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Capítulo 1

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– Ninguém vai emprestar-te dinheiro, Selene. Temem demasiado o teu pai.

– Nem toda a gente – Selene sentou-se na cama e acariciou o cabelo da sua mãe, sempre tão bem cortado para manter as aparências. – Para de te preocupar. Vou tirar-te daqui.

A sua mãe ficou imóvel. Ambas sabiam que quando diziam «daqui» se referiam a «ele».

– Deveria ser eu a dizer isso. Deveria ter-me ido embora há anos. Quando conheci o teu pai, era encantador. Todas as mulheres gostavam muito dele, mas os seus olhos não se desviavam de mim. Imaginas o que senti?

Selene ia dizer-lhe que não, que só recordava sentir-se presa naquela ilha, mas calou-se.

– Claro que sim. Era rico e poderoso – ela não cometeria esse erro. O amor nunca a cegaria ao ponto de não se dar conta de como era o homem que se escondia sob a superfície.

– Não sei porque falamos de partir quando sabemos que nunca o permitirá. Para o mundo, somos uma família perfeita e não permitirá que essa imagem seja desfeita – a sua mãe virou-se para a parede.

Selene soprou, frustrada. Era como ver alguém a afastar-se numa balsa sem fazer o mínimo esforço para alcançar a margem.

– Não vamos pedir-lhe permissão. Talvez esteja na altura de que o mundo saiba que não somos uma família perfeita.

A apatia da sua mãe não a apanhava de surpresa. O seu pai regia as suas vidas e controlava-as há tanto tempo, que tinha perdido toda a esperança. Apesar do calor e de na fortaleza onde residiam não haver ar condicionado, Selene sentiu que a percorria um calafrio.

Quanto tempo era necessário para que alguém perdesse a vontade de lutar? Quantos anos antes de perder a esperança, antes de se dar por vencido? Quando se viraria também ela para a parede em vez de se levantar?

Do outro lado das portadas, o sol arrancava brilhos ao Mediterrânico, criando um resplendor que contrastava dramaticamente com a escuridão do quarto.

Para muitos, as ilhas gregas eram um paraíso e talvez alguma o fosse. Selene só conhecia uma, Antaxos, e não tinha nada de paradisíaco. Separada das ilhas vizinhas por um braço de mar violento e rochoso, e comandada por um homem temido, a sua reputação aproximava-a mais do inferno do que do Paraíso.

Selene cobriu os ombros da sua mãe com o lençol e disse:

– Eu trato disso.

O comentário insuflou uma nova energia à sua mãe.

– Não o zangues.

Selene passara toda a vida a ouvir aquelas palavras e a andar nas pontas dos pés para não zangar o seu pai.

– Não tens de viver assim, controlando tudo o que fazes e dizes.

Selene sentia pena ao olhar para a sua mãe e pensar em como fora bonita, uma beldade nórdica que chamara a atenção do playboy milionário Stavros Antaxos. Ele encantara-a com o poder e a riqueza, e ela tinha-se derretido como cera, impedindo que visse a pessoa que se escondia sob uma camada de sofisticação. Assim, tomara uma decisão errada e a vida e a alma dela tinham sido esmagadas por um homem sem compaixão.

– Não falemos dele. Recebi um e-mail esta semana do Hot Spa de Atenas – guardava a notícia há dias. – Recordas que te disse que era uma cadeia muito exclusiva e que têm hotéis spa em Giz, Corfu e Santorini? Mandei-lhes amostras das minhas velas e dos meus sabonetes, e entusiasmaram-se. Usaram-nos nos seus tratamentos e vários clientes insistiram em comprá-los por um dinheirão. Agora, querem fazer-me uma encomenda. É a minha grande oportunidade

Estava tão empolgada com a notícia, que a reação da sua mãe a dececionou.

– O teu pai nunca deixará que o faças.

– Não tenho de lhe pedir permissão para viver a minha vida como quero.

– E como vais fazê-lo? Necessitas de dinheiro para montar o negócio e ele não to dará.

– Eu sei. Por isso, tenho um plano alternativo – apesar de Selene só costumar falar depois de se assegurar de que ninguém a ouvia, olhou para a porta, que ela mesma tinha fechado, mesmo sabendo que ele nem sequer estava na ilha. – Vou-me embora esta noite. Não poderei telefonar-te durante vários dias e não quero que te preocupes comigo. Toda a gente pensará que fui passar uma das minhas semanas de reclusão e meditação no convento.

– Como vais fazê-lo? Os seguranças impedir-te-ão. Avisá-lo-ão.

– Uma das vantagens de ser a filha isolada e tímida de um homem temido é que ninguém esperará ver-me, mas, mesmo assim, tenho um disfarce.

A sua mãe olhou para ela, aterrorizada.

– E se não chegares ao continente, o que farás?

Selene tinha tudo planeado, mas não pensava partilhar o seu plano nem sequer com a sua mãe.

– Calma, pensei em tudo. Confia em mim e virei buscar-te. Por agora, deves ficar para manter as aparências e não levantar suspeitas. Assim que tiver o dinheiro, virei buscar-te.

A sua mãe agarrou-lhe o braço com força.

– Se conseguires fugir, não voltes. É demasiado tarde para mim.

– Não fales assim – Selene abraçou-a. – Voltarei e partiremos juntas.

– Oxalá pudesse dar-te o dinheiro de que necessitas...

Selene pensava o mesmo. Se a sua mãe tivesse mantido a independência, não se encontrariam naquela situação, mas a primeira e mais sagaz manobra do seu pai fora assegurar-se de que a esposa não tivesse rendimentos próprios. Ao princípio, a sua mãe vira-o como uma prova de amor. Só mais tarde se apercebera de que não queria tanto cuidar dela como controlá-la.

– Tenho o suficiente para chegar a Atenas. Lá, pedirei um empréstimo para montar o negócio.

– O teu pai tem contactos. Nenhum banco te dará dinheiro, Selene.

– Eu sei. Por isso mesmo, não penso ir a um banco.

A sua mãe abanou a cabeça.

– Quem vai ser capaz de enfrentar o teu pai? Ninguém.

– Enganas-te. Há um homem que não o teme – disse Selene, sentindo que o coração lhe acelerava.

– Quem?

– Stefanos Ziakas – disse Selene, fingindo uma indiferença que não sentia.

A sua mãe empalideceu.

– Ziakas é igual ao teu pai: egoísta e cruel. Não te deixes enganar pelo seu carisma e pela sua beleza. É perigoso.

– Não é verdade. Conheci-o há anos, naquela festa que deu num iate e em que interpretámos o nosso papel de família ideal. Foi muito amável comigo – disse Selene, ruborizando-se.

– Foi para irritar o teu pai. Odeiam-se.

– Quando falou comigo, não sabia quem era.

– Eras a única rapariga de dezassete anos na festa e não duvides de que sabia quem eras – disse a sua mãe, intranquila. – Senão, porque achas que te dedicou tanto tempo quando estava acompanhado da atriz Anouk Blaire?

– Disse-me que era aborrecida, que só estava com ele para potenciar a sua carreira e que só se preocupava com o seu aspeto. Disse que eu era muito mais interessante e conversámos toda a noite.

Selene recordava ter-lhe contado coisas sobre os seus sonhos e os seus projetos de futuro que não tinha partilhado com ninguém e ele levara-a a sério. Ao ponto de que, quando lhe perguntara se a achava capaz de ter um negócio próprio, lhe dissera algo que não tinha esquecido: «Podes fazer o que quiseres se realmente o desejares».

E esse momento tinha chegado.

A sua mãe suspirou.

– A menina e o milionário. E, por essa conversa, achas que te ajudará?

«Volta daqui a cinco anos, Selene Antaxos, e falaremos.»

Selene quisera fazer mais do que falar com ele. Intuíra que se dera conta de que a sua vida era uma grande mentira e tinha sentido uma maior cumplicidade com ele do que com qualquer outra pessoa no mundo. Fora a primeira vez que alguém a ouvira e, desde então, sempre que necessitava de consolo pensava no que lhe dissera.

– De certeza que me ajudará.

– Temo que, mais do que ajudar-te, te faça mal. Não tens experiência com homens como ele. Tu mereces alguém amável e bondoso.

– Não é o que necessito neste momento. Necessito de alguém com coragem para enfrentar o meu pai. Quero montar o meu próprio negócio e Ziakas saberá orientar-me. Ninguém o ajudou e antes de fazer trinta anos já era milionário.

Selene encontrava inspiração na história de Ziakas. Se ele o conseguira, porque não o conseguiria ela?

Tirando energia da angústia, a sua mãe endireitou-se.

– Achas mesmo que podes recorrer a Ziakas e pedir-lhe dinheiro? Mesmo que conseguisses fugir da ilha, não acederá a ver-te.

– Estou convencida de que estás enganada. E sei como sair da ilha – Selene não queria revelar o seu plano, nem deixar que a sua mãe debilitasse a sua autoconfiança, portanto, levantou-se. – Voltarei amanhã. Tenho tempo de sobra antes de o pai voltar... da sua viagem.

Era assim que se referiam às ausências do seu pai, embora ele não se esforçasse minimamente para disfarçar as infidelidades.

Não queria pensar no que faria se a sua mãe, como noutras ocasiões, se recusasse a ir-se embora. Só sabia que queria escapar da prisão que Antaxos representava e os acontecimentos da semana anterior tinham confirmado a sua decisão.

Inclinou-se para beijar a sua mãe.

– Sonha com a tua nova vida. Poderás rir-te novamente, voltarás a pintar e os teus quadros voltarão a vender-se.

– Não pinto há anos. Já não tenho o impulso.

– Porque te tiraram a vontade de viver, mas recuperá-la-ás.

– E se o teu pai voltar antes do esperado e descobrir que te foste embora?

Selene sentiu-se à beira de um abismo e percebeu que necessitava de um ponto de apoio.

– Isso não vai acontecer – disse, com determinação.

Stefan pôs os pés sobre a secretária.

Atenas, a cidade em crise que o mundo observava com inquietação, despertava em torno do edifício dos seus escritórios centrais. Tentavam convencê-lo a levar o seu negócio para outra cidade, Nova Iorque ou Londres, para qualquer sítio desde que deixasse para trás a traumatizada capital da Grécia, mas Stefan ignorava-os.

Não estava disposto a abandonar o lugar que lhe tinha permitido chegar a ser quem era. Ele sabia o que significava perder tudo, passar da prosperidade à pobreza. Conhecia o medo e a insegurança, e o quanto era preciso lutar para recuperar. Essa era uma vitória incontestável e que proporcionava muito mais satisfação do que uma batalha fácil. E vencera-a com mérito. Tinha poder e dinheiro.

Surpreenderia as pessoas saber o pouco que lhe importava o dinheiro. No entanto, o poder era outra coisa. Desde muito pequeno, tinha aprendido o seu valor. Abria portas, convertia os «nãos» em «sins», as dificuldades em facilidades. O poder era afrodisíaco e, quando era necessário, uma arma perfeita que usava sem que lhe tremesse a mão.

O telefone tocou pela enésima vez em dez minutos e ignorou-o mais uma vez.

Uma pancada na porta tirou-o da sua abstração. Tratava-se de Maria, a sua assistente pessoal.

Stefan olhou para ela, arqueando um sobrolho irritado.

– Não me olhes assim. Sei que não queres que te incomode, mas não estás a atender a tua linha pessoal – ao não obter resposta, Maria soprou. – Sonya já te ligou várias vezes.

– Quer dizer-me que está zangada e não tenho o mínimo interesse em falar com ela.

– Deixou uma mensagem, não pensa fazer de anfitriã da tua festa desta noite enquanto não tomares uma decisão a respeito da vossa relação. Literalmente, disse: «Diz-lhe que ou se compromete ou acabámos».

– Então, acabámos. Eu disse-lho, mas não quer entendê-lo – Stefan levantou bruscamente o auricular e apagou as mensagens sem se incomodar em ouvi-las, diante do olhar reprovador de Maria. – Trabalhas para mim há doze anos. Porque me olhas assim?

– Nunca te importará acabar uma relação?

– Não.

– Isso diz muito de ti, Stefan.

– Sim, que lido bem com os fins das relações.

– Não, que as mulheres com quem sais te são indiferentes.

– Tanto como eu a elas.

Abanando a cabeça, Maria recolheu duas chávenas vazias da secretária de Stefan.

– Tens todas as mulheres que queres e não há uma única com que queiras assentar. És um homem com sucesso em todos os campos, exceto no pessoal.

– Enganas-te.

– Não acredito que não queiras mais de uma relação.

– Quero sexo frequente, apaixonado e sem complicações – Stefan respondeu com um sorriso ao olhar de desaprovação da assistente. – Por isso, escolho mulheres que querem o mesmo.

– O amor transformar-te-ia.

Amor? Só de ouvir a palavra algo bloqueava no interior de Stefan. Baixou os pés da secretária.

– Desde quando faz parte do teu trabalho ocupares-te da minha vida privada?

– Como queiras, não sei porque me incomodo – disse Maria. E saiu, mas voltou imediatamente. – Há uma pessoa que quer ver-te. Talvez ela te ajude a recordar que és humano.

– Uma mulher? Pensava que a minha primeira reunião era às dez.

– Veio sem hora marcada, mas não tive coragem de lhe dizer que se fosse embora. É uma freira e diz que tem de falar urgentemente contigo.

– Uma freira? – perguntou Stefan, espantado. – Se veio salvar a minha alma, chega tarde. Diz-lhe que se vá embora.

Maria endireitou os ombros.

– Não vou expulsar uma freira.

Stefan soprou de exasperação.

– Como podes ser tão inocente? Não ponderaste que pudesse ser uma stripper?

– Sei quando um hábito é verdadeiro. E não és nada atraente quando és tão cínico.

– Mas sempre me serviu de escudo protetor. E agora que amoleceste, vou necessitá-lo mais do que nunca.

– Recuso-me a dizer a uma freira que se vá embora. Além disso, tem um sorriso muito doce – Maria suavizou a sua expressão antes de olhar para ele com determinação. – Se queres expulsá-la, terás de o fazer tu mesmo.

– Está bem, manda-a entrar. Vais ver como é fácil alugar um fato de freira.

Maria foi-se embora, evidentemente aliviada, e Stefan esperou por uma visita da qual não esperava obter nenhum benefício.

A sua irritação aumentou ao ver a freira a entrar com a cabeça coberta inclinada. A atitude pia dela não afetou Stefan, que a observou da poltrona sem se alterar.

– Se espera que admita os meus pecados, advirto-lhe que tenho uma reunião daqui a uma hora e não é tempo suficiente para os resumir. Se o que quer é dinheiro, os meus advogados encarregam-se das minhas obras de caridade. Eu ganho o dinheiro, mas gastam-no outros.

O tom de voz que usou teria afugentado muitos, mas a freira limitou-se a fechar a porta atrás dela.

– Não se incomode – disse ele, com frieza. – Sairá dentro de segundos. Não compreendo o que pretende com... – emudeceu ao ver que a mulher tirava o toucado e um cabelo loiro-prateado caía em cascata pelas suas costas.

– Não sou uma freira, Stefan – a sua voz suave e agitada pareceu mais própria de uma alcova do que de um convento.

– É evidente – disse ele, irritando-se com Maria por se ter deixado enganar. – Estou habituado a que as mulheres recorram a qualquer artimanha para conseguirem um encontro comigo, mas nenhuma tinha caído tão baixo ao fazer-se passar por freira.

– Tinha de passar despercebida.

– Receio que uma freira não passe precisamente despercebida no bairro financeiro de Atenas. Da próxima vez, veste um fato.

– Não podia arriscar-me a ser reconhecida – a mulher olhou para a janela e, para exasperação de Stefan, aproximou-se para contemplar a vista.

Quem era? Havia algo vagamente familiar no seu rosto. Stefan tentou despi-la mentalmente para ver se o ajudava a recordar, mas era difícil pensar numa freira nua.

– Dado que não me deito com mulheres casadas, não entendo a necessidade do disfarce. Esclarece-me, por favor – Stefan arqueou um sobrolho. – Onde? Quando? Tenho uma memória péssima para os nomes.

Selene desviou o olhar da janela e cravou os seus penetrantes olhos verdes nele.

– Onde e quando, o quê?

Stefan, que odiava mistérios e não se caracterizava pelo seu tato, perguntou:

– Onde e quando nos deitámos? De certeza que foi fantástico, mas vais ter de me dar detalhes.

Ela pigarreou.

– Não me deitei contigo.

– Tens a certeza?

– Segundo os rumores – disse ela com frieza, – o sexo contigo é inesquecível, portanto, suponho que o recordasse.

Mais intrigado do que teria estado disposto a admitir, Stefan recostou-se na poltrona.

– Vê-se que sabes mais de mim do que eu de ti. Portanto, a questão é o que fazes aqui.

– Disseste-me que voltasse quando passassem cinco anos e acabaram na semana passada. Foste a única pessoa que foi atenciosa comigo em toda a minha vida.

O tom emotivo dela disparou os alarmes na mente de Stefan. Habituado a detetar a vulnerabilidade para a usar em proveito próprio, suavizou a sua atitude.

– Deve tratar-se de um engano, porque eu nunca sou atencioso com as mulheres. De facto, esforço-me para não o ser para evitar que comecem com insinuações sobre anéis, casamentos e casinhas no campo. E isso não é o meu estilo.

Selene sorriu.

– Garanto-te que foste muito amável comigo. Se não fosses tu, acho que me teria atirado ao mar naquela festa. Conversaste comigo toda a noite e deste-me esperança.

Stefan arqueou os sobrolhos, surpreso, ao mesmo tempo que tentava recordar onde conhecera aquela mulher de cabelo espetacular.

– Definitivamente, deves ter-te enganado na pessoa. Duvido que tivesse conversado contigo em vez de te levar para a cama.

– Disseste-me que voltasse dentro de cinco anos.

Stefan semicerrou os olhos.

– Surpreende-me que tivesse tanto autocontrolo.

– O meu pai ter-te-ia matado.

Stefan olhou fixamente para ela e, de repente, ficou paralisado. Aqueles olhos tinham um tom verde peculiar que só recordava ter visto numa ocasião, atrás de uns óculos desfavorecedores.

– Selene? Selene Antaxos?

– Vejo que afinal me reconheces.

– Com dificuldade – Stefan percorreu-a com o olhar. – Meu Deus, já não és nenhuma menina!

Recordava uma rapariga desajeitada, uma adolescente dominada pelo pai demasiado protetor, uma princesa cativa.

«Não te aproximes da minha filha, Ziakas.»

Aquela fora a ameaça velada que o tinha impulsionado a conversar com ela.

Bastava-lhe pensar no nome Antaxos para que o seu dia se estragasse e naquele instante tinha a filha daquele homem diante dele. Os sentimentos que essa noção lhe despertou obrigaram-no a recordar que ela não era responsável pelos pecados do pai.

– Porque estás disfarçada de freira?

– Tinha de enganar os seguranças do meu pai.

– De certeza que não foi fácil. Claro que, se o teu pai não tivesse tantos inimigos, não necessitaria de uma proteção tão férrea – contendo os sentimentos que o inundavam, Stefan levantou-se e contornou a secretária. – O que fazes aqui?

A única lembrança que tinha daquela noite era ter sentido pena dela, um sentimento tão alheio a ele que era por isso mesmo que o recordava. Acreditava que as pessoas tomavam as suas próprias decisões, mas ao vê-la, tão gorducha e desconfortável, pensara que ser a filha de Stavros Antaxos era uma desgraça imerecida.

– Já te explico – disse ela, mas, agachando-se para agarrar a saia do hábito, perguntou: – Importas-te que tire isto? Estou a assar.

– Onde o compraste?

– Fui educada pelas freiras da ilha vizinha, Poulos, que sempre me apoiaram. Elas emprestaram-mo, mas, agora que estou a salvo contigo, já não o necessito.

Considerando que poucas mulheres se sentiam a salvo junto dele, Stefan olhou-a desconcertado, enquanto ela se contorcia até tirar o hábito e ficar totalmente despenteada. Por baixo usava uma blusa branca e uma saia preta justa que abraçava umas pernas espetaculares.

– Quase morria de calor no ferribote. É por isso que não tenho o casaco.

– Que casaco?

– O do fato.

Stefan desviou o olhar das suas pernas, sentindo-se como se lhe tivessem batido na cabeça com um taco de beisebol, e esquadrinhou os olhos de Selene à procura da jovem insegura do passado.

– Estás mudada.

– Espero que sim. De facto, espero parecer a mulher de negócios que sou – Selene vestiu um casaco a combinar com a saia que tirou da mala e apanhou o cabelo com um travessão. – Quando me conheceste, tinha borbulhas e aparelho. Era horrível.

Mas já não tinha nada de feia, pensou Stefan.

– O teu pai sabe que estás aqui?

– O que achas? – disse ela, com um sorriso pícaro que reclamou a atenção de Stefan para os seus lábios voluptuosos.

– Suspeito que o teu pai já deva ter passado várias noites em branco – disse, fazendo um esforço sobre-humano para pensar nela como a menina do passado e não como a mulher em que se transformara. – Deveria oferecer-te alguma coisa. Queres um... Um copo de leite?

Selene afastou uma madeixa de cabelo da cara, entre tímida e sedutora.

– Não tenho seis anos. Costumas oferecer leite às tuas visitas?

– Não, mas não costumo receber menores.

– Não sou menor. Sou uma adulta.

– Isso é evidente – disse Stefan. E, ao desabotoar o colarinho para aliviar o calor que sentia, descobriu que já estava desabotoado. Estaria o ar condicionado avariado? – Vais dizer-me porque estás aqui?

Se o que pretendesse fosse arruinar o seu pai, poderiam chegar a um acordo.

– Vim propor-te um negócio.

Os olhos enormes de Selene transmitiram-lhe tanto desejo, que Stefan sentiu um calor súbito e poderoso, completamente inapropriado, dadas as circunstâncias.

Além das mudanças físicas óbvias, ela era tão inocente como na noite do iate e nem sequer ele era capaz de cair tão baixo.

– Não tenho fama de ajudar as pessoas.

– Eu sei. E não espero um favor. Sei muitas coisas de ti, como que mudas constantemente de mulher porque não queres ter uma relação. Sei que no mundo dos negócios te chamam todo o tipo de coisas, incluindo desalmado e cruel.

– São boas características para fazer negócios.

– E sei que não te importas que te descrevam como um lobo feroz.

– Mesmo assim, vieste.

– Não tenho medo de ti. Passaste sete horas a falar comigo quando ninguém me prestava a mínima atenção – Selene dobrou cuidadosamente o hábito e guardou-o na mala, sem se dar conta de que ao inclinar-se Stefan pôde ver o perfil dos seus seios.

Stefan fracassou na tentativa de desviar o olhar.

– Eras muito doce.

Usou aquela palavra de propósito porque era a mais apropriada para matar a sua libido, mas naquela ocasião não serviu de nada. Porque o olhava ela com aquela expressão de confiar plenamente nele em vez de com precaução?

«Entra, Capuchinho Vermelho, e fecha a porta.»

Selene dedicou-lhe um amplo sorriso.

– A verdade é que me dá uma certa vergonha recordá-lo. Estava tão zangada, que teria feito qualquer coisa para irritar o meu pai, mas tu, apesar de o odiares, não te aproveitaste da situação. Não te riste de mim quando te disse que queria montar o meu próprio negócio, nem quando namorisquei contigo. Com um tato delicioso, disseste-me que voltasse dentro de cinco anos.

Selene falou precipitadamente, com a respiração agitada e Stefan observou-a em silêncio, pensando que lhe escapava algo. O que havia na sua atitude: desespero ou entusiasmo?

– Tens a certeza de que não queres beber nada? – perguntou para ganhar tempo.

– Eu adoraria um copo de champanhe.

– São dez da manhã.

– Eu sei, mas nunca o provei e esta seria a ocasião perfeita. Segundo a internet, vives uma vida cheia de champanhe.

Stefan reparou numa nota de melancolia que o desconcertou. Sempre pensara que os Antaxos tomariam banho em champanhe. Tinham todo o dinheiro do mundo.

– Embora te custe a acreditar, restrinjo as minhas horas de champanhe ao fim do dia – cerrou os dentes e chamou Maria pelo intercomunicador: – Maria, traz-nos um jarro de água ou de limonada bem fresca e qualquer coisa para comer.

– Muito obrigada. Estou morta de fome – disse Selene.

Stefan apoiou-se na secretária, assegurando-se de manter uma distância prudencial.

– Portanto, queres propor-me um negócio. Diz-me o que é e dir-te-ei se posso ajudar-te.

Aquelas palavras pareceram-lhe estranhas. Nunca se oferecia para ajudar ninguém. Tinha aprendido desde muito pequeno a cuidar de si mesmo e a ser autónomo.

– Naquela noite no iate, inspiraste-me. Contaste-me que tinhas começado do zero e como era maravilhoso ser independente. É o que eu quero – Selene tirou uma pasta da mala. – Este é o meu plano de negócio. Trabalhei muito nele. Acho que vai impressionar-te.

Stefan, a quem raramente impressionavam planos alheios, pegou na pasta com indiferença.

– Não tens uma versão digital?

– Não quis guardá-lo no computador, caso o meu pai o encontrasse. O que importa são os números, não a apresentação.

Portanto, o seu pai não sabia nada do projeto. Isso explicava os nervos que tinha detetado sob o tom animado e otimista.

Certamente, tratava-se de um projeto de fim de curso, ao qual teria dedicado as horas mortas próprias de uma herdeira protegida, e ele era o afortunado recetor do seu trabalho.

Tentando ignorar a sensação de que algo não estava bem, Stefan deu uma olhadela à primeira página e surpreendeu-o considerá-la muito profissional.

– Velas? – perguntou, incrédulo. – É essa a tua ideia?

– Velas perfumadas – disse ela, com entusiasmo. – No colégio de freiras onde andei, aprendi a fazer velas e experimentei com diferentes essências. Tenho três.

«Velas, o produto mais aborrecido do planeta», pensou Stefan.

Como poderia livrar-se dela com delicadeza? Ele costumava atirar pessoas de uma grande altura e em seguida espezinhava os seus restos.

Pigarreou enquanto se esforçava para parecer interessado.

– Podes explicar-me o que as torna especiais? – perguntou, rezando para que não se excedesse nos detalhes. Falar de velas era tão interessante como falar do tempo.

– Chamei Descontração a uma, Energia a outra e a terceira é... – Selene ruborizou-se – a Sedução.

A hesitação dela fez Stefan levantar o olhar e bastou-lhe uma olhadela para decidir que a sua primeira intuição fora acertada, era uma herdeira entediada a brincar aos negócios.

E uma vez posto em marcha o seu cérebro, recordou com toda a nitidez a noite em que se tinham conhecido.

Selene era uma adolescente triste, desorientada e tímida. Um patinho feio rodeado de cisnes, do qual o seu pai não tirava os olhos de cima. Nenhum outro homem se incomodara em falar com ela e as mulheres tinham-na ignorado, portanto, ficara sozinha, tão incomodada que era quase doloroso observá-la.

Mas já não era aquela menina, senão uma mulher. E sabia-o.

Stavros Antaxos devia estar a passar as noites em branco. E Stefan pôde imaginar como teria reagido se visse a entrega e a confiança com que a sua filha o olhava naquele momento.

Só ele sabia até que ponto não merecia aquela confiança.

A questão era se Selene sabia qual era a relação entre o seu pai e ele.

A sua atitude e, em consequência, a atmosfera mudaram radicalmente. Com lentidão, Stefan fechou a pasta e olhou fixamente para Selene.

– Portanto, as tuas velas chamam-se Descontração, Energia e Sedução...

– Sim.

– E o que sabes tu de sedução? – perguntou Stefan, insinuante.

Vida de sombras - Sombras no coração

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