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O ataque

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Era sexta-feira, dia 10 de maio de 1940. Miep lembra-se de estarem todos amontoados à volta do rádio, no gabinete de Otto. Reinava uma atmosfera de horror e desolação. O locutor informou de que tropas e aviões alemães tinham atravessado a fronteira holandesa ao amanhecer. Dizia-se que parte dessas tropas vestiam farda holandesa, que iam disfarçadas de tripulantes de ambulância ou montadas em bicicletas. Seria verdade? Ou só um boato? Nessa mesma manhã, quando a rainha Guilhermina se dirigiu à população por rádio apelando à calma, ficou claro que a invasão alemã tinha começado. Três dias mais tarde, a rainha fugiu para Inglaterra. Quatro dias depois, os alemães bombardearam o centro da cidade portuária de Roterdão, destruindo-o quase por completo. Mataram entre 600 e 900 pessoas, enquanto em paralelo se negociavam os termos da rendição. Adolf Hitler atribuiu a um problema das comunicações por rádio o facto de não ter detido o bombardeamento a tempo. Mas no dia seguinte à destruição de Roterdão, ameaçou bombardear também Utrecht se os holandeses não se rendessem. A Holanda capitulou no dia 15. Ao todo, a «guerra» durou cinco dias. A falta de previsão do Governo holandês, que tinha confiado que a Alemanha respeitaria a sua neutralidade, tornou-se imensamente evidente.

Ao princípio, a ocupação alemã pareceu quase benigna. Os nazis tratavam os holandeses como se fossem primos pobres e acreditavam piamente que se converteriam com facilidade aos princípios do nacional-socialismo. A procura alemã de bens holandeses gerou uma espécie de boom económico e a política de luva de pelica que Arthur Seyss-Inquart aplicou fez com que alguns holandeses vissem a ocupação com bons olhos.

Porém, as coisas foram mudando de modo paulatino. A 10 de janeiro de 1941, o Decreto 6/1941 ordenou que se elaborasse um censo de toda a população judia. As autoridades locais instalaram gabinetes em todos os municípios para garantir o cumprimento do decreto. Os judeus deviam ir recensear-se presencialmente e pagar uma taxa de um florim por cabeça. Quando não era clara a adscrição hebraica de alguma pessoa, deveriam ser referenciadas para o gabinete do generalkommissar em Haia, dirigido por Hans-Georg Calmeyer, advogado alemão e chefe do Departamento de Administração Interna das forças da ocupação, sob cuja tutela se estava a proceder à elaboração do censo.

A grande maioria dos judeus holandeses cumpriu, concluindo que os seus nomes e moradas já figuravam nos registos locais municipais e nos arquivos das sinagogas. A falta de registo era castigada com uma pena que podia ir até cinco anos de prisão[1]. Para além disso, tinham-lhes feito falsamente crer que estarem inscritos no Gabinete Central para a Emigração Judaica (Zentralstelle für Jüdische Auswanderung ou JA) lhes facilitaria a emigração para países fora da Europa.

Miep Gies dizia que os nazis holandeses saíram «como ratazanas» dos seus buracos para lhes dar as boas-vindas entre aplausos[2]. O NSB (Nationaal-Socialistische Beweging, NSB), partido nazi holandês fundado em 1932, tinha sido banido em 1935, mas depois da ocupação ressurgiu com um fôlego renovado. Em 1943 tinha 101000 membros. Sob a direção de Seyss-Inquart, criou-se um braço paramilitar dentro do movimento: o chamado Departamento de Resiliência (Weerbaarheidsafdeling, WA), que servia de força policial complementar.

Em fevereiro de 1941, o ódio contra os judeus já se fazia sentir nas ruas, e os gangues da NSB patrulhavam os bairros de Amesterdão a espalhar o terror. Os judeus eram removidos de forma violenta dos elétricos e as montras eram partidas. O dono do café-cabaré Alcazar foi um dos que resistiram até ao último momento a afixar o cartaz de Proibida a entrada a judeus. Continuou a permitir que artistas judeus atuassem no seu estabelecimento até que no domingo de 9 de fevereiro, a meio da tarde, um grupo de cerca de cinquenta militantes da WA atacou o Alcazar atirando uma bicicleta contra a sua montra principal. Mostravam assim a sua indignação por o proprietário ter permitido que Clara de Vries, uma artista judia, tivesse atuado na noite anterior. Bateram nos clientes — judeus e não-judeus — e destruíram o mobiliário. Enquanto isso, a Grüne Polizei montou guarda no exterior para impedir a intervenção da polícia holandesa e permitiu de bom grado que os atos de vandalismo continuassem e se estendessem a outros estabelecimentos[3].

A política de luva de pelica de Seyss-Inquart seduziu os holandeses fazendo-os crer que a ocupação alemã seria amistosa e comedida, mas esse sonho chegou bruscamente ao fim quando, a 11 de fevereiro de 1941, um grupo de cerca de quarenta nazis holandeses irrompeu pelo mercado de Waterlooplein, no centro de Amesterdão — uma zona comercial onde predominavam os comerciantes judeus —, a entoar canções antissemitas. Entraram à força nos armazéns e armaram-se com objetos contundentes. Deu-se então uma violenta altercação entre os agitadores nazis e um reduzido grupo de jovens judeus que se tinham organizado para se defenderem. Alguns vizinhos, na sua maioria comunistas, prestaram ajuda aos judeus. Quando o confronto acabou, Hendrik Koot, um membro da WA, foi encontrado inconsciente. Morreu três dias depois. O «martírio» de Koot converteu-se numa ferramenta de propaganda perfeita para o NSB. A 17 de fevereiro, mais de 2000 membros vestidos com a indumentária do partido acompanharam o cortejo fúnebre de Koot pelas ruas de Amesterdão.

A 12 de fevereiro de 1941, agentes da polícia alemã e local cortaram as estradas e pontes de acesso ao bairro judeu da cidade. Proibiram a entrada e saída da zona a todos os cidadãos. A 12 de março, durante um discurso perante a secção holandesa do NSDAP (o Partido Nazi alemão) no Concertgebouw de Amesterdão, o comissário Seyss-Inquart declarou: «Atacaremos os judeus onde quer que os encontremos e quem se solidarizar com eles terá de enfrentar as consequências»[4]. Em junho desse mesmo ano, os nazis purgaram o Concertgebouw de todos os músicos judeus. Na sua última atuação com todos os membros, a orquestra tocou a Nona Sinfonia de Beethoven com intenção de envergonhar os nazis quando o coro cantava o verso Alle Menschen werden Brüder («todos os homens se tornarão irmãos») do Hino à Alegria. Em 1942, os nomes dos compositores judeus gravados nas paredes do auditório foram todos apagados[5].

Os nazis já tinham criado uma fórmula magistral para enganar, controlar e destruir lentamente toda uma comunidade. Em 1939, nos países recém-ocupados e nos guetos judeus, criaram Conselhos Judeus para servirem de intermediários entre as autoridades nazis e a população judia. Os alemães impunham normas e o Conselho Judeu encarregava-se de as implementar. O Conselho Judeu da Holanda dispunha do seu próprio jornal, Het Joodsche Weekblad, onde se publicava cada novo decreto antissemita fora do olhar do público em geral. Se estes decretos se tivessem publicado num diário generalista, os alemães tinham-se arriscado a uma reação adversa da população não-judia.

Na sua primeira reunião, a 13 de fevereiro de 1941, o Conselho Judeu holandês respondeu aos incidentes violentos que acabavam de ocorrer no bairro judeu instando os seus habitantes a entregar à polícia todas as armas que tivessem em seu poder. Isto equivalia a admitir que os judeus tinham parte da responsabilidade na eclosão de violência provocada pelos arruaceiros nazis, quando de facto só se estavam a defender[6]. Era evidente que o Conselho estava a aquiescer às ordens dos alemães, o que criou um precedente catastrófico.

O alto-comando alemão recorria continuamente à chantagem: se o Conselho resistia a colocar uma medida em prática, os nazis ameaçavam fazê-lo por sua conta recorrendo à violência. A verdadeira autoridade entre bastidores era a Zentralstelle, o Gabinete Central para a Emigração Judaica, cujo nome era extremamente enganoso, pois dava a entender que os judeus tinham a possibilidade real de emigrar. Dir-se-ia que, pelo menos ao início, os dirigentes do Conselho Judeu acreditavam que os alemães não tinham intenção de deportar toda a população judia da Holanda e que o papel do Conselho consistia em proteger aqueles que corriam mais perigo. Nos primeiros tempos da ocupação, apesar de chegarem notícias terríveis sobre campos de concentração na Polónia e na Alemanha, os judeus holandeses continuavam convencidos de que os alemães não se atreveriam a fazer na Holanda o que estavam a fazer na Europa de Leste.

Quando começaram as deportações, a Zentralstelle criou um sistema de Sperren, ou isenções de deportação, e permitiu ao Conselho Judeu fazer recomendações. Os membros do Conselho e as suas famílias qualificavam-se automaticamente para estas isenções, e as pessoas que selecionavam estiveram a salvo durante um tempo. Contudo, este sistema propiciava abusos, e a linha que separava a cooperação e a colaboração foi ficando cada vez mais fina[7].

Enquanto isso, os distúrbios continuavam em Amesterdão. A 22 de fevereiro de 1941, num sábado à tarde e, portanto, Sabbath, 600 agentes da Ordnungpolizei alemã armados até aos dentes irromperam em camiões pelo bairro judeu da cidade, que estava selado, e prenderam ao acaso 427 homens judeus entre os vinte e os trinta e cinco anos[8]. Mandaram-nos primeiro para Kamp Schoorl, na Holanda. Destes, 38 foram devolvidos a Amesterdão devido à sua fraca saúde. Os outros 389 foram enviados para o campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, e alguns posteriormente para o de Buchenwald. Só dois sobreviveram.

Três dias depois, a 25 de fevereiro, teve lugar uma greve massiva organizada por trabalhadores holandeses em protesto pelas detenções. A greve, à qual aderiram 300000 pessoas, durou dois dias. A resposta dos nazis foi implacável: pediram a intervenção das Waffen SS, que tinham autorização para disparar contra os grevistas. Morreram nove pessoas e outras vinte e quatro ficaram feridas com gravidade. Os líderes da greve foram detidos e pelo menos vinte deles executados. Fotografaram-se os detidos do bairro judeu a empunharem armas de fogo e as fotografias foram publicadas na imprensa holandesa como prova de que as autoridades alemãs enfrentavam um «surto de terrorismo»[9]. Se ainda havia holandeses que tinha ilusões sobre o que se podia esperar da ocupação alemã, isto acabou por desenganá-los.

Os judeus alemães, por sua parte, não tinham tais ilusões. Otto Frank conhecia bem as práticas dos nazis: a exclusão dos judeus dos refúgios antiaéreos; a proibição de que tivessem um emprego remunerado; a arianização dos negócios; os censos de judeus, obrigados a levar sempre à vista a estrela amarela; a confiscação de bens e propriedades; as detenções massivas; os campos de trânsito; e, por último, as deportações para o leste, onde ainda não estava claro que destino os aguardava. A partir de então, Otto lutou com todas as suas forças para salvar a sua família. Sabia que tinha de pôr a sua empresa a salvo e abandonar a Holanda.

Tentou de novo emigrar para os Estados Unidos. Os irmãos da mulher, Julius e Walter Holländer, tinham demorado quase um ano a encontrar emprego. Por fim, Walter conseguiu começar a trabalhar como operário na fábrica que a E.F. Dodge Paper Box Company tinha nos arredores de Boston, e pôde enviar uma garantia de suporte económico para a Holanda para apoiar o pedido de visto para a sua mãe, Rosa, Otto e Edith. É de assinalar que o seu chefe, Jacob Hiatt, e um amigo assinaram declarações juramentadas a favor de Anne e Margot, o que deveria ter facilitado muito as coisas. O problema era que se exigia uma fiança de 5000 dólares por cada imigrante como garantia de que não se tornariam indigentes à chegada[10]. E nem Otto nem os seus cunhados dispunham dessa quantia de dinheiro.

Em abril de 1941, Otto escreveu ao seu endinheirado amigo norte-americano, Nathan Straus Jr., cuja família era proprietária dos grandes armazéns Macy’s e que tinha sido seu colega de residência na Universidade de Heidelberg. Embora deva ter sido humilhante para ele, pediu-lhe uma carta de recomendação e a fiança, recordando-lhe que tinha duas filhas e que era principalmente por elas que recorria à sua ajuda. Straus contactou o Serviço Nacional de Refugiados e, embora se oferecesse para proporcionar as referências necessárias, deu a entender que, tendo em conta a sua influência, não era necessário que depositasse a fiança de 5000 dólares (equivalentes a uns 91000 dólares atuais). Em novembro de 1941, quando se tinham esgotado os vistos disponíveis, Straus ofereceu-se finalmente para cobrir todas as despesas, mas nessa altura já era demasiado tarde[11].

Um memorando interno do subsecretário de Estado Breckinridge Long aos seus colegas de departamento, datado de junho de 1940, revelava qual era a postura do governo dos Estados Unidos. A estratégia para controlar a imigração (taxando os refugiados de espiões, comunistas e elementos indesejáveis) consistia em «colocar todos os obstáculos possíveis e exigir provas adicionais para adiar indefinidamente a concessão de vistos»[12]. O consulado dos Estados Unidos em Roterdão, onde Otto pediu o visto em 1938, acabou destruído no bombardeamento de 1940 e os requerentes tiveram de voltar a iniciar os trâmites, pois os documentos originais tinham-se perdido. Finalmente, em junho de 1941, o Governo dos Estados Unidos fechou a maioria das suas embaixadas e consulados nos territórios ocupados pelos nazis, alegando perigo de espionagem. A partir desse momento, Otto teria de solicitar pessoalmente os vistos num consulado norte-americano situado nalgum país presumivelmente «não beligerante», como Espanha ou a França não ocupada. Mas ele não podia abandonar a Holanda sem uma autorização de saída, que não conseguia obter a não ser que tivesse um visto para entrar nesse outro país. O sistema no seu conjunto era, premeditadamente, um círculo vicioso. Otto tinha ficado preso no pesadelo interminável da burocracia de guerra[13].

Ainda assim, nunca deixou de tentar salvar a família. Em data tão tardia como outubro de 1941, estava a tentar conseguir um visto para Cuba, uma iniciativa arriscada e dispendiosa que, muitas vezes, era simplesmente uma fraude. Em setembro escreveu a um amigo dizendo-lhe que Edith o estava a pressionar para que se fosse embora sozinho ou com as meninas. Talvez, já fora do país, pudesse comprar a liberdade de toda a família. Por fim, a 1 de dezembro, conseguiu um visto cubano, mas dez dias mais tarde, a 11, quatro dias depois do ataque japonês a Pearl Harbor, a Alemanha e a Itália declararam guerra aos Estados Unidos, e o Governo cubano cancelou os vistos[14].

A sua última tentativa foi apelar à Secção de Imigração do Conselho Judeu de Amesterdão, a 20 de janeiro de 1942. Nos arquivos da Anne Frank Stichting, em Amesterdão, conservam-se quatro formulários (um para cada membro da família) a solicitar vistos de saída. Nunca chegaram a ser enviados.

Os nazis foram muito eficientes em «limpar» Amesterdão de judeus. Em 1940, havia cerca de 80000 judeus na cidade, cerca de dez por cento da sua população total. Em setembro de 1943, a cidade seria declarada livre de judeus.

Quem traiu Anne Frank? A investigação que revela o segredo jamais contado

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