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Adalberto tinha um grande defeito.

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Adalberto era um bom rapazinho, d'olhos vivos, sorriso fino, corpinho bem feito, delgado como uma gazella, habil, agil e capaz de todas as galanterias. Era dotado d'uma physionomia feliz, quer dizer, tinha, quando não era mau, aquella expressão de frescura e de amabilidade, que previne os estranhos a favor d'uma criança.

Todos eram bons com elle, todos tinham empenho em lhe dar gosto, e comtudo, quando se conhecia bem, via-se que tinha um grande defeito, um muito grande defeito... Era desobediente!{14}

Em vez de se lembrar que todas as pessoas que o rodeavam sabiam mais do que elle, tomava ares de sabichão, e suppunha que podia sem inconveniente fazer isto ou aquillo, tendo-lhe sido prohibido. Enganava-se com certeza, porque, mesmo quando não resulte nenhum prejuiso apparente, o mal da desobediencia é real, e vale a pena evital-o por causa dos grandes desgostos a que ordinariamente dá logar.

Já se viu um rapazinho que foge das vistas de seus paes? que vae justamente para onde não deve ir? que mexe n'uma e n'outra coisa, unicamente porque lh'o prohibiram? que só parece divertir-se bem nas horas destinadas para o trabalho? Se alguem viu um rapazinho, que se pareça com este retrato, pode dizer:—Era assim Adalberto.—Pobre Adalberto! Eu vou contar as suas terriveis aventuras; terriveis, sim, porque os cabellos se me põem em pé, quando penso nos perigos, que esta criança correu por se ter habituado a desobedecer.


Havia um gymnasio. (Pag. 14)

E comtudo, dirão, havia muitos divertimentos em Valneige? Sim, havia muitos, sem se alcançarem pela desobediencia. Podia-se correr de roda das casas, das alamedas adjacentes e no pequeno bosque. Quando as crianças se mettiam nisso andavam bem uma legua. Havia um gymnasio, onde o corpo se exercitava a ser agil e desembaraçado; subiam{15}

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{17} á escada de corda, balouçavam-se, divertiam-se; emfim Adalberto tinha um gosto particular por este genero de entretenimento.

Mas, sobretudo, aquando se lhes juntavam os seus amiguinhos, era então que os pequenos se divertiam. Todos nós conhecemos estes divertimentos: põem-se em commum o bom humor, as invenções, as espertezas; faz-se d'isto um grande lote, e cada um participa d'elle sem prejudicar ninguem. Chega-se por este meio a novos resultados.

Em Valneige gostavam d'estas reuniões de crianças, e, como a visinhança o permittia, viam-se chegar na quinta feira de tarde tres ou quatro diabretes, que só queriam divertir-se. Davam-se então mil saltos, fazia-se um barulho de ensurdecer, e toda a especie de coisas muito innocentes, mas muito aborrecidas para o publico. Á quinta feira Rosinha tinha saudades da sua terra, da sua aldeia e até do seu berço, porque passava os seus ultimos annos a lamentar a desgraça de se ter dedicado com todas as véras da sua alma a estes travessos pequenos, dizia ella, que a faziam enraivecer, e que ella não deixaria por um imperio. Rosinha experimentava, como muitas vezes nos succede, duas sensações oppostas; por um lado a necessidade de se dedicar; por outro, a de lamentar, desde pela manhã até á noite, a sua dedicação. Quando qualquer d'aquelles queridos pequenos tinha algum desgosto, se{18} cahia, por exemplo, e esfollava o nariz, a velha chorava e curava-o o melhor que sabia, mas depois, zangava-se com aquelle mesmo nariz por se ter feito mal, porque era fazer-lhe tambem mal a ella.

«Ai! repetia ella muitas vezes, que desgraça ter eu conhecido estas crianças! Que precisão tinha eu quando morreu meu amo de ficar com o filho, para me fazer de fel e vinagre? Podia bem, com o que tinha, ir socegadamente para a minha terra, ter a minha pequena casa, o meu jardimsinho, as minhas gallinhas, o meu gato e as minhas commodidades. E em vez d'isto fico aqui! Mas para que? pergunto eu. Ah! é de mais; já é tempo de descançar; tenho parentes que me querem; a minha resolução está tomada, já o disse ao senhor, e, logo que a neve se derreta, metto-me na diligencia e vou-me embora.»

Isto dizia ella no inverno, mas quando a neve se derretia, se algum dos pequenos lhe perguntava: Então, Rosinha, quando parte? Respondia segundo as circumstancias: «Ora! o que quer? Frederico tem muitas dôres de dentes! é preciso que eu lhe ponha todas as noites no ouvido algodão com oleo de amendoas dôces. Pobre-pequeno!... ou:—Socegue, que me não faria rogar para me ir embora, se os dois mais velhos estivessem n'um collegio; mas emquanto estiverem em casa... ou:—Ah! logo que eu veja que{19} a menina Camilla anda bem direita, farei a minha trouxa; mas tenho tanto medo que fique defeituosa... ou então:—Assim que este marotinho d'Adalberto deixar de ser desobediente, vou-me embora; mas d'aqui até lá, preciso tomar conta d'elle como se fosse leite ao lume.»

Respondia assim a pobre velha, e a neve derretia-se, as arvores rebentavam, as folhas amarelleciam, cahiam, e Rosinha ficava, presa pelo laço mais forte que ha no mundo: uma antiga e verdadeira affeição.

Na quinta feira, isto succedia cincoenta e duas vezes por anno, Rosinha julgava mesmo que já não gostava de Valneige, nada, nada. Porque? Porque as horas não eram destinadas como de costume, e estava convencionado brincar-se desde o meio dia até ao jantar. Ora as brincadeiras são uma excellente occasião para se rasgar as calças e tudo mais, para se quebrar todas as coisas, até a cabeça.

Eis a razão porque a boa mulher passava toda a quarta feira a dizer:

«Que pena que ámanhã seja quinta feira!»

Nós, que não andamos atraz das crianças, podemos achar que taes brincadeiras são muito divertidas. A senhora de Valneige punha á disposição de todos raquetas, volantes, peões, ballões, pellas, arcos, e não sei que mais ainda!

Começava-se ao meio dia este alegre regabofe,{20} e a boa mãe apparecia de vez em quando como um poder protector, que faz todo o bem possivel e evita todo o mal, e dizia com a sua voz grave e meiga:

«Vamos, divirtam-se, façam, o que quizerem, só lhes peço uma coisa, obedeçam, meus queridos filhos.»

«Não tenha receio, querida mamã, dizia rindo o bom Eugenio, de cara esperta, faces rosadas, sorriso franco; veja, nós divertimo-nos tanto que nem tempo temos para desobedecer.»

Dito isto Eugenio tomava o freio nos dentes, se fazia de cavallo, ou dava estalos com o chicote, se fazia de cocheiro.

Apenas sua mãe tinha tempo de lhe deitar um olhar de confiança e já elle estava longe. Quanto a Frederico, a seriedade, que lhe era natural, mesmo quando brincava, socegava a senhora de Valneige. Mas havia um sujeitinho, loirinho e muito galante que nunca respondia á doce admoestação de sua mãe; chamava-se Adalberto, está entendido, e tinha por alcunha o desobediente. Quando uma palavra atacava o seu defeito capital, tomava um ar distrahido, tratava de apanhar uma mosca, arranjava as coisas de modo que ouvisse o menos possivel o que se dizia, e, comtudo, percebia-o muito bem.

«Obedecei, meus filhos.» Isto queria dizer; Não vão brincar para ao pé da agua, sobretudo{21} não mexam no bote. Não quero que vão á estrebaria sem serem acompanhados por Felippe, nem que passem por detraz dos cavallos, que podem atirar algum coice; que nenhum se lembre de querer montar a cavallo, a não ser que Filippe tenha tempo e condescendencia para se prestar a essa brincadeira. Não se debrucem do poço, nem saiam fóra da grade que separa o pateo da estrada, não corram para longe durante o passeio, nem se aproximem muito do moinho de vento, etc.

Adalberto sabia de cór estas prohibições e muitas outras. Quando ouvia sua mãe resumir tudo n'estas simples palavras: «Obedecei, meus filhos», quizera tapar os ouvidos com medo de perceber mais uma vez tudo o que se não devia fazer, pois era justamente do que elle tinha vontade, e veremos bem depressa o que em consequencia d'isso lhe aconteceu.{22}

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