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Adalberto estava bem longe.

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Na aldeia tudo é um acontecimento, até a gallinha que canta como o gallo, e que logo é condemnada á morte porque isso se toma por agouro. Póde imaginar-se o effeito, que produziu em Valneige o desapparecimento do pequeno Adalberto.

Não se fallava d'outra coisa e não tinham fim as conjecturas, nas quaes havia uma parte maravilhosa, devida á credulidade e superstição d'aquella boa gente. Um dia veio uma mulher ter com Rosinha e disse-lhe: «Ouça, senhora Rosinha, olhe que o seu pequeno não está perdido.»{44}

A estas palavras, a velha criada levantou os oculos até ao meio da testa, o que para ella era uma maneira de vêr melhor. Se lhe tivessem dado o conselho de os fechar n'uma gaveta não teria querido. Havia quinze annos, pelo menos, que usava oculos, e punha-os no nariz logo de manhã. Pelo dia adiante, servia-se d'elles para ir ao jardim, para subir e descer a escada; mas quando se tratava de dar attenção, de distinguir as côres ou as physionomias, bem depressa os oculos subiam para o meio da testa. A pobre mulher queria-lhes tanto como aos seus proprios olhos.

A Tia Godinette puxou uma cadeira porque o discurso promettia durar.

—Pois é verdade, senhora Rosinha, vou dizer-lhe uma coisa, que ainda não disse a ninguem.

Todos os discursos de Godinette, que fallava muito vagarosamente, começavam do mesmo modo, e sabia-se até que ponto se podia contar com a sua discrição. Quando a boa da mulher não dizia os seus negocios a toda a gente, era porque estava só.

—Ouça, senhora Rosinha, aqui tem o que me succedeu, a mim que lhe estou fallando. Sonhei a noite passada... Primeiro devo dizer-lhe que me doíam as pernas, mas doíam-me como nunca. Olhe, era exactamente nas barrigas das pernas, como uns canitos que me mordessem. Eu dava voltas na cama, como um{45}

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{47} frito na frigideira, e esfregava, esfregava... é necessario sempre esfregar quando doem as pernas; ás vezes é o sangue que pára. Diga-me uma coisa, senhora Rosinha, o que faz quando lhe doem as pernas?


O seu pequeno não está perdido. (pag. 43.)

—Ora essa! esfrego. Mas vamos, vamos á historia.

—Eil-a; emquanto eu estava ás voltas na cama, disse commigo: que horas serão? Deve ser tarde, com certeza. Estou convencida que é mais de meia noite; não sabia as horas, eu, e quem não sabe, a senhora Rosinha ha de ter ouvido dizer, é como quem não vê. N'isto ouço dar horas na freguezia. Ponho-me a contar pelos dedos, uma duas, tres, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez...

—Onze, doze, accrescentou precipitadamente Rosinha que estava sobre espinhos.

—Justamente, dez, onze, doze. Olhem como adivinhou! É fina como um coral.

—Vamos lá, dizia que o nosso pequeno...

—Espere, senhora Rosinha, isto não vai a matar.

—É que assim temos para peras.

—Então, quando eu vi que era meia noite, disse commigo: ora esta! julguei que era mais tarde. A noite foi feita para dormir, toca a dormir. Tanto peior para as minhas pernas! Custou-me a pegar outra vez no somno; muito me custou! Abria os olhos, fechava-os, tornava{48} a abril-os, tossia, assoava-me, cuspia, esfregava-me, era um nunca acabar!

—E depois!

—Acabei por adormecer, e sonhei que passeava n'um lindo jardim, onde havia um grande tanque, mas grande, grande, como não é possivel, como ás vezes a gente sonha; a tia Rosinha sabe.

—Sim, sim, e depois tia Godinette?

—Depois? era comprido o tal tanque, mas comprido como d'aqui á cruz da estrada. Que digo eu?... Como d'aqui ao... ao...

—Ao fim do mundo. Ande lá tia Godinette.

—Justamente! sempre tem idéas! Vi então do outro lado do tanque uma raposa. É verdade, uma raposa e ao mesmo tempo o seu menino, que tinha á cabeça um cesto, vossemecê bem sabe, d'estes cestos em que se põe...

—Sim, sim, estou a vêl-o.

—Está mesmo a vêl-o, não é assim? Mette-se nos taes cestos, mette-se...

—Mette-se tudo o que se quer.

—Tem vossemecê rasão. Com effeito, sendo um cesto, mette-se-lhe o que se quer. De mais no fim de contas, isto não faz nada para a minha historia.

—N'esse caso saltemos isso, quer?

—Depois, elle vê a raposa, tem medo, deixa cahir o cesto, e prega comsigo no tanque de cabeça para baixo.{49}

—Coitado do pequeno!

—Qual pequeno? Foi o cesto.

—Ah! bom! mas vossemecê dizia de cabeça para baixo.

—Era a brincar. Eis que a raposa vem ter commigo com uma pata no ar. Pobre animal! Foi talvez ferida por algum caçador... ah! a proposito de caçador, vossemecê sabe?

—O que?

—Dizem que ha dois caçadores, que vinham no outro dia pelo matto e encontraram um cão vadio, que mordeu os cães que os acompanharam.

—Pobres animaes!

—Que está a dizer senhora Rosinha? Dos homens é que eu fallo.

—Ah! então pobres homens!

—Mas tambem mordeu os cães.

—Pois sim, pobres homens e pobres cães. E o pequeno?

—Espere ahi. Viu-se então na escuridão uma grande bola amarella como uma pequena lua, que corria o mais que podia no céo; chamam-lhe um metaloro... um metoro... não sei bem o nome, mas isso nada faz ao caso.

—Felizmente; mas o que tem a bola com o nosso pequeno?

—O que tem? Está bem claro. Uma bola amarella que corre no céo, não é qualquer coisa. E depois, ouça mais esta, ainda não acabei: como elle andava para traz, a raposa...{50}

—O que! ainda a raposa! Tornamos outra vez ao sonho?

—Mas com certeza; a raposa é brincadeira.

—E o cão damnado?

—Esse é sério.

—Ah! peior é essa.

—Então a raposa...

—Olhe, faça-me o favor de deixar a raposa aonde está; fallemos antes do nosso pequeno loirinho. Diga-me o que sabe d'elle.

—D'elle? Ora essa! não sei nada d'elle. Que quer vossemecê que eu saiba d'elle? Não o perderam na Allemanha?! Mas é o mesmo; podem dizer que está longe; quando se vêem signaes no céo, pode-se estar certo que o pequeno não está perdido.

Estava-se n'este ponto de tão insipida conversa, quando o senhor de Valneige passou, sempre pensativo e inquieto; reparou no ar azafamado da tia Godinette, e a fiel Rosinha, notando a sua preoccupação, julgou dever repetir-lhe as palavras da boa mulher, saltando a parte da insomnia, do relogio, das pernas e da raposa. O amo respondeu com tristeza que não havia, infelizmente, relação alguma entre este meteoro e a pobre criança; que o facto de que se tratava nada tinha de prodigioso, sendo devido a um phenomeno atmospherico muito conhecido, e sobre o qual eram desarrazoadas as suas superstições. Godinette um pouco despeitada, mas nem por sombras{51} convencida, fez a sua mesura e foi contar a outros o seu sonho e a sua bola amarella.

Quanto á boa Rosinha, vendo terminada a conversa, desceu tranquillamente os seus queridos oculos sobre o nariz e continuou a fazer meia.{52}

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