Читать книгу Quem traiu Anne Frank? A investigação que revela o segredo jamais contado - Rosemary Sullivan - Страница 20
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O regresso
ОглавлениеDas oito pessoas que se esconderam no Anexo Secreto, só sobreviveu Otto Frank. Ao encontrar-se internado na enfermaria do campo quando os comandos nazis evacuaram Auschwitz, salvou-se de uma marcha forçada que sem dúvida teria acabado com a sua vida e foi libertado pelos russos. Foi a 27 de janeiro de 1945. Dois dias antes, tinha estado numa fila, à espera da execução, quando apareceram uns soldados russos e o pelotão de fuzilamento das SS debandou e correu em busca de abrigo. Otto contou uma vez que guardava na retina a imagem dos russos com os seus «casacos brancos de neve» a avançar pela paisagem branca: para ele, essa era a imagem da liberdade[1].
A 22 de fevereiro, quase um mês depois, enquanto os reclusos recuperavam forças, os arredores do campo ficaram cercados. Otto e os seus companheiros passaram toda a noite a ouvir o estrondo da artilharia. Os alemães tinham regressado e os russos pareciam estar a perder terreno. Depois de sobreviver a tanto sofrimento, era impensável que agora tudo pudesse correr mal. Por fim, a 23 de fevereiro, alguns oficiais russos reuniram os sobreviventes na praça principal do campo e uma dezena de camiões transferiu-os para trás da frente de batalha, para uma zona segura.
Chegaram a Katowice, a capital da Alta Silésia (Polónia), alojaram-nos primeiro num edifício público e posteriormente numa escola no centro da cidade. Otto perguntava a todos os que encontrava se tinha visto a sua mulher e as suas filhas entre os reclusos. A 18 de março, escreveu à sua mãe dizendo-lhe que ainda não se sentia com forças para lhe contar aquilo pelo que tinha passado, mas que ao menos estava vivo. Acrescentava que o atormentava não ter encontrado Edith e as meninas, mas que não tinha perdido a esperança. Pensava muito em Kugler e Kleiman e perguntava-se se teriam sobrevivido aos campos de concentração. Nesse mesmo dia, escreveu à sua prima Milly dizendo-lhe que se sentia como um indigente: tinha perdido tudo. Não tinha nem sequer uma carta ou uma foto das suas filhas[2].
A 22 de março, estava sentado sozinho numa mesa, na escola deserta. Rootje de Winter, que tinha conhecido em Westerbork, aproximou-se dele. Contou-lhe que tinha estado detida no mesmo barracão de Auschwitz que a sua esposa e as suas filhas e que, a 30 de outubro, Anne e Margot tinham sido «selecionadas» para serem transferidas para Bergen-Belsen. A sua mãe, pelo contrário, tinha permanecido em Auschwitz. De Winter não podia dar-lhe mais notícias das meninas. Não tinha voltado a vê-las.
Assegurou a Otto, ainda assim, que Anne ainda «conservava a sua cara», o que queria dizer, na gíria dos campos de concentração, que a desumanidade que a rodeava não tinha conseguido destruí-la por completo. Contou-lhe que a sua beleza agora se concentrava nos seus olhos enormes e que ainda era capaz de compadecer-se com o sofrimento alheio. Os que «perdiam a cara» há muito que tinham deixado de sentir. «Algo nos protegia, nos impedia de ver.» Mas a Anne, faltava esse «escudo», afirmou De Winter. Foi «a que viu até ao final o que se estava a passar à nossa volta»[3].
Em dezembro de 1944, De Winter ficou doente e mandaram-na para o barracão do hospital, onde se encontrou com a senhora Frank. Contou a Otto que Edith delirava, que já não comia. Quando lhe davam comida, escondia-a debaixo do cobertor e dizia que a estava a guardar para o seu marido. No final, a comida estragava-se[4]. De Winter disse a Otto que a sua esposa tinha morrido de fome a 6 de janeiro de 1945. Otto deve ter ficado de coração destroçado ao ouvir a notícia.
Numa das frequentes paragens que o comboio que os levava até Tchernivtsi (Ucrânia) fazia, entre as centenas de pessoas que pululavam pela plataforma, uma rapariga que costumava brincar com Anne em Merwedeplein, em Amesterdão, aproximou-se de Otto. A rapariga apresentou-lhe a sua mãe, que no mesmo instante lhe perguntou se tinha visto o seu filho e marido, que continuavam desaparecidos. A mulher chamava-se Elfriede — Fritzi — Geiringer.
A 5 de março, ao chegar a Tchernivtsi, Otto subiu a bordo de um comboio militar russo que se dirigia a Odessa. Era o único modo de voltar a Amesterdão, onde esperava reencontrar-se com as suas filhas. Fritzi Geiringer e ele despediram-se como desconhecidos, o que não impediu que oito anos depois casassem. Até esse ponto, as suas vidas estavam dominadas pelo acaso.
Otto demorou três meses a chegar a Amesterdão. A 3 de junho, apareceu no apartamento de Miep e Jan Gies. Miep recordava que se entreolharam por um momento em silêncio e que lhes contou a seguir em voz baixa que Edith não ia voltar, mas que tinha esperança de encontrar Anne e Margot com vida[5]. Os Gies convidaram-no a viver com eles. Ele aceitou.
Nessa noite, contaram-lhe que Kleiman e Kugler tinham sobrevivido. Kleiman tinha sofrido uma hemorragia gástrica no campo de Amersfoort. A Cruz Vermelha dos Países Baixos intercedeu por ele alegando razões humanitárias e, a 18 de setembro de 1944, foi colocado em liberdade. Um apelo semelhante só podia dar resultado no caso de ser um cidadão holandês não-judeu e unicamente quando a perspetiva de perder a guerra tornou as autoridades alemãs mais complacentes. Pouco tempo depois, os alemães começariam a arrasar os campos de extermínio com bulldozers para ocultar provas.
Kugler tinha passado de um campo de trabalho para outro. A 28 de março de 1945, durante uma marcha forçada até à Alemanha, os Spitfires britânicos atacaram a coluna de cerca de seiscentos homens onde Kugler ia, nas imediações da fronteira alemã. No meio do caos, Kugler conseguiu fugir com outro prisioneiro e conseguiu regressar a Amesterdão graças à ajuda de vários camponeses holandeses. Naquela altura, os alemães encontravam-se imersos numa retirada massiva até à sua pátria e estavam demasiado ocupados a salvarem-se para pensarem em perseguir um par de fugitivos holandeses[6].
A uma segunda-feira, 4 de junho, Otto apontou na sua agenda que tinha regressado à Prinsengracht, 263. Teve de ser terrivelmente doloroso para ele ver na parede o mapa em que tinha ido marcando o avanço dos Aliados; as marcas perto da porta que mediam o crescimento das suas filhas; as fotografias de bebés, de estrelas de cinema e da família real holandesa que Anne tinha colado à parede do seu quarto. Estava tudo igual. E tudo tinha mudado. Cinco dias depois do seu regresso, disse à sua mãe numa carta que continuava sem conseguir recuperar-se. Que tinha a sensação de estar numa espécie de transe e de não ser capaz de manter o equilíbrio[7].
A esposa tinha morrido. Tinha visto Hermann van Pels a caminhar até à câmara de gás em Auschwitz no mês de outubro anterior. Não sabia nada das filhas nem de Peter, Fritz ou da senhora Van Pels. Mas continuava a albergar esperança. As filhas podiam estar nos territórios alemães ocupados pelos russos, com os quais a comunicação era extremamente lenta. Ainda continuavam a voltar sobreviventes à Holanda.
Então chegou a notícia. Otto recebeu uma carta oficial de uma enfermeira de Roterdão informando-o de que as suas filhas tinham falecido. Simplesmente não conseguiu aceitá-lo. Precisava que lho fosse confirmado por uma testemunha ocular. A 18 de julho, com a ajuda da Cruz Vermelha, conseguiu dar com Janny Brilleslijper, que tinha então vinte oito anos. Sabia que Janny tinha estado aprisionada com as suas filhas em Bergen-Belsen. Ela recordava-o assim:
No verão de 1945, um homem alto, magro e distinto parou no passeio. Olhou pela nossa janela. (…) Era Otto Frank. Perguntou-me se eu sabia o que tinha acontecido às suas duas filhas. Eu sabia, mas custou-me muito dizê-lo em voz alta. (…) Tive de dizer-lhe que as suas filhas já não existiam[8].
Por volta dessa altura, chegaram também notícias em relação ao destino dos outros. Fritz Pfeffer morreu a 20 de dezembro de 1944 no campo de concentração de Neuengamme, na Alemanha. E o jovem Peter van Pels, embora Otto tivesse tentado convencê-lo a ficar com ele na enfermaria de Auschwitz, acreditou que teria mais hipóteses de sobreviver na marcha de morte ordenada pelos nazis para evacuar o campo a 19 de janeiro, perante o avanço do exército russo. Sobreviveu à marcha, que durou uma semana, mas faleceu na enfermaria de Mauthausen, a 5 de maio, dois dias antes da rendição incondicional da Alemanha[9]. Segundo uma testemunha ocular que prestou depoimento perante a Cruz Vermelha, uns soldados nazis tinham atirado a sua mãe, Auguste, para debaixo de um comboio durante uma transferência para o campo de Theresienstadt[10].
Diziam a Otto que tinha tido sorte por ter sobrevivido. Mas será que tinha? Tinha perdido tudo. Manteve-se são a tentar reconstruir o seu negócio de especiarias — o que veio a ser impossível porque já não se conseguiam especiarias da Indonésia — e a ajudar a reunir crianças órfãs com os seus familiares.
Contou à sua mãe por carta que tinha ido visitar Jetteke Frijda, uma amiga de Margot. Tinham andado juntas no Liceu Judeu desde que as crianças judias foram proibidas de frequentar as escolas públicas holandesas. Jetteke estava completamente sozinha. O seu pai e irmão tinham morrido. A sua mãe estava na Suíça[11]. Havia uma carência tão esmagadora que às vezes era impossível de suportar. Ainda assim, Otto fazia o que podia.
Hanneli Goslar, outra órfã, contava sobre ele que se tinha convertido em seu pai; tratava de tudo[12]. Os seus pais tinham sido amigos dos Frank em Amesterdão e ela era uma das melhores amigas de Anne na escola. A sua mãe tinha falecido de parto em 1942, e o seu pai e avós maternos tinham morrido em Bergen-Belsen.
Hanneli tinha-se encontrado várias vezes com Anne em Bergen-Belsen. Acreditando que o seu pai tinha morrido na câmara de gás, Anne tinha chorado junto à vedação de arame farpado que as separava, dizendo-lhe que tinha ficado sem os seus pais. Perderam o contacto quando Hanneli foi transferida com a irmã mais nova para Theresienstadt. Figuravam na lista de judeus palestinianos da Cruz Vermelha, o que significava que estavam disponíveis — presumivelmente — para servirem como moeda de troca com os prisioneiros de guerra alemães. Nunca chegaram a Theresienstadt. Por sorte, os russos libertaram o seu comboio durante o trajeto[13].
Otto viu o nome das irmãs Goslar numa lista de sobreviventes da Cruz Vermelha e foi à sua procura a Maastricht, onde Hanneli estava hospitalizada. Emocionada ao ver que Otto estava vivo, no momento em que o viu, exclamou: «Senhor Frank! A sua filha está viva»[14]. Otto contou-lhe então a terrível verdade. Passou pela cabeça de Hanneli que, se Anne tivesse sabido que Otto estava vivo, talvez tivesse encontrado forças para sobreviver.
Otto acolheu as meninas para debaixo da sua asa. Encarregou-se de transferir Hanneli para um hospital de Amesterdão e depois arranjou os documentos necessários para que ela e a irmã pudessem ir para a Suíça para viver com um tio, acompanhando-as até ao aeroporto. Conseguia imaginar o abismo horrendo que se abria aos pés de duas órfãs que se achavam sozinhas no mundo[15].
A última imagem que temos de Anne Frank vem precisamente de Hanneli Goslar. Viu a sua amiga através da vedação de arame farpado de Bergen-Belsen. «Não era a Anne de sempre. Estava destroçada. Eu também, com certeza, mas era tão terrível…»[16]. Era fevereiro. Fazia frio. Anne tinha tirado a roupa porque já não suportava os piolhos. Estava nua, tirando uma manta que lhe cobria os ombros. A mãe e a irmã tinham morrido. Acreditava que o seu pai também. Delirava com tifo. Morreu poucos dias depois[17].
Outra sobrevivente de Bergen-Belsen, uma rapariga que também conheceu Anne, comentava: «Era necessário um esforço sobre-humano para permanecer vivo. O tifo e a fraqueza… Sim, claro. Mas estou convencida de que foi a morte da irmã que acabou com Anne. Morrer é tão horrivelmente fácil para quem fica sozinho num campo de concentração…»[18].