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Adalberto havia desobedecido

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Quaesquer que sejam os encantos da vida quotidiana, dá sempre gosto quebrar a monotonia mesmo nos nossos prazeres. É facil imaginar os transportes de alegria, que houve na familia, quando o senhor de Valneige declarou um bello dia, ao almoço, que ia pôr em pratica um lindo projecto, formado havia muito tempo, e tão depressa aceito como combatido e adiado.

Esse plano reunia todas as condições para agradar, não só por ser encantador, mas porque era esperado com anciedade; havia um anno que os pequenos perguntavam uns aos outros{23} em voz alta ou em segredo: quando será a grande viagem, quando veremos Paris, Strasbourgo, Vienna, Praga? lagos, montanhas?... Bastava esta idéa para fazer dar um pulo na cadeira, mesmo quando se estava acabando uma pagina de escripta, o que dava em resultado um grande borrão.

Estava, finalmente, decidido; ia-se partir para a Allemanha; ia-se viajar com socego, sem fadiga, sem outro fim mais de que a instrucção sem livros e o divertimento. É verdade que a senhora de Valneige, que desejava particularmente esta viagem, tinha uma outra razão que não dizia; dava-lhe cuidado a saude de seu marido, e os medicos julgavam que o melhor remedio seria a mudança d'ar e da maneira de viver; esperavam combater assim uma especie de melancolia nervosa, de que soffria o senhor de Valneige, e que de tempos a tempos era acompanhada de crescimentos.

Sua extremosa esposa disfarçava, cuidadosamente, para não aggravar o mal, todas as suas inquietações. Quanto ás crianças, como seu pae não estava de cama e se vestia como toda a gente, achavam-no optimamente.

Quando se soube da decisão deram-se palmas ás palavras do querido pae, e quando elle disse:

Partimos d'aqui a oito dias; saltaram-lhe ao pescoço...

Oito dias depois estava a caminho toda a{24} familia; o fiel Gervasio, criado de confiança, acompanhava os viajantes e todos estavam contentissimos, excepto a velha Rosinha que tinha chorado boas lagrimas vendo partir os seus queridos filhos, como ella lhes chamava. Em os não vendo, julgava-os perdidos... pobre velha! se ella podesse adevinhar... mas não, não digamos nada.

Demoraram-se dez dias em Paris. As crianças admiraram sobretudo os passeios. A differença das idades e de instrucção fazia-se sentir na diversidade das apreciações. Por exemplo, em frente do palacio das Tulherias, Adalberto quasi que não olhava para o monumento historico, mas não se cansava de vêr os peixinhos encarnados que nadavam nos tanques, e os magestosos cysnes, cuja raça viu passar tantos acontecimentos, sem que por isso saiba a historia de França. Surprehendeu-o tambem muito o comprimento dos Campos Elysios, a multidão, as carruagens; mas o que sobretudo o impressionava, e d'uma maneira desagradavel, era a ordem, que lhe tinham dado, de não passear sem ir pela mão d'alguem. Isto pareceu-lhe insupportavel, e fez desmerecer consideravelmente, na sua opinião, os esplendores da capital. Pois elle tão independente em Valneige não teria vindo a Paris senão para ser tratado como uma pequenita? Que vergonha! um homem! Coitado! pobre pequeno! Se elle podesse imaginar... mas não, ainda não é tempo.{25}

Depois de ter visto em Paris o que mais podia agradar ás crianças, o senhor de Valneige tomou o caminho de ferro de Leste, e, parando sempre nas principaes estações, chegaram a Strasbourgo, onde admiraram a cathedral, esse grandioso monumento que attesta o desenvolvimento successivo da architectura gothica, desde a sua origem derivada dos cimbres até ao acabado que se nota na nave principal.

O grande relogio astronomico, cujas horas são marcadas por figuras, que apparecem e desapparecem; espantou e maravilhou os nossos viajantes muito mais do que o cruzeiro e a fachada. Quanto ao pequeno Adalberto, a despeito dos famosos architectos, e até de Vauban e da sua cidadella em pentagono, só viu em Strasbourgo uma unica coisa, o gallo que canta sobre a torrinha lateral, no momento em que o maravilhoso relogio dá meiodia e em que todos os apostolos apparecem juntos. Um gallo fingido e que canta como se fosse verdadeiro! é incrivel!

O pequeno ficou pois espantado, não propriamente de Strasbourgo, mas do gallo que para elle era tudo em Strasbourgo. Comtudo, esta bonita e magestosa cidade tinha tambem um grande inconveniente... era preciso andar pela mão!

Partiu-se para Vienna, parou-se pelo caminho, como se tinha feito de Paris a Strasbourgo. O senhor de Valneige tendo resolvido demorar-se{26} pelo menos oito dias na capital da Austria, houve tempo de vêr muitas coisas e de passear com vagar na grande alameda do Prater e n'outras mais. As crianças não se cansavam de admirar o que se chama o Prater selvagem, parte do qual é uma antiga floresta, onde pastam veados e cabritos montezes. Estes, lindos animaes, juntando as vantagens da vida domestica aos encantos da liberdade, ouvem, todas as noites o som da buzina, e dirigem-se para junto da casa de campo, onde os espera uma distribuição de ração.

Eugenio e Frederico achavam isto uma bella idéa, e tinham razão.

O chefe da familia levou seus filhos ao arsenal e fel-os visitar as differentes officinas, onde se fabricam armas. Passaram alli tres horas e decidiram depois seguir para S. Cyro.

A senhora de Valneige tendo mostrado desejo de conhecer os arredores de Vienna, seguindo em caminho de ferro a margem direita do Danubio, todo o rancho se pôz a caminho. Viu-se primeiro Schonbrunn, castello imperial, acabado no tempo de Maria Theresa. N'este castello nota-se o quarto onde Napoleão assignou o tratado de Schonbrunn em 1809, e onde vinte e tres annos depois, pela instabilidade das coisas humanas, morreu seu filho o duque de Reichstadt. Adalberto, pela sua pouca idade, reparou menos n'este contraste historico do que nas trinta e duas estatuas de marmore, que ornam{27} a linda fonte, que dá o nome ao castello, e sobretudo no leão e nos outros animaes que se vêem nas jaulas.

Visitaram tambem o castello de Luxembourgo. De todas as recordações austriacas, as que mais prenderam a attenção de Adalberto, foram as velhas carpas doiradas, que viu no lago, quando voltaram do castello para a estação do caminho de ferro; deu-lhes pão, que ellas se dignaram aceitar, como tinham feito os peixinhos encarnados das Tulherias. Vê-se que Adalberto era bem recebido não só em França mas na Austria.

Passaram-se rapidamente estes oito dias e os viajantes emcaminharam-se para Praga, parando sempre nas grandes estações. Adalberto deixou Vienna sem saudade; achava que havia na capital da Austria uma coisa muito aborrecida, um verdadeiro e muito grande inconveniente—era preciso andar pela mão. Não se pode fazer idéa do espirito de independencia d'este sujeitinho. Obedecer era para elle um supplicio. Pobre, pobre Adalberto!

Estavam todos muito contentes por entrar na Bohemia. Este nome, dizia Camilla, tinha seu que de extraordinario, de interessante e mesmo um pouco de assustador; parecia-lhe que n'este paiz só devia haver gente, que lêsse a sina e deitasse as cartas.

O senhor de Valneige, que não perdia occasião de instruir seus filhos, contou-lhes em{28} poucas palavras a historia d'aquelle terreno elevado, que está como fechado por uma cinta de montanhas e cortado pelas ramificações das mesmas montanhas.

Ensinou-lhes a não confundir os Ciganos com os Bohemios. Estes são os habitantes do paiz, que vivem como todos nós; os Ciganos, aos quaes tambem algumas vezes se chama Bohemios, formam um povo á parte, que conserva os traços caracteristicos de uma nação errante, que no seculo quinze se espalhou pela Europa, e principalmente na Hungria, na Italia, em França, e em Hespanha. Ha d'estas tribus nomadas em todas as nações; o nome muda, mas os costumes não. Em França chamam-lhes Bohemios; em Hespanha Gitanos; em Italia Zingari; em Inglaterra Gypsies; em Portugal Ciganos.

Este povo offerece um espectaculo muito singular no nosso velho mundo: desprezado, perseguido durante trezentos annos, e, apezar d'isso, sempre de pé, sempre errante, roubando por onde passa e lendo o futuro. Percebe-se que justamente pelos seus exquisitos costumes casem entre si, e assim se prepetua esta raça independente, temida não sem razão, e vivendo no meio do povo sem nunca se misturar com elle, a não ser para lhe recitar as suas loucuras e embustes, divertil-o um momento e tirar d'elle o pouco de que precisa para prover as suas mui limitadas necessidades. Comtudo, em certos paizes, os Ciganos não são errantes; os{29} de Hespanha, os Gitanos, habitam em Cordova e Sevilha bairros separados; mas fallam em toda a parte a mesma lingua; esta lingua é doce e harmoniosa, e deriva do slavo.

É notavel o profundo respeito que estes homens independentes teem ao seu proprio chefe. A sua teima, a sua obstinação cede ante a authoridade d'aquelle que os governa, e é preciso convir que, ao menos n'isto, são melhores do que nós.

Julga-se que a sua origem remonta aos antigos Persas, que vieram estabelecer-se no Egypto, quando Cambyses, o indigno filho de Cyrus, se apoderou d'aquelle lindo paiz; sabe-se que o conseguio servindo-se de cães e gatos, que pôz na frente do seu exercito, e sobre os quaes os Egypcios não ousaram lançar frechas, porque, a seus olhos, estes animaes eram sagrados. É a favor d'essa opinião, sobre a origem d'este povo, a physionomia bella e expressiva da maior parte dos Ciganos, que faz lembrar o typo persa. Certos cantos antigos, que se teem conservado n'esta raça, fazem tambem suppôr, que o Egypto os viu antigamente; entre outros uma especie de cantiga em que celebram as bellezas do Nilo e lhe enviam saudosos queixumes.

Os ciganos são geralmente fortes e bem feitos e dotados d'uma grande flexibilidade de corpo. As mulheres teem a cintura delgada, flexivel, os movimentos graciosos, e, devemos dizel-o em seu louvor, tem persistido entre{30} ellas, apesar de serem semi-selvagens, um respeito admiravel pela sua honra: são notaveis, sobretudo em Hespanha, pela severidade de seus costumes.

Eil-os pois na Bohemia, os nossos viajantes.

Praga encantou-os pelas suas casas todas com terraços; tanto nas planicies como nas collinas, pelo seu palacio real, torres, mirantes, campanarios, e pelas alturas que dominam as duas margens do Moldau.

Esta vista é realmente d'um effeito surprehendente, e, quando nos achamos em frente d'estas bellezas, sentimos quanto se está longe do Sena, o que sempre agrada aos francezes que viajam, apezar de regressarem ao seu paiz com verdadeira alegria.

Adalberto estava sobretudo enlevado por não perceber nada da conversa dos passeantes quando passava por elles. Mais de metade fallava bohemio e os outros allemão.

«Estou contente, dizia este homemsinho, meio a sério, meio a rir, estou contente porque viajo em paiz estrangeiro.»

Mais uma razão para andar pela mão,—respondia Camilla que, por instincto feminino, participava da constante inquietação de sua mãe a respeito do pequeno desobediente. Mas, por mais que dissesse, elle não fazia caso, e era preciso uma ordem bem positiva de seu pae ou de sua mãe para o obrigar a dar a mão;{31} mesmo assim escapava-se muitas vezes para vêr isto ou aquillo, e estas maldades causavam uma especie de pequena guerra, na qual as armas nem sempre eram cortezes.

A vista da ponte dos dezeseis arcos lançada sobre o Moldau chamou a attenção dos nossos viajantes. Com effeito, com as suas torres antigas, suas estatuas de pedra e as suas sanguinolentas recordações, parece um velho guerreiro, que defendeu bem a sua bandeira. Como se poderia deixar de prestar homenagem á estatua de bronze d'aquelle nobre padroeiro da Bohemia, generoso martyr do segredo inviolavel da confissão? Tomou-se cuidado em indicar a todos os seculos o lugar exacto onde o padre, para não perder a alma, antes quiz perder o corpo do que faltar ao segredo do sacramento. Foi afogado no Moldau pela barbara ordem do Imperador Wencesláu. Os christãos do seu tempo admiraram-n'o e os de hoje vão ainda todos os annos aos milhares, no dia do anniversario do seu supplicio, vêr este sitio do Moldau, que recordará sempre S. João Nepomuceno.

Visitaram o bairro occupado pela nobreza bohemia, e toda a parte da cidade que limita ao norte o palacio archiepiscopal. Depois foi-se vêr a cathedral. O senhor de Valneige, que tinha visitado alguns annos antes a de Colonia, achou grande analogia entre estes dois monumentos, que datam um e outro do seculo decimo quarto.{32} A cathedral de Praga é muito mais vasta; por isso o senhor de Valneige dizia rindo que os dois templos lhe faziam o effeito de dois gemeos, dos quaes um tivesse crescido mais do que o outro. Foi com grande devoção que a senhora de Valneige fez ajoelhar seu filho mais novo deante das reliquias de Santo Adalberto, que estão na pequena capella octogona da entrada. Pobre mulher! emquanto que o pequeno distrahido, como se é n'aquella idade, olhava para a direita e para a esquerda, ella, inclinada sobre a sua cabeça loira, orava commovida, como se presentisse a desgraça que ia ferir-la...

Na nave da cathedral, admiraram o mausoleo real, de marmore e alabastro, que data do fim do seculo dezeseis, e sob o qual teem vindo por sua vez repousar os grandes da terra.

Uma bala de artilheria suspensa por uma cadêa a um pilar e cahida n'esta Igreja durante a guerra dos sete annos, excitou a attenção de Eugenio e de Frederico, e mesmo a do seu atrevido e pequeno irmão. Camilla aproveitou a occasião para dizer mais uma vez que detestava a guerra, que era uma coisa abominavel; e o terno olhar de sua mãe encontrou o d'ella.

Em presença de taes recordações bellicosas é natural ao homem pensar na gloria, mas a mulher pensa no soffrimento; é que a sua missão não é a mesma: a um cabe-lhe defender; á outra consolar.{33}

Desde o primeiro dia, a familia percorreu a cidade de Praga, para ter d'ella uma idea geral, fazendo comtudo tenção de se demorar ao menos uma semana, depois da qual se pensaria na volta. A estação ia adiantada, fazia já frio, os dias eram pequenos, era preciso regressar ao seu paiz e ao seu lar, thesouro do rico e do pobre.

Á noitinha, o senhor de Valneige, só com seus filhos (porque as senhoras estavam cançadissimas), fez uma excursão ao bairro de Carolinenthal, ao nordeste de Praga. Este sitio é o centro d'uma grande actividade industrial. Era a hora em que uma multidão de operarios sahia das fabricas: o espectaculo d'esta população laboriosa enchendo as ruas direitas e bem construidas era curioso d'observar; o senhor de Valneige fazia-o notar aos dois mais velhos, e Adalberto, durante este tempo, reparava, como fazem todas as crianças, para os incidentes do caminho: um cavallo que cahe, um cão em que batem. Quando sua mãe e sua irmã não estavam presentes tinha um pouco mais de liberdade; seu pae não pensava sempre em lhe fazer dar a mão, ainda que esta recommendação tivesse sido terminante desde que andavam viajando. Quanto a seus irmãos, confessavam baixinho que esta ordem, cheia de razão, devia ser muito aborrecida, e, por consequencia, eram muito desleixados sobre este artigo da lei. Adalberto, n'essa tarde, estava{34} mais do que nunca tentado a desobedecer; cedeu á tentação e ficou de proposito para traz, emquanto seu pae estava distrahido, e mostrava a seus filhos um vasto quartel, onde cabe um regimento completo.

Havia n'este sitio um homem que vendia passaros; era muito mais divertido do que o quartel; Adalberto parou:

«Como são bonitos! oh! este encarnado! E este verde! oh! que bonitas pennas!»

Infelizmente dois lindissimos passarinhos acabavam de declarar guerra um ao outro; o nosso futuro militar, sem ter estudado a questão politica do momento, tomou o mais vivo interesse no combate. Um tinha uma pôupa, o outro não; pareciam de força, eguaes, e, como nenhuma potencia estrangeira intervinha, o negocio podia durar muito tempo e custar a vida a um dos combatentes, talvez a ambos. Não era preciso mais para encantar o nosso pequeno official; declarou-se inteiramente pelo de pôupa, e poz-se a julgar gravemente as bicadas que choviam sobre o campo da batalha. A pôupa foi por um momento victoriosa, mas, não tendo sabido conservar a defensiva, tornou-se victima d'uma retirada simulada e ficou litteralmente vencida, porque cahiu, coitadinha! sobre a areia fina da gaiola, e Adalberto, lembrando-se de repente, em vista d'esta gloria decahida, que tinha ficado sósinho, afastou-se precipitadamente do lugar da tentação.{35}

O vendedor, porém, occupava a entrada d'uma encruzilhada; qual das ruas tomar? O pequeno seguiu pela da direita, e, não avistando logo seu pae e seus irmãos, voltou pára traz e entrou n'uma rua proxima, sem comtudo ter melhor exito. Quiz então dirigir-se aos que passavam para lhes perguntar o caminho... Mas como? Chegado n'aquella manhã nada notou e não se lembrava mesmo do nome difficil, que tinha o seu hotel. N'este embaraço interrogava os operarios das fabricas que, mais felizes do que elle, voltavam para suas casas; esta boa gente não o comprehendia. Lembra-se com verdadeira inquietação, que está n'um paiz estrangeiro, perfeitamente estrangeiro! Aperta-se-lhe o coração, tem vontade de chorar e não póde; anda, anda até que emfim, morto de cansaço, encontra um homem d'uma estatura elevada, que repara muito n'elle, se aproxima e lhe falla baixo em mau francez. Este homem ouve a sua resposta, e vê-se a criança olhar para elle com confiança e dar a mão ao desconhecido, que o leva depressa, depressa, depressa.

Durante este tempo o senhor de Valneige, victima d'uma horrivel inquietação, percorria as ruas adjacentes; teria logo achado Adalberto, se este não tivesse tomado uma direcção completamente opposta. O desgraçado pae ia, vinha, procurava. Seus filhos ajudavam-no com uma{36} anciedade facil de comprehender. O senhor de Valneige sabia pouco allemão, apenas o necessario para as necessidades previstas de qualquer viagem; mas que difficuldade para fallar doutra coisa e sobretudo para trocar com rapidez estas meias palavras, que podem fazer encontrar uma criança perdida! Á força de inquietação quiz acreditar que seu filho teria sabido fazer com que o conduzissem ao hotel, onde estaria tranquillamente sentado entre sua mãe e sua irmã. Encaminharam-se para o hotel a passos largos e em silencio.

Uma vez chegados o senhor de Valneige não ousou subir a escada; não sabia como havia de apresentar-se diante de sua mulher... Ella levantou-se quando seu marido, pallido e transtornado, abriu a porta do quarto, e, comprehendendo a pergunta antes de lhe ter sido feita, respondeu com a expressão d'um desespero subito; «Perdeu-se!»

Ha momentos na vida, que não podem descrever-se. É preciso ser pae, é preciso ser mãe, para se fazer idéa da dôr profunda, immensa, causada pela desapparição d'um filho, quando não foi Deus que o arrebatou do lar paterno. Ao menos aquelles que o vêem morrer, sabem onde devem procural-o pela lembrança; todo o desgosto é para os que ficam, mas elle não póde soffrer; seus paes sabem-no bem e as suas lagrimas não são sem consolação; mas perdido, e perdido sobre a terra! sobre {37}

{38}

{39} a terra onde ha o mal e os malvados... oh! é horroroso.


Dá a mão ao desconhecido que o leva depressa. (pag. 35.)

Sem se deixar succumbir um só instante, o senhor de Valneige, acompanhado de Gervasio, tornou a percorrer a cidade; apoderou-se d'elle uma especie de febre, que o impedia de sentir o cansaço, e o bom Gervasio suspirava, pensando no pobre pequeno, que vira nascer.

O senhor de Valneige apressou-se a recorrer ás authoridades.

Ah! como aquelle desgraçado pae sentia o coração afflicto, quando descrevia os signaes exteriores, que podiam fazer reconhecer seu filho; era loiro, a pelle branca e rosada, uma covinha por baixo da face esquerda, a barba um poucachinho dividida, os olhos castanhos e vivos, uma voz argentina como a de uma rapariga, o que contrastava com os movimentos d'uma bravura inteiramente masculina. A sua figura era, quando muito, d'uma criança de sete annos, apesar d'elle ter perto de oito.

Trajava um fato de panno azul escuro e um collarinho liso, que no momento de sahir tinha sujado de tinta, um pequeno borrão apenas visivel na parte de diante do lado esquerdo. Ao pescoço tinha suspensa, desde o baptismo, uma medalha de oiro, representando a Santa Virgem, com os braços abertos e a cabeça inclinada. Tinha-lh'a dado sua mãe, pedindo á Rainha do Céo que o livrasse do peccado e da morte, em quanto ella fosse viva. Pobre mulher!{40} tinha perdido o seu filho querido, o seu filho mais novo! Pode ser, oh! pode ser que fosse levado por homens crueis, que o fariam participar d'um viver miseravel, que maltratariam o seu corpinho, e que tentariam perverter sua alma innocente com maus exemplos e blasphemias. A esta idéa, que não a deixava, a mãe sentia-se desfallecer. Teria preferido antes vel-o morrer sob as suas vistas do que entregue a gente infame, que faria da sua infancia um longo martyrio, e que talvez o encaminhasse na senda do vicio.

O Senhor de Valneige, completamente desanimado, voltou para o hotel; ninguem tinha visto a criança; nenhuns esclarecimentos se tinham obtido; continuava o mysterio mais profundo sem se saber o que se havia de dizer nem pensar a tal respeito. Iam empregar-se todos os meios possiveis para descobrir Adalberto: mas para os desgraçados paes só restava esperar. Esperar quando se ama um filho mais do que a si mesmo, esperar sem saber se elle ainda respira, se soffre, se chama, esperar n'estas condições, é morrer todos os dias! Passou-se uma semana, uma outra, ainda outra; um mez, dois mezes, tres mezes, nada... Nenhum indicio, nenhuma esperança proxima. Foi preciso voltar para França, depois de se ter estabelecido todos os meios possiveis de correspondencia com Praga; mas toda a gente estava convencida de que o pequeno tinha sido levado{41} para longe, e que só um acaso providencial o poderia fazer achar.

A primavera voltou, Valneige readquiriu a sua belleza, frescura; os passaros cantavam, tudo se reanimára no campo, e só tres corações bem infelizes não quizeram tomar parte n'esta felicidade. Uma velha agitava-se, inquieta, perturbada, irascivel, accusando todos de negligencia, e accusando-se a si mesma de não ter sabido prever e impedir o mal; era a pobre Rosinha, que tinha emmagrecido por causa d'isto! Um homem tinha-se tornado grave e sombrio; já não tinha animação; a melancolia da doença, a que era sujeito, tinha-se tornado o seu estado habitual; os seus negocios estavam descurados, os seus planos futuros abandonados, temia-se que a sua saude, já muito melindrosa, se alterasse profundamente; era o pae. Uma mulher ia e vinha vagarosamente, tratava de seu marido, de seus filhos, da sua casa e dos pobres; mas no seu coração não entrava alegria; tudo n'ella era triste, até o bondoso sorriso com que acompanhava as suas acções para esconder a sua pena; uma energia verdadeiramente christã era o que fazia com que essa mulher não descurasse o mais pequeno dever. A sua vida era uma continua oração. Pensando, girando, andando, chamava! Chamava seu pobre filho por todas as aspirações do seu coração, pela sua coragem, pela sua dedicação, pela sua caridade para com os{42} desgraçados, com todas as véras da sua alma. E á noite, chamava ainda mais por elle, e as suas lagrimas corriam com uma amarga esperança; e ao pé do altar, quando estava só com Deus, não podendo abafar os soluços, dizia unicamente, sabendo que o Senhor a comprehenderia:

«Meu Deus! Adalberto!»{43}

A Casa do Saltimbanco

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