Читать книгу Pelo mundo fóra - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 11
III
ОглавлениеFolheio ao acaso as notas escriptas a correr, na rapidez da minha viagem, e transcrevo-as para aqui, na sua sinceridade frisante.
É, de resto, o unico merito que hoje podem ter as notas de viagem, o temperamento pessoal do artista que viu, através das impressões que a sua visão lhe deu. Mais nada. Tudo está dito, e não ha quem acorde uma emoção nova, na alma do leitor blasé pelo conhecimento da obra dos grandes artistas que viajaram. O proprio Bourget, que é um mestre, cujo unico defeito é ter vindo um pouco tarde, depois de muitos outros, está reduzido a chamar Sensações de Italia ao seu livro encantador de viagem na terra classica da Arte. As sensações que a Italia lhe deu a elle, eis unicamente o que o delicado escriptor se atreve a contar, certo de que toda a essencia de poesia que d'esse maravilhoso e fecundo solo se pode extrahir, outros a extrahiram antes d'elle por lá ter passado.
A minha unica desculpa vem a ser esta: costumada a contar n'este mesmo logar as impressões colhidas na leitura dos livros, porque me não atreverei a completar, a ampliar, a desenvolver essas impressões livrescas com outras colhidas em diversos ramos de arte; mais directas, mais reaes?...
—Acabo de sahir do Louvre, onde fui visitar as galerias da esculptura e principalmente essa sala entre todas privilegiada e bemdita, onde a Venus victoriosa, a Venus de Milo, esplende na sua sagrada formosura.
Chamava-me de longe, como um sortilegio poderoso exercido pelo Bello, essa figura que eu tinha mil vezes visto em reproducções, em estampas, em photographias, que me tinham dito ser a suprema divinisação do corpo feminino, e que eu ia pela primeira vez contemplar na sua genuina pureza marmorea.
A minha impressão, comquanto profunda, tem o seu quê de incerto e duvidoso. Porque? Será porque a Venus não realisou o sonho que eu fizera da perfeição ideal dos seus contornos e das suas linhas? Não. Ella é realmente a belleza augusta, sobrehumana, ideal, como a proclamam unanimes os que a tem visto e julgado.
Mas é que eu não tenho em mim enraizado como uma religião da infancia, fazendo corpo com as minhas crenças, idéas e sentimentos, esse culto da belleza physica que foi a feição primacial da civilisação dos gregos.
Para mim um corpo divino é uma expressão litteraria, não é um dogma de esthetica instinctiva.
Por isso, através da bella estatua procuro adivinhar, nas suas linhas mais geraes, a extincta civilisação que ella representa, de que ella é como que o remate e a flôr!
Como Taine diz tão bem, «todas as grandes cousas um pouco remotas correspondem a sentimentos que já não temos.»
Precisamos de os reconstruir pela reflexão; e como ainda os menos profundamente instruidos têem uma educação cosmopolita e multipla, em que umas poucas de concepções de arte se ajustam e sobrepõem, como nós temos, adquirida laboriosamente, ou bebida no ar que respiramos e nas rapidas leituras que fazemos, uma noção, profunda ou elementar, de cada uma das civilisações que antecederam a nossa, acabamos depois de algum tempo de meditação por comprehender, com o espirito, não com a alma, o sentimento que inspirou a obra de arte que estamos contemplando um pouco inintelligentemente.
O snobismo artistico consiste em fingir que se entende tudo á primeira vista, mesmo as cousas mais avêssas ao nosso temperamento individual ou nacional. Evitar esse snobismo a todo o custo, deve ser o decidido empenho de qualquer espirito honesto e sincero.
A Venus é, mesmo para o simples profano, uma esplendida revelação de arte? É, de certo.
Não póde um corpo feminino ondular em linhas mais puras, não póde a branca flôr do marmore palpitar com mais intensa vida.
Pela graça magestosa da sua mutilada attitude (que fazia ella quando tinha os seus divinos braços, perguntam debalde os criticos especiaes da arte grega!), pela serenidade ineffavel da sua posição, pela harmonia absoluta das suas linhas esculpturaes, pelo rythmo inspirador do seu corpo marmoreo,—a Venus de Milo, brotada do cinzel de desconhecido artista, na hora mais feliz da arte da Grecia, logo depois de Phidias lhe haver imprimido o sello supremo de sua grandeza, antes do escopro de Praxiteles a haver impregnado de uma languida graça voluptuosa, de um sensualismo requintado e enervante, que decahe mais tarde na imitação anti-esthetica da Natureza, nos realismos da polychromia, na extincção final do gosto e do puro ideal artistico: a Venus de Milo merece ser considerada, como diz Paulo de Saint Victor, aquella Eterna Belleza que Platão adorava, a Venus victrix cujo nome Cesar dava por senha aos seus soldados na vespera de Pharsalia, e em todo o caso a mais bella interpretação, que os modernos possuem d'esse feminino eterno que a Grecia tanto amou, que no mundo historico ella foi a primeira a amar, e cujo culto poetico e sensual traduziu nos seus mythos divinos, nos seus ritos magnificos, na sua arte incomparavel...
Comtudo, nós sómente possuimos truncados restos, fragmentos secundarios da esculptura grega e não somos capazes, senão por dilettantismo e por curiosidade intellectual, de comprehender bem o culto apaixonado que ao corpo humano foi consagrado pela Grecia.
É necessario avistar ao menos de longe essa raça simples, viril, intelligente e bella, que foi de todas as raças a unica que poz a sua concepção da felicidade humana em perfeito accordo com a sua concepção das leis do Universo, que á realisação positiva de todos os seus instinctos chamou Virtude, e á encarnação de todos os impulsos naturalistas deu o nome de deuses; que tendeu ao aperfeiçoamento, e ao desenvolvimento pleno da natureza humana na sua constituição politica, no seu organismo social, nos seus costumes, na sua arte, na sua religião; que fez deuses á similhança dos homens para os poder amar, e que, chegada ao ponto culminante da sua perfeição artistica, esculpiu homens á similhança de deuses para lhes render culto...
Que nos importa hoje, a não ser como exercicio d'arte, a belleza ideal de um corpo de homem ou de um corpo de mulher?
Para nós a belleza tem outras regras bem mais complicadas, bem mais subtis, e tão difficil nos é conceber um corpo sem defeito, movendo-se na plena graça e na plena liberdade da sua harmonia muscular, como seria á Grecia conceber o nosso moderno ideal do bello, todo em expressão, com a alma atormentada e complexa que se revela principalmente através do gesto, através do olhar, através da physionomia ardente e devastada...
Para a Grecia, porém, habituada a realisar a perfeição, não sómente no marmore, que isso veiu mais tarde como complemento e como resultado, senão na propria carne humana, e que seguia todos os processos pelos quaes uma raça de homens se desenvolve, se robustece, se apura, se requinta, até poder attingir a belleza suprema: que empregava não só a eliminação systematica de todos os productos defeituosos, não só o cruzamento forçado dos fortes e das bellas, mas tambem os exercicios permanentes da força, e da graça robusta e livre, nos jogos do gymnasio, na orchestrica, nas dansas guerreiras ou sacerdotaes, na educação, emfim, do corpo levada ás mais minuciosas praticas que podem depurar-lhe as formas e desenvolver-lhe as latentes energias—para a Grecia a belleza physica é mais que uma virtude, é uma condição absoluta da vida nacional.
Sem belleza, isto é, sem harmonia, não ha força; sem força como é que a pequena Grecia venceria a poderosa Persia? Como é que ella chegaria a ser o nucleo de extraordinaria civilisação, de que ainda hoje, apesar de trinta seculos de mutilações continuas, a nossa alma se alimenta, nutre e revigora?