aviso prévio. Os assaltados fecharam as portas. Uns atiraram-se ao mar e outros esconderam-se. O desembargador J. da Cruz Ferreira salvou-se a nado e o lente de mathematicas, o sabio Antonio José do Amaral, achou abrigo numa sumaca. Arrombadas as portas, a soldadesca perseguiu os desventurados como se fossem lobos, diria o conde dos Arcos. Houve tres mortes, entre as quaes a de um eleitor a quem os annos tolhiam os passos. Muitos foram gravemente feridos; José Clemente Pereira recebeu uma profunda cutilada na coxa. Macamboa, o padre advogado, a quem tanto deve portuguêsa e os batalhões brasileiros sob o commando do general Caretti. O governador das armas, em nome do ministro da guerra, intimou-o a não mover as tropas para a cidade antes que viesse de S. Christovão, onde ia pedir a el-rei esclarecimentos ácerca de tão extranho facto. Silvestre Pinheiro postou-se numa das ruas para sustar a marcha das forças. Não tardou Caula em volver com a nova, annunciada a Silvestre Pinheiro, da desfilada impendente dos regimentos lusitanos contra a Praça de conformidade com as instrucções regias. Ahi acabara-se de proceder á eleição e muitos já se haviam retirado. O secretario arranjava os documentos, quando correu voz, que os soldados avançavam. Todos acudiram á porta, atravancada pelos que, sahidos ha pouco, retrocediam aterrados: approximava-se a artilheria e nas ruas lateraes scintillavam as bayonetas aos primeiros clarões do dia. Uma companhia de caçadores postando-se defronte da entrada principal descarregou no interior do edificio cincoenta tiros sem aviso prévio. Os assaltados fecharam as portas. Uns atiraram-se ao mar e outros esconderam-se. O desembargador J. da Cruz Ferreira salvou-se a nado e o lente de mathematicas, o sabio Antonio José do Amaral, achou abrigo numa sumaca. Arrombadas as portas, a soldadesca perseguiu os desventurados como se fossem lobos, diria o conde dos Arcos. Houve tres mortes, entre as quaes a de um eleitor a quem os annos tolhiam os passos. Muitos foram gravemente feridos; José Clemente Pereira recebeu uma profunda cutilada na coxa. Macamboa, o padre advogado, a quem tanto deve a liberdade, e o brilhante Duprat, recolhidos ao carcere, foram tratados com desapiedade. O conde dos Arcos julgava conveniente enforcal-os «para exemplo». Voltemos á quinta da Boa Vista. Partido Silvestre Pinheiro, a colera dos cortezãos explodiu com violencia. Valiam-se da intimação ás fortalezas para capitular de anarchico o eleitorado e constranger o monarcha a dispersar á bala a reunião, punir os mais exaltados, não receber a deputação dos eleitores que lhe devia submetter os nomes dos membros do conselho e, até, revogar a outorga da constituição hespanhola. D. João VI cedeu abjectamente em todos os pontos. Ordenado ataque á Bolsa, decretou que resolvêra negar ao Brasil a carta constitucional de Cadix por lhe ter sido sollicitada «por homens mal intencionados e que queriam a anarchia».[75] O fundamento da nova deliberação não resiste á analyse. Além dos eleitores, sobre os quaes demos o juizo dos coevos, constituiam o comicio negociantes, medicos, advogados, officiaes e empregados do commercio, a quem não aproveitava a desordem. A gentalha ficara excluida da Praça, que não era logar publico. Os que apresentaram ao soberano as decisões da assembléa, não mereciam tão pouco a imputação de demolidores da sociedade. Eram varões de notoria respeitabilidade e dous delles exerciam a magistratura. A verdade é que preoccupadas exclusivamente com os seus interesses e animadas com a fidelidade do exercito, as facções não hesitaram em induzir o rei a faltar ignominiosamente ao compromisso solemne tomado com o seu ministro da guerra e com o eleitorado. Talvez não caiba ao monarcha a responsabilidade das violencias das armas portuguêsas, mas se lhe não pode tirar a auctoria da annullação do decreto que punha em vigor provisoriamente a constituição hespanhola, annullação praticada certamente sem energica suggestão alheia, porquanto se ajustava á maravilha com o seu odio ao regimen representativo. Silvestre Pinheiro assignala que na manhã de 22 achara o rei abatido. A bondade de D. João VI não ultrapassava a affabilidade no trato e a compaixão por infortunios de certos validos. Não era sanguinario mas lhe faltava absolutamente a preoccupação de justiça para com os vassallos, e a caridade publica interessava-lhe muito menos que a milicia e as artes. Nas demasias dos soldados contra a Bolsa não foi a sua humanidade que se affligiu senão a sua dignidade, mortificado com a revelação de haver no paço outra vontade que a sua. A commoção na cidade foi das mais intensas. Os commerciantes desertaram para todo o sempre o edificio manchado de sangue, e o denominaram, num cartaz affixado sobre a porta: «Açougue de Bragança«[8] Por _Antigo_ entendem os Artistas as mais bellas esculpturas, que nos restão dos antigos Gregos, e Romanos; taes como a Venus de Medicis, o Apollo, o Laoconte, o Gladiador, etc.[76]. Não perdoaram á corôa o ataque imprevisto contra homens inermes e congregados por convite do ministro. Se os descommedimentos da assembléa auctorizavam a intervenção da justiça, esta não devia começar por aggressão tão cruenta quanto covarde. Á administração mais inepta não era difficil apurar as responsabilidades de uma assembléa, quando se conhecia quem a presidira e quem ahi provocara desconcertos. O rei, que se sentia dominado pela vontade mais energica do filho e por conseguinte despojado da soberania, providenciou então ácerca do seu embarque com diligencia singular em natureza tão apathica. Aos 22 lançou a provisão que nomeava D. Pedro regente com as attribuições mais largas. Na realidade só lhe era vedado fazer-se representar no estrangeiro, prover os bispados e concluir tratados de paz definitivos; fóra disso, exercia todos os actos de soberano, e as limitações impostas a alguns exprimiam preito mais apparente que real ao monarcha. Assim cabia-lhe escolher os funccionarios e estes entrarião immediatamente no exercicio dos cargos; mas os diplomas seriam submettidos á assignatura do rei. Os poderes da regencia vigorarião até á promulgação da carta constitucional em preparo nas côrtes. Assistirião a D. Pedro o conde dos Arcos na pasta dos negocios interiores e exteriores, e o conde de Lousan na da fazenda; o marechal Carlos Frederico Caula na repartição da guerra, e Manoel Antonio Farinha na secretaria da marinha. No dia 24, ao cahir da noute, D. João VI esgueirou-se para bordo no silencio tragico da cidade[77].