Читать книгу Pelo mundo fóra - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 12
IV
ОглавлениеMas quem nos diz a nós que a Venus de Milo, objecto de uma ardente e justa admiração entre os modernos, não fosse no fim de contas uma estatua vulgar no seu tempo?
Os grandes esculptores gregos, aquelles cuja chronologia e cuja historia chegaram até nós, descobertas pela paciente erudição, em alguns fragmentos de Plinio, de Pausanias, de Cicero, de Quintiliano, não faziam as suas obras mais preciosas senão em ouro, em prata, em marfim, em materias firmes bem mais raras que o paros e o pentelico, de que hoje se guardam nos museus os torsos mutilados, os fragmentos soltos, as reconstituidas estatuas.
Ao pé do que se sumiu d'essa sublime estatuaria grega, flôr suprema d'aquella civilisação de athletas, de gymnastas, de oradores e de heróes, quantas attitudes para a «esculptura»! O que resta vale bem pouco, e representa apenas como documento de uma éra extincta.
Mas pelo que resta, nós sabemos que o corpo bello, viril, robusto e são, movendo-se livremente sob a claridade azul de um céo sem manchas, era o ideal artistico d'esse povo que, mais feliz que nenhum outro, traduziu integro e immaculado o seu sonho da vida, e—para quem é a vida, mais que um sonho?—na religião, na arte, na poesia, nas paginas luminosas de Homero, Eschylo e Platão, na fórma sublime da sua Acropole, ante a qual Renan soltou aquelle melancolico e sublime grito de amor, nas frisas e estatuas dos seus templos, nas ceremonias divinas e inspirativas do seu culto, que ora são castas como a longa procissão das Panatheneas, ora são soberbas de força e de pujança animal como as dansas e os jogos de ephebos nús...
A Grecia amou a sobriedade, a correcção, a graça e a força.
E depois de percorrer um periodo longo e o progressivo da iniciação, chegou ao ponto de combinar e fundir os extremos mais oppostos n'aquella completa harmonia, que só uma vez se realisou na terra e que não torna mais!
Que importa, porém, que não torne?
Bastou que apparecesse uma vez, que brilhasse sobre nós, astro longinquo e puro hoje apagado e de que ainda vêmos o reflexo calmo, para que o mundo ficasse eternamente ungido d'aquella graça mysteriosa, d'aquelle divino atticismo que em alguns raros eleitos resplandece e de que todos temos o presentimento, a sêde, ou a avidez!
Por isso Renan, a alma mais accessivel á influencia do bello de que talvez possa ufanar-se o nosso tempo, dizia no alto da Acropole estas palavras que traduzem um sentir universal que até alli não achára expressão condigna:
—«Ó Natureza impeccavel! Oh! simples e verdadeira Belleza! Deusa cujo culto significa sabedoria e razão! oh! tu cujo templo é uma lição eterna de sinceridade e consciencia! chego bem tarde aos umbraes dos teus mysterios; venho ao teu altar cheio de remorsos! Para te encontrar, que infinito esforço eu fiz!
«A iniciação que, n'um sorriso, davas ao atheniense na primeira infancia, só á força de reflexões e de esforços eu pôde conquistal-a!
«Tu só és moça! tu só és pura! tu só és sã! tu só és invencivel!»
Um outro critico profundo, que estudou a Grecia com o amor com que se estuda a civilisação-mãe, de que todas mais ou menos dependeram depois, diz que no caracter nacional d'essa raça se discriminam claramente os tres traços fundamentaes que constituem a intelligencia de um artista.
Estes tres traços são a delicadeza da percepção, a necessidade absoluta da clareza e o amor e culto da vida presente.
O primeiro d'esses traços permittiu-lhes perceber as relações secretas das cousas, deu-lhes o sentimento fino e raro das nuances, e a suprema aptidão para construirem conjunctos de fórmas, de seres e de côres, combinações de circumstancias e de elementos tão bem ligados entre si e por tão estreita identidade de relações, que a sua creação de arte foi tão viva que excedeu no mundo imaginario a harmonia preestabelecida no mundo real e verdadeiro.
Ao segundo deveram o sentimento da proporção que possuiram como nenhum outro povo, o odio ao vago e ao abstracto, o desdem pelo monstruoso e pelo enorme,—que é a marca distinctiva do Oriente, do qual elles só aproveitaram o bom,—o gosto dos contornos firmes e precisos. O amor e o culto da vida presente bem o revelaram na sua religião sem mysterio e sem au delá, na sua paixão pela belleza plastica, na sua sêde de serenidade e de alegria, no seu antagonismo ingenito com a doença, com as miserias physicas ou moraes, no seu encantamento absoluto, e que é para nós immoral mas que para elles o não era, deante do corpo nú, representação suprema da força, da graça, da saude e da belleza...
Uma raça tão maravilhosamente dotada, idealista e positiva a um tempo, tinha por força de traduzir-se no esplendor das artes plasticas.
O espectaculo permanente dos bellos corpos nús, ou envoltos lassamente na elegante e longa tunica que na altura do joelho se duplica e cahe sobre os pés em pregas esculpturaes de inimitavel graça, a contemplação habitual d'essa raça que se distingue pela nobreza simples das attitudes, pela perfeição athletica da fórma, pela serenidade do aspecto que as nossas mesquinhas ambições ou o nosso devastador pensamento não tinham convulsionado,—tudo devia naturalmente produzir, pelo pendor imitativo que caracterisa o espirito do homem, a maravilhosa floração de artistas sublimes que ao principio tentaram e depois conseguiram libertar a noção do bello da estreita prisão que o cingia e apertava, fixar no marmore, no ouro, no marfim e no bronze a soberba visão da força militante ou graça ingenua e pura!
Como é interessante seguir a evolução da arte grega desde o ponto em que ella parece ainda pedir á inspiração hieratica do Egypto o molde incorrecto que a liga e mumifica, até a hora em que Praxiteles arranca do marmore a sua Venus de Gnido, de que a Anthologia canta assim a voluptuosa formosura:
«Cythera trazida pelas ondas foi a Gnido admirar a propria imagem, e após longa contemplação falou d'est'arte: Onde é que Praxiteles me viu sem véos?... Não, Praxiteles não ousou violar-te com olhar sacrilego. O que elle fez foi representar-te com o cinzel qual te havia sonhado!»
Ao principio, a architectura e a estatuaria, estreitamente unidas, pareciam identificadas e inseparaveis; mas quando a estatuaria se emancipou, não foram sómente as frisas e os baixos relevos dos templos, as colossaes effigies da «cella» interior, que captivaram e deslumbraram o olhar do povo grego, foram as soberbas figuras erguidas ao ar livre, a Athenêa colossal de Phidias, a Sosandra de Kalamis, as mulheres de Carya, a Artémis divina em volta de cuja estatua as virgens da Lacedemonia vêm tecer annualmente as suas dansas rituaes!
Desappareceu o ingenuo symbolismo primitivo, que representava cada divindade com os attributos do seu poder, ou com os accessorios significativos das transformações naturaes de que ellas todas eram a concreta imagem; agora o que se revela ao fanatismo de belleza que palpita na alma grega, são divinos corpos de mulheres em toda a magnifica pujança da sua belleza creadora, em toda a graça adoravel da sua feminina poesia.