Читать книгу Quem traiu Anne Frank? A investigação que revela o segredo jamais contado - Rosemary Sullivan - Страница 16
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Pediam-te e dizias que sim
ОглавлениеNo seu diário, Anne Frank faz uma descrição comovedora da vida no Anexo Secreto, uma vida que era, de facto, uma forma de prisão. Sons temíveis atravessavam as paredes. Às vezes, ouvia ressoar com um ritmo sinistro o barulho das botas no pavimento quando soldados alemães passavam. A dada altura, conta que se assoma por entre as cortinas do escritório, quando o pessoal já saiu, e vê passar apressadamente uns judeus atemorizados. Com o avançar da guerra, os aviões da RAF sobrevoavam a Holanda de noite a caminho da Alemanha e o zumbido dos motores e o estrondo das baterias antiaéreas era pavoroso.[1] Muitas vezes, os caças Mustang da USAF — a Força Aérea dos Estados Unidos — largavam bidões vazios de combustível sobre a cidade para ganharem velocidade e manobrabilidade, e o estrépito inesperado que os projéteis por explodir faziam e os estilhaços a caírem do céu e a baterem no chão era contínuo.
Nas ruas de Amesterdão reinava um medo diferente. Miep descrevia-o:
Recentemente, a Polícia Verde e as SS andaram a fazer rusgas de surpresa em pleno dia. Essa era a melhor altura para apanhar a maioria dos judeus mais vulneráveis em casa: os velhos, os doentes, as crianças pequenas. Muitos tinham ido para a rua para não estar em casa se os alemães fossem à procura deles. Muitas vezes perguntavam aos transeuntes se tinham visto patrulhas alemãs e onde.
(Miep recordava que nessa época a Polícia Verde e as SS costumavam fazer rusgas de surpresa em pleno dia. Era o melhor momento para surpreenderem em casa os judeus mais vulneráveis: os idosos, os doentes e as crianças. Daí que muitos andassem na rua para não estarem em casa se os alemães fossem à sua procura. Costumavam perguntar aos transeuntes se tinham visto patrulhas alemãs ou soldados e onde.)
Não era difícil ver o que se estava a passar, mas depois da repressão brutal alemã sobre os grevistas ferroviários, o medo tinha invadido tudo. A maioria das pessoas fazia de conta que não via. Sabiam que tinham de ser prudentes. Por muito que quisessem ajudar, metiam-se nas suas casas e fechavam a porta[2].
Miep oferece um dos testemunhos mais eloquentes acerca de como era a vida fora do Anexo Secreto, mas a dor do sentimento de perda e fracasso eram tão grandes que durante quarenta e dois anos resistiu a falar desses acontecimentos. Segundo o seu filho, era uma ferida impossível de sarar.
Recordava que nos primeiros tempos da ocupação, antes de a família Frank se esconder, Otto se viu obrigado não só a arianizar as suas empresas, como também a despedir Esther, a sua única empregada judia.
Lembro-me de quando Esther nos disse adeus. Teve de ir-se embora porque era judia. Despediram-na. Sim, as coisas eram assim. Não voltou, acho. Não sobreviveu à guerra. Ainda lá estava no dia do meu casamento. (…) Deu-me de presente uma caixa com um espelho, um pente e uma escova que era da sua família. (…) Não podia ficar com ela. (…) Era tudo tão doloroso… Soubemos do seu despedimento, mas não falámos mais sobre isso. Não se sabia o que ia acontecer. Cedias, tinhas de aceitar. Os alemães eram quem mandava e havia medo, um medo atroz[3].
O estado de espírito mudou gradualmente durante a ocupação. Quando Otto pediu ajuda aos seus empregados, estes aceitaram por um motivo muito simples: Otto era um amigo. Tinham de ajudá-lo. E assim aprenderam a viver em mundos separados, a dividir-se em planos distintos: eram de uma maneira no Anexo Secreto, de outra com os seus amigos e de outra à frente dos funcionários[4]. Como explicava Miep, uma pessoa aprendia muito rapidamente o que se podia dizer e o que não se podia. «Já não estávamos em silêncio. Tínhamos perdido o costume de falar. Percebe a diferença?[5].
Jan continuou a trabalhar para os Serviços Sociais, mas começou logo a colaborar com um grupo da resistência, o NSF, embora depois de acabar a guerra raramente falasse dele. Explicava, isso sim, os seus motivos quando lho pediam. Não era o heroísmo, dizia, o que impelia uma pessoa a passar da passividade à ação. Era algo mais simples. Pediam-te e dizias que sim. O problema depois passava a ser em quem confiar. «Nunca sabias com toda a segurança em quem podias confiar (…) [mas] ainda assim, de algum modo, sabia-lo.»
Sabíamos, por exemplo, que aquelas pessoas do outro lado da rua eram boas pessoas. Porquê? É difícil de dizer. Veem-se coisas… Ouvem-se coisas. Ouves as pessoas a falar e é assim que deduzes o valor de certos indivíduos. Não é uma regra infalível a cem por cento, mas geralmente funcionava para mim. Tive sorte. (…) Havia que limitar muito os contactos. Não falar com toda a vizinhança. E depois, claro, também fazia falta um pouco de sorte. Mas eu tinha imenso cuidado com o que dizia, porque nunca se podia ter a certeza. E a verdade é que nunca me enganei com as pessoas[6].
Por volta dessa época, Miep e Jan acolheram em casa um estudante holandês, Kuno van der Horst. Na realidade, o andar em que viviam estava subarrendado à mãe de Kuno, que vivia em Hilversum, a sudoeste de Amesterdão. Davam guarida a Kuno em troca de a sua mãe ocultar um conhecido deles que era judeu. Nunca o contaram a Otto. Estava noutro compartimento das suas vidas.
Miep contava que para eles era «lógico» e «evidente» que tinham de ajudar. «Podias fazer alguma coisa e ajudar aquelas pessoas. Estavam indefesas. (…) É só isso, não há mais mistério»[7].
Acrescentava: «Sim (…), às vezes angustiava. Pensavas: “Como é que posso continuar isto?”. (…) Mas a preocupação com aquelas pessoas e a compaixão pelo que estavam a passar eram mais fortes. Impunham-se»[8].
Contudo, o medo não desaparecia: «Eu não tentava dissuadir o meu marido. Tinha imenso medo por ele, porque o amo. Se não o amasse, talvez não tivesse podido suportar perguntar-me aterrorizada todos os dias se ia voltar»[9].
Os oito habitantes do Anexo dependiam por completo dos de fora para o seu sustento físico e moral. Estavam sempre desejosos de saber o que se passava no mundo exterior, e Miep, Jan, Bep e os outros sabiam que não podiam adoçar-lhes a verdade. Miep contava que com a consciência das suas ânsias de notícias, lhes falava das rusgas que os nazis faziam em bairros diferentes da cidade; do último decreto que ordenava desligar as linhas telefónicas de titularidade judia; ou dos preços a que chegavam os documentos falsos. De cada vez que afastava a estante para entrar no Anexo Secreto, tinha de colocar um sorriso na cara e aparentar um bom humor que já era impossível de sentir na cidade ocupada. Para não preocupar os seus amigos, esforçava-se por dissimular a sua angústia[10].
Johannes Kleiman levava a sua mulher de visita de vez em quando, aos fins de semana. Depois da guerra, recordava a curiosidade insaciável de Anne:
Claro que tentávamos lembrar-nos de como era duro para a miúda. (…) Sentia imenso a falta do mundo exterior, de conviver com crianças da sua idade e, quando a minha mulher ia, a Anne recebia-a com uma curiosidade quase desagradável. Perguntava-lhe pela Corrie, a nossa filha. Queria saber o que fazia, que amigos tinha, o que é que se passava com o clube de hóquei, se a Corrie se tinha apaixonado… E, enquanto fazia as perguntas, ficava ali parada, magra, com a sua roupa descolorida de tanto ser lavada e a cara branca como a neve porque há muito tempo que não apanhavam ar. A minha esposa levava-lhe sempre alguma coisa, um par de sandálias ou alguma roupa, mas as senhas escasseavam e não tínhamos dinheiro para comprar no mercado negro. Teria sido estupendo poder levar uma carta da Corrie, de vez em quando, mas a Corrie não podia saber que os Frank não estavam no estrangeiro, como todos pensavam, mas sim em Amesterdão. Não queríamos que tivesse de carregar esse segredo quase insuportável[11].
Os de fora, os encarregados de cuidar dos Frank, dividiam entre todos a tarefa de conseguir alimentos. Kleiman chegou a um acordo com W.J. Siemons, um amigo seu dono de uma cadeia de padarias, para que lhes levasse pão ao escritório duas ou três vezes por semana. Para comprar comida durante a ocupação, fazia falta ter dinheiro e senhas de racionamento, que supostamente garantiam a divisão equitativa dos alimentos. No início, Jan conseguia as senhas no mercado negro e depois, desde meados de 1943, através dos seus contactos na clandestinidade[12]. Quando já não bastavam as senhas, o padeiro aceitou que lhe pagassem em dinheiro depois da guerra. O pão para alimentar oito pessoas podia passar por provisão normal para os empregados da empresa, que eram nove no total. Mas, como é lógico, os trabalhadores que não estavam ao corrente do que se passava perguntavam-se onde ia parar todo aquele pão.
Miep fazia compras para as pessoas do Anexo e para Jan e ela. Para não levantar suspeitas, tinha de ir a várias lojas. Segundo contava, era uma espécie de teatro:
Eu ia a todas as lojas e testava um pouco o lojista. Para ver até onde podia ir, o que podia pedir… Até que ponto podia mostrar compaixão. Em que medida podia fingir estar numa situação desesperada. Sim, era um pouco como fazer teatro. Pelo menos era assim que o sentia[13].
Hermann van Pels mandou-a a um talho perto da Rozengracht cujo proprietário era seu amigo próximo, Piet Scholte. Hermann tinha insistido que Miep o acompanhasse à loja antes de se esconder, para que o talhante soubesse quem era. Naquele momento, a sua insistência surpreendeu-a, mas depois percebeu tudo. Van Pels disse-lhe que fosse ter com Scholte e lhe desse uma lista que tinha preparado. Assegurou-lhe que não precisava de dizer nada, que o talhante lhe daria o que precisavam sem necessidade de mais explicações. E assim foi, com efeito: não foi preciso trocarem uma única palavra[14].
Bep encarregava-se do leite, que lhes levavam diariamente. Supostamente, o pessoal da empresa bebia-o em grande quantidade. O leiteiro não fazia perguntas. Mas com o aumento da escassez de alimentos — os alemães mandavam muitos produtos de primeira necessidade para o seu país —, Bep começou a ir de bicicleta às quintas dos arredores da cidade para ver o que conseguia encontrar.
Numa ocasião em que voltava para Amesterdão com as poucas batatas e verduras que tinha conseguido comprar, foi parada por uma patrulha das SS. Num mau alemão, disse ao jovem agente que a interrogou que tinha muitas bocas para alimentar na sua família. Ele deixou-a ir embora, mas ficou com metade das verduras. Depois, o carro de patrulha voltou a alcançá-la e o agente devolveu-lhe a comida.
Bep adivinhou que era uma armadilha. Em vez de se dirigir para o Anexo, foi para casa. O carro seguiu-a. Olhou para os alemães com o ar mais inocente possível e entrou apressadamente em casa. A patrulha então foi-se embora[15].
Bep e Miep tornaram-se muito próximas de Anne, como é bem patente no diário. Quando a jovem fez questão de convencê-las a passarem a noite no Anexo, ambas cederam às suas súplicas. Bep descreveu a noite que passou no Anexo Secreto como «absolutamente aterradora». Deitada no colchão, junto a Anne, ouvia os sinos da próxima Westerkerk que, a cada quinze minutos, rompiam o silêncio dos quartos.
Rangia uma viga ou uma porta, e depois ouvia-se algum ruído na rua, no canal, uma rajada de vento que mexia uma árvore ou um carro que se aproximava à distância. (…) Cada chiar e cada rangido (…) faziam pensar «denunciaram-me» ou «agora de certeza que me ouviram»[16].
O medo era quase insuportável.
Miep também ficou uma vez a passar a noite, com o seu marido. Depois de colocarem os painéis de escurecimento que selavam o Anexo como uma prisão trancada por dentro, Miep e Jan dormiram no quarto de Anne. Miep contou depois que essa noite ouviu as badaladas do relógio da Westertoren hora após hora. Não conseguiu adormecer. No meio do silêncio esmagador do Anexo, ouvia a chuva e o vento que se levantava na rua. O terror que reinava naquela casa era tão sufocante que nem sequer conseguia fechar os olhos. Supôs que era assim que se sentia um judeu escondido[17].