Читать книгу Quem traiu Anne Frank? A investigação que revela o segredo jamais contado - Rosemary Sullivan - Страница 8
2
O Diário de Anne Frank
ОглавлениеO Diário de Anne Frank é um dos livros mais angustiantes que se pode ler, se for lido como é na realidade: o relato quotidiano de uma vida em cativeiro de uma rapariga de treze anos durante a aterradora ocupação nazi da sua cidade. Anne Frank plasma nele cada minúcia dos mais de dois anos de existência claustrofóbica que passou com a sua família no Anexo contíguo à empresa do seu pai.
Anne sabe o que há lá fora. Tal como as outras sete pessoas com quem partilha o espaço, vive num estado de medo constante, passa fome, tem pesadelos onde sonha que a levam e convive com a ameaça iminente de que os descubram e matem. Não foi a primeira pessoa a ter esta experiência, mas pode ter sido uma das primeiras a escrever sobre ela enquanto estava a suceder. As outras obras-primas sobre o Holocausto — Noite, de Elie Wiesel, e Se Isto é um Homem, de Primo Levi — foram escritas anos depois, em retrospetiva, pelos sobreviventes. Mas Anne Frank não sobrevive.
E por isso é que o seu diário é tão angustiante. O leitor sabe desde o início como acaba a história, embora Anne o desconheça.
Anne Frank recebeu o diário como prenda pelo seu décimo terceiro aniversário, no dia 12 de junho de 1942. Passado menos de um mês, a 6 de julho, a família escondeu-se, depois de a sua irmã mais velha, Margot, que então tinha dezasseis anos, ter recebido uma convocatória para se unir ao Arbeitseinsatz, o serviço de trabalho obrigatório na Alemanha. Otto Frank já sabia que esse «serviço obrigatório» era um eufemismo para trabalho escravo.
Ansiando por uma companheira íntima, Anne inventou uma amiga à qual chamou Kitty, a quem começou a escrever com uma franqueza absoluta. No seu diário, escreve acerca da esperança, dos mistérios do seu corpo de mulher, da sua paixão adolescente pelo rapaz de dezassete anos cuja família partilhava o Anexo com os Frank… Continua a ser uma menina: recorta fotografias de estrelas de cinema e de membros da família real e cola-as à parede do seu quarto. Embora tenha nascido em Frankfurt, na Alemanha, chegou à Holanda com quatro anos e meio e a sua primeira língua é agora o holandês, a língua em que escreve no seu diário. Aspira a ser escritora. Sonha com um futuro em que será famosa. Para o leitor, tudo isto é demolidor porque sabe que para Anne não há futuro.
O mundo em que vive parece-nos irreconhecível. Em julho de 1943, a família descobre que Anne precisa de óculos. Miep Gies, uma das protetoras dos habitantes do Anexo Secreto, oferece-se para a levar ao oftalmologista, mas Anne fica petrificada perante a ideia de sair à rua. Quando tenta vestir o casaco, a família descobre que lhe está pequeno, o que, somado à sua palidez, faria com que fosse muito fácil identificá-la como judia escondida. Anne terá de ficar sem óculos. Em agosto de 1944, perfazem-se vinte e cinco meses desde que não sai à rua.
Abrir janelas poderia alertar as pessoas dos estabelecimentos vizinhos para o facto de o Anexo estar ocupado. Para respirar ar fresco, Anne tinha de se inclinar e inspirar o pouco ar que entra pelo parapeito da janela. No seu diário, escreve que estar fechada naquelas divisões estreitas é incrivelmente claustrofóbico e que o silêncio que as pessoas escondidas têm de manter agrava o terror que nunca parece diminuir. Vê-se a subir e descer as escadas sem parar, presa como um pássaro na gaiola. A única solução é dormir, e até o sono é interrompido pelo medo[1].
Ainda assim, sobrepõe-se sempre ao desânimo. Conta a «Kitty» que a melhor forma de manter o medo e a solidão à distância é procurar o recolhimento na natureza e entrar em comunhão com Deus, como se, ao sentar-se à janela do sótão a contemplar o céu azul, se pudesse esquecer por um momento de que não podia sair do Anexo. Como era possível que fosse tão efervescente, tão otimista, tão cheia de vida no meio de uma repressão tão brutal?
Quase no final do diário, Anne regista uma noite especialmente aterradora em que uns ladrões entram no armazém e alguém — a polícia, muito provavelmente — bate na estante que ocultava a entrada do Anexo Secreto.
Anne conta a Kitty que acreditou que ia morrer. Ao sobreviver àquela noite, o seu primeiro impulso foi declarar que ia dedicar-se às coisas que mais amava: à Holanda, ao holandês e à escrita. E que nada a deteria até cumprir o seu objetivo[2].
É uma declaração de intenções extraordinária para uma adolescente quase a fazer quinze anos. A última entrada que Anne Frank escreveu no seu diário data de 1 de agosto de 1944, três dias antes de ela ser presa juntamente com a família e o resto das pessoas escondidas. Otto Frank seria o único dos oito habitantes do Anexo a regressar dos campos de extermínio.
Depois da sua libertação no final da guerra, muitos sobreviventes foram incapazes de expressar com palavras o que tinham vivido. O escritor Elie Wiesel demorou uma década a conseguir escrever Noite. Perguntava-se: «Como é que alguém podia reabilitar e transformar palavras que o inimigo tinha atraiçoado e pervertido? Fome, sede, medo, transporte, seleção, fogo, chaminé… Todas essas palavras têm um significado intrínseco, mas naqueles tempos significavam outra coisa». Como é que se podia escrever sem usurpar e profanar o sofrimento atroz «desse universo enlouquecido e glaciar onde ser inumano era ser humano, onde homens educados e disciplinados vestidos de uniforme vinham para matar?»[3].
Quando Primo Levi propôs o seu livro Se Isto é um Homem à editora Einaudi de Turim, em 1947, tanto Cesare Pavese, que na altura já era imensamente conhecido, como Natalia Ginzburg, cujo marido tinha sido assassinado pelos alemães em Roma, recusaram publicá-lo. Levi tentou junto de inúmeras editoras e todas rejeitaram o livro. Era demasiado cedo, alegavam. «Os italianos tinham outras preocupações… não lhes interessava ler sobre os campos de extermínio alemães. O que queriam era dizer: “Acabou. Basta! Já chega deste horror”»[4].
A peça de teatro O Diário de Anne Frank e o filme posterior vão crescendo em intensidade até alcançarem o clímax com este comentário de Anne nas últimas páginas do diário:
É de admirar que eu ainda não tenha abandonado todos os meus ideais, pois parecem tão absurdos e impraticáveis. E, no entanto, agarro-me a eles porque ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas são verdadeiramente boas, nos seus corações[5].
Para as pessoas, era impossível enfrentarem o que tinha ocorrido: o assassínio à escala industrial, as valas comuns que aniquilavam todas as memórias pessoais das vítimas… Tanto na peça, como no filme, as alusões aos «alemães» foram trocadas por «nazis» e atenuavam-se as referências ao sofrimento dos judeus. Por exemplo, as menções ao Yom Kippur foram eliminadas, supostamente para reforçar a mensagem universal e secular da História. O tradutor da edição alemã do diário, publicada em 1950, mascarou «todas as referências hostis aos alemães e ao alemão alegando que afinal de contas, um livro que se vai vender na Alemanha não pode maltratar os alemães»[6].
Mas, apesar de tudo, o diário parece ser um documento vivo. O seu acolhimento muda consoante aquilo que sabemos ou estamos dispostos a confrontar. No início da década de 1960, criaram-se livros, longas-metragens, museus e monumentos destinados a imortalizar o Holocausto. As pessoas estavam finalmente preparadas para encarar a loucura que o nazismo tinha sido e desejosas de analisar a indiferença perante a violência que tinha permitido que o fascismo se espalhasse como um vírus.
Agora é-nos muito mais fácil compreender o comentário de Anne no final do diário: Há nas pessoas uma ânsia destrutiva, a ânsia da cólera, de assassinar e matar. E, até que toda a Humanidade, sem exceções, passe por uma metamorfose, as guerras continuarão a ser travadas[7].
Pode perguntar-se que sentido faz, a esta altura, questionar quem terá traído Anne Frank no meio de uma guerra que aconteceu há tanto tempo. A resposta é que, passadas quase oito décadas desde o final da guerra, parecemos ter caído na complacência, e pensamos, tal como os holandeses outrora pensaram, que é impossível que aquilo ocorra aqui e agora. Mas a sociedade contemporânea parece estar cada vez mais suscetível ao confronto ideológico e à atração pelo autoritarismo, esquecendo a verdade mais elementar: que o fascismo incipiente se propaga como um cancro se não lhe for colocado travão.
O mundo em que Anne Frank viveu é bem prova disso. Quais são as verdadeiras ferramentas da guerra? Não se trata unicamente de violência física, mas também de violência retórica. Numa tentativa de determinar como Hitler tinha chegado ao poder, o Gabinete de Serviços Estratégicos dos Estados Unidos encomendou, em 1943, um relatório que explicava a estratégia do ditador: «Nunca reconhecer um erro ou uma falta; nunca assumir a culpa; concentrar-se num inimigo de cada vez; culpar esse inimigo por tudo o que corre mal; aproveitar cada oportunidade para gerar crispação política»[8]. Deste modo, a hipérbole, o extremismo, a difamação e a calúnia converteram-se muito rapidamente em veículos aceitáveis e normalizados de poder.
Ao observar a transformação de uma capital como Amesterdão sob a ocupação nazi, tornou-se evidente que, embora houvesse pessoas que apoiavam os nazis — quer fosse por oportunismo, por autoengano, por avareza ou por cobardia — e pessoas que se lhes opunham, a maioria delas simplesmente tratava de passar despercebida.
O que é que acontece quando os cidadãos não se podem fiar das instituições que deveriam protegê-los? O que é que ocorre quando se desmoronam as leis fundamentais que definem e salvaguardam o que é um comportamento decente? Na década de 1940, a Holanda foi como uma placa de Petri na qual se podia observar como é que as pessoas criadas em liberdade reagiam à catástrofe quando esta lhes batia à porta. Nos dias de hoje, ainda vale a pena que coloquemos essa mesma questão.