Читать книгу Pelo mundo fóra - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 10
II
ОглавлениеO comboio levava-me, rapido, ferozmente rapido. Levava-me para longe do meu ninho, dos meus filhos, de tudo que me faz a vida consolada e boa, de tudo que me dá força para o trabalho, para a lucta, de tudo que enche de bençãos a minha existencia laboriosa e triste...
Á paizagem arida, pedregosa, da Extremadura hespanhola succedia um scenario mais animado, mais caracteristico. Aldêas que desde os tempos hispano-arabes se conservam na mesma immobilidade barbara, sinos altos de egrejas gothicas, perfis apenas entrevistos de velhos conventos, ninhos de cegonhas nas arvores que pareciam correr commigo, sombrias manchas de arvoredo que o vento torcia em attitudes de desesperada supplica...
A grandeza alpestre dos Pyrenéos e a França, a França emfim!... Oh! que jubilo estranho e mysterioso se mesclou então com a saudade que me ia alanceando e cortando as raizes da alma!
A França! Como eu tinha levado annos a amar e a sonhar esse paiz entre todos aureolado aos meus olhos da luz que vem de cima!
Outras que para lá partem levam projectos de requintada elegancia para pôr em pratica. Irão ao Redfern, o alfaiate afamado da rua Rivoli, que veste tão primorosamente as francezas de alto cothurno; irão ao Worth, popularisado pelos romances modernos; á Laferrière, que veste as actrizes de mais fama; ao Felix, que principescas encommendas acabam de singularisar; comprarão na Virot o ultimo modelo de chapéo; receberão chez Lenthéric des conseils de beauté, que elle dá carissimos, pela hora da morte, segundo a expressiva phrase portugueza, e que de resto tão pouco aproveitam a quem os recebe; interrogarão anciosas a elegancia avulsa da parisiense que passa, pedindo-lhe o segredo, que só ella tem, de andar por sobre o solo molhado ou enlameado, sem macular de leve a fimbria, gentilmente arregaçada, do seu simples, gracioso e bem posto vestido escuro, que se amolda sobre um espartilho de mestra, com a nobreza com que sobre o corpo de uma estatueta de Tanagra se amolda a roupagem de linhas magistraes que o envolve sem encobril-o; o segredo de collocar sobre a sua fina cabeça pequenina, lindamente penteada, ou antes, lindamente despenteada, um minusculo chapéo, similhante a uma borboleta ou a uma flôr, que o vento parece querer levar, e que não leva nunca...
O Paris que as attrahe é o Paris da moda, da elegancia, do chic, do concours hippique, da avenue des Acacias, do vernissage e dos pequenos theatros gaiatos. O Paris que as attrahe é o dos figurinos, das lojas de modas, dos ourives da rua de la Paix, dos frequentadores do boulevard des Italiens e da Madeleine.
O Paris que, na velocidade vertiginosa, quasi tragica do expresso, surgia ante meus olhos, era um Paris phantastico, unreal, feito, construido, cimentado com o genio dos seus grandes artistas, dos seus grandes poetas, dos seus historiadores, dos seus moralistas, dos seus sabios, dos seus criticos, dos seus dramaturgos, dos seus romancistas geniaes!
A França, a que minha alma aspirava, como aspira ás paizagens desoladas da Palestina a alma dos grandes ascetas do christianismo, como aspiram á mystica e penetrante atmosphera de Bayreuth os fanaticos da religião wagneriana, era a França que desde Jean Goujon até Rodin, e desde o Poussin até Puvis de Chavannes, e desde Froissart até Michelet, e desde Mme. Laffayette até Georges Sand, e desde Balzac até Zola, e desde Pascal até Renan—um, o catholico que se inclina sobre o abysmo da duvida, outro, o sceptico que tem a uncção evangelista de um santo... e desde Montaigne até Anatole France, e desde Racine até Bourget... os finos psychologos do eterno feminino—e desde Ronsard até Victor Hugo, e desde Marot até Verlaine, e desde a grande renascença do seculo XVI até ao magnifico movimento do romantismo, têem enchido o mundo da arte, e da poesia, e da realidade, e da ficção, de obras primas sem conta e sem medida!...
De pequena tinham-me ensinado essa lingua tão clara, que milhares de artistas forjaram, bateram, cinzelaram, incrustaram de pedrarias coruscantes, esmaltaram de riquissimas côres, metal precioso feito de todos os metaes, e que tem qualidades de flexibilidade, de elegancia, de sonoridade, de harmonia, de colorido, e de pujança absolutamente incomparaveis e inimitaveis... De pequena tinham-me mettido nas mãos as obras primas dos seus genios mais brilhantes, e eu sentia-me no intimo da minha alma mais franceza ás vezes do que propriamente peninsular.
Ah! mas que melancholico foi o despertar do meu ambicioso, do meu doido sonho!...
Atravessei, com uma rapidez que me deixou confusa e palpitante, o Paris da minha evocação de vidente; estavam mortos os amigos que me tinham alimentado com a medula do seu cerebro, ou com o leite da sua poesia, e, vivos que fossem, alli perto d'elles, na atmosphera em que elles tinham respirado, nas ruas em que elles tinham morado, no scenario que elles enchiam do seu nome é que eu, pela primeira vez, ia sentil-os longe, muito longe de mim, na incommensuravel distancia moral, que a proximidade physica revelava de repente ao meu chimerico espirito de sonhadora!
Senti então o que nunca julguei que sentiria n'esse paiz que eu reputava positivamente a patria do meu espirito! Senti uma nostalgia tão violenta, tão dolorosa, que pensei morrer d'ella! Uma especie de desaggregação intellectual, que deve ter nome na pathologia do cerebro, mas que eu não sei scientificamente classificar—o que de resto não admira nada!
Esqueci-me do que aprendera, fiquei-me em uma especie de assombro mudo, em que a saudade de Portugal punha uma nota alanceadora, torturante.
O que os livros me tinham revelado foi como que varrido da minha memoria; os sonhos que eu tinha edificado sobre a minha vinda a Paris, desmoronaram-se em uma especie de estranho cataclysmo, e percorri a linda capital da Europa civilisada, não como uma pessoa que de antemão, e por muito os ter visto descriptos, conhecesse os seus encantos, as suas bellezas soberanas, os filtros subtis que do seu pavé de bois se exhalam de envolta com o cheiro penetrante da terra sempre humida e sempre regada, a festa perenne das suas ruas e avenidas onde a miseria não vem pôr a sua mancha livida, onde perpassa uma multidão sempre garrida e sempre feliz, a perfeição nos seus theatros, a perversa poesia das suas canções fim de seculo, a tenra verdura das suas arvores, tão bem cuidadas que parece que de manhã cedo as lava todos os dias, a esponja e sabonete, um exercito de invisiveis jardineiros, a lindeza da sua luz que á tarde se faz de um cinzento roseo como o das paizagens de Corot, tão inexprimivelmente bellas... mas como um ser inteiramente novo às impressões da vida extra-civilisada e que d'ella recebesse uma especie de choque estupidificante!
Através de tudo, o que eu sentia vivo, absorvente como um cauchemar, era a saudade do meu paiz, da minha Lisboa das sete collinas, construida em amphitheatro, sobre o Tejo amplo e azul, da bonhomia d'este nosso viver um pouco provinciano, pacato apesar do ridiculo de parodia involuntaria que ás vezes o desfigura e o desnacionalisa, da familiaridade com que todos nos conhecemos, nos amamos através do debique permanente, em que andamos uns a respeito dos outros, da tranquillidade um tanto adormecida do nosso espirito, do amor da casa que distingue todo o bom lisboeta, da ausencia de ambição que, exceptuando as alturas procellosas da politica, imprime o seu cunho esterilisador, mas calmante, em todas as nossas almas serenas...
A lingua então, a musica da lingua patria, fazia-me uma falta dolorosa. Tinha sêde de ouvir falar portuguez!
E preferia aos divertimentos que a engenhosa amabilidade do meu querido hospedeiro me proporcionava, e ás excursões artisticas em que elle era um cicerone incomparavel, instruidissimo, raffiné, cheio de idéas originaes e suggestivas, as tranquillas e doces noites passadas em Neuilly, na luz discreta da lampada Carcel, que um quebra-luz côr de rosa fazia mais acariciadora e mais suave, e onde a familia adoravelmente intelligente, e inolvidavel para mim, de um escriptor portuguez, que é um artista da mais pura raça intellectual e da mais ampla envergadura de engenho, me fazia uma especie de pequenina patria. Alli a conversa tinha o tom preguiçoso da nossa conversa, os gostos combinavam-se com os meus gostos, os nossos geitos especiaes de portuguezas manifestavam-se a cada instante, e o que a graça feminil de umas combinada com o genio nervoso e original de outros podiam dar de delicioso ao meu espirito, harmonisavam-se para me fazer esquecer a patria, os filhos, os outros amigos ausentes!
Nem sabem—n'esse ideal cantinho do mundo onde vivem, um pouco alheados da civilisação babylonica que os aperta, os cinge e os invade ás vezes—elle, o artista laborioso e apaixonado mettido no seu trabalho austero e impeccavel, como um monge na sua cella estreita, ellas, as duas encantadoras irmãs, envoltas na grinalda viva de lindissimas flôres humanas, que são para uma tudo, e quasi tudo para o coração instinctivamente maternal da outra,—nem sabem o bem que me fizeram n'uma d'estas crises absurdas que só os nervosos conhecem e das quaes o mundo estupidamente ri!
Foi ahi sobretudo que eu, curada d'aquella violenta nostalgia que ameaçava inutilisar inteiramente o resultado moral da minha viagem, reaprendi a gosar Paris, não já o meu Paris ideal, especie de babylonia construida em nuvens, mas o Paris verdadeiro, o Paris real, tal como elle lentamente me foi sendo revelado pelo intelligente cicerone que eu tive a fortuna de ter no meu divagar de touriste.