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A experiência em ato, pessoal e direta com quem nos forma, nos transforma decisivamente

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Christian Dunker conversa com Carlos Mendes Rosa*Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Tocantins, Brasil

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Titular Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP e Analista Membro de Escola (AME) do Fórum do Campo Lacaniano. Tem experiência na área clínica com ênfase em Psicanálise (Freud e Lacan), atuando principalmente nos seguintes temas: estrutura e epistemologia da prática clínica, teoria da constituição do sujeito, metapsicologia, filosofia da psicanálise e ciências da linguagem. Além disso, é um dos grandes divulgadores da psicanálise em nosso tempo, sempre se colocando de forma clara e precisa, seja nos debates públicos, seja em seu próprio canal no Youtube.

Sigmund Freud é, inegavelmente, uma das figuras mais marcantes dos últimos dois séculos. Sua influência se estende por várias áreas do conhecimento, desde as artes até a medicina. É na psicologia, porém, que seu legado se consolida como paradigma e campo epistemológico. Por essa razão, uma coleção de diá logos acerca da formação em Psicologia não poderia prescindir da experiência e do conhecimento de um renomado psicanalista. É com esse intuito que nos encontramos com Christian Dunker para uma conversa acerca dos vários temas relacionados ao formar-se psicólogo.

Carlos Mendes Rosa (C. M. R.): Christian, como e por que você escolheu a Psicologia e posteriormente a Psicanálise?

Christian Dunker (C. D.): A Psicologia veio para mim como uma espécie de solução de compromisso. Eu tinha um apreço pelas pessoas, pelo cuidado com elas, gostava de ouvir histórias. Ao mesmo tempo, eu tinha um interesse pela Filosofia, pela história das religiões, pelas narrativas, pelos mitos. Assim, a Psicologia tinha esse sentido de ser uma coisa ao mesmo tempo prática, orientada para as pessoas, e que continha a promessa de projeto de autoaperfeiçoamento.

Muitas vezes, nós ouvimos frases como “a pessoa presta o curso de Psicologia para resolver seus próprios problemas”, “ela devia procurar uma psicoterapia ou uma psicanálise e não fazer o curso de Psicologia”. Eu acho que essa crítica tem um sentido até a página três, porque no fundo, de fato o estudo da Psicologia, quando bem posto, faz parte de uma trajetória de formação de libido em um sentido mais clássico e de autoaperfeiçoamento, ou de perfectibilidade, se você for falar como Rousseau. Essa ideia de que o que você faz e estuda tem sempre que ver com você.

C. M. R.: E a Psicanálise…

C. D.: Então, a Psicanálise entrou na minha vida, acho que de uma forma feliz, ou pelo menos de um jeito que eu acho interessante, pois não foi de uma forma muito cognitiva, não foi uma escolha assim “qual é a teoria que do ponto de vista epistêmico me persuade mais?”. Mas, simplesmente, porque eu tive um despeito, estava sofrendo como um perro, e achava que alguém devia fazer alguma coisa. Assim, pedi uma indicação e me indicaram um profissional, mas eu nem sabia que era psicanalista e muito menos que era lacaniano. Eu vim descobrir isso durante o processo e depois que esses encontros se dão, eles provocam consequências, transcendências e ligações que são imprevisíveis.

Então, já na metade do curso, quando estava no terceiro ano, eu tive uma experiência inusitada de participar de um concurso de bolsas para uma associação de psicanalistas e passei. Daí para frente, então, minha vida se dividia da seguinte forma: de manhã, fazia Psicologia, à tarde estudava Psicanálise e à noite fazia Ciências Sociais. Uma coisa que acho muito interessante da formação do psicólogo é o fato de ela se combinar com alguma outra formação. No meu caso, não cheguei a concluir o curso, mas com alguma outra formação, seja no campo das artes, seja no campo da teoria social, da Filosofia, no campo das línguas, me parece ser muito desejável.

A Psicanálise foi entrando primeiro como uma experiência pessoal e depois, obviamente, o curso se traduz na tentativa de dar direcionamento a essa experiência junto às matérias, às disciplinas e aos professores. Muitos professores significativos foram decisivos no processo, no meu caso um pouco antes, mas também depois de formado, na continuação da formação psicanalítica. Isso é muito interessante, porque ela cria outra posição para você diante do curso; você sai daquela atitude “shopping center”, segundo a qual você olha vitrines e escolha o que gosta mais, e começa a se responsabilizar pelos livros que escolhe ler e pelos que não lê, pelos professores que você resolve seguir, pela continuidade dos problemas em que se coloca, eventualmente, em uma pesquisa formal ou informal. A Psicanálise muda tudo quando ela entra no curso de Psicologia, quando ela entra no sujeito.

C. M. R.: Você já começou a responder a uma segunda pergunta: você poderia falar um pouco sobre sua trajetória acadêmica e sua experiência docente? Acrescento, ainda, ter visto no seu Lattes que você fez doutorado em Psicologia Experimental. Como se deu isso?

C. D.: Então, essa é uma coisa interessante e pouco mensurada nos cursos de Psicologia que é admirável na Psicanálise: ela é mais ou menos próxima do nascimento da própria Psicologia, ela é formativa do campo das práticas em psicoterapia. Não existe nenhuma prática psicoterápica tão antiga quanto a Psicanálise. Outras se desenvolveram, se autonomizaram, se opuseram e há outros paradigmas, mas a força de você estar na antiguidade histórica, na formação do campo, é muito grande.

No caso do curso de Psicologia da USP, onde eu estudei, isso se reflete, por exemplo, em uma variedade de incidências da Psicanálise. Então, se lá você tem Psicanálise na Psicologia da Aprendizagem, na Psicologia do Desenvolvimento, na Psicologia Social, na Psicologia do Trabalho, na Psicologia Clínica, obviamente, e na Psicologia Experimental, é porque o curso de Psicologia na USP foi formado, basicamente, a partir de três grandes tradições: uma é a Psicanálise, outra é a tradição da análise experimental e do comportamento, e a outra é a tradição dos estudos em Teoria da Ciência, Epistemologia e História da Ciência, que está a cargo, historicamente, da Psicologia Experimental. Mas, bem antes que eu participasse desse departamento, nós tínhamos professores que se formaram na disciplina, vamos dizer assim, do rigor científico, ligados à Psicanálise na Psicologia Experimental. Por exemplo, o professor Luís Claudio Figueiredo; o professor Nelson Coelho; o professor Osmyr Gabbi Faria Júnior, um dos maiores leitores do projeto de Psicologia científica, que depois trabalhou na Unicamp; professor João Frayze Pereira… Ou seja, todos teóricos bastante consagrados dentro da Psicanálise e que vêm desse departamento.

No meu caso, havia outra interveniência que é a seguinte: eu comecei a fazer o mestrado quando eu estava no quinto ano da graduação, em função, justamente, de pesquisas nas quais eu trabalhava dentro da Psicologia Experimental no campo da etologia. Bom, quem trabalha com Lacan sabe que um momento chave da obra lacaniana, que é o “Estádio do Espelho”,1 foi pensado a partir dos estudos etológicos dos anos trinta na Europa (da etologia do Lorenz) e a minha ideia era atualizar essa teoria do Estádio do Espelho a partir dos estudos contemporâneos em etologia.

Então, fiz meu mestrado com essa problemática e depois o doutorado sobre linguagem na psicose da criança, que foi um estudo clínico por um lado, mas sumamente epistemológico por outro, e que depois foi publicado como trabalho, como livro. Eu sei que Brasil afora existe essa tensão entre Psicanálise e Psicologia Experimental, entre Psicanálise e Psicologia Social, mas isso é coisa de província. É contra a ciênciae contra o espírito das luzes. É contra tanto o que pensava Skinner ou Wundt, quanto o que pensava Freud. A questão da discussão de método nos concerne a todos e a Psicanálise faz parte desse debate desde o seu início.

C. M. R.: Que reflexões você faz acerca da sua própria formação como psicólogo? Você já fez várias, mas tem alguma específica que seja importante?

C. D.: Olhando de longe, com certo recuo e também com certa variedade, já que dei aula em muitos lugares antes de chegar à USP… Dei aula de Filosofia, por exemplo, em universidades da periferia para alunos das classes populares, universidades de massa com classes de 120 alunos; dei aula em pequenas clínicas, postos avançados na periferia de São Paulo, dei aula fora do Brasil também, em universidades inglesas, francesas, americanas, na Colômbia… E isso permite um recuo, no sentido de dizer como os cursos de Psicologia têm limitações que dizem respeito a sua formação histórica. Por exemplo, eu vim estudar Fenomenologia apenas quando fiz o curso de Filosofia; a minha formação em Psicologia do Trabalho é pífia, para não dizer “nula”; e há muitos autores importantes atrás dos quais tive de correr depois, pois não tive contato com eles na universidade. Em compensação, outros foram apresentados de forma seguida, massiva e, às vezes, até de forma insuportavelmente repetitiva. Nós precisamos começar a apreciar melhor essa variedade entre os diferentes cursos de Psicologia, pois acho que nada é pior que esses cursos genéricos em que você, de fato, não consegue encontrar alguma particularidade, que às vezes está definida pela região, às vezes pelo tipo de professor, pelo tipo de aluno, mas que precisa ser respeitada. Isso precisa ser mais bem pensado.

C. M. R.: Quando você fala que tem que ser mais bem pensado, você está pensando uma uniformização maior ou em reduzir isso?

C. D.: Não, em uma redução disso. Num país como o Brasil, a gente pega um estado como São Paulo, por exemplo, que tem tantos cursos de Psicologia nos quais se vê esse processo de “apostilamento”, que serve simplesmente para a universidade repor o professor e trocá-lo por qualquer outro. Isso é criminoso, porque impede que aquela faculdade desenvolva sua tradição, desenvolva seu sentido de pesquisa, sua aposta epistêmica, sua aposta em termos de comunidade. Isso é uma industrialização muito incompatível com o tipo de formação que a gente tem nos cursos de Psicologia. Acho que outras áreas não sofrem tanto com isso, mas nós sofremos.

C. M. R.: É uma teia de identificação da Psicologia com o Servidor…

C. D.: Exato. É uma Psicologia pasteurizada, que resulta numa impessoalização na relação professor-aluno, uma relação clientelista no que diz respeito às teorias psicológicas e que vai produzindo (e reproduzindo) preconceitos. Isso tudo facilita a formação de espírito dogmático e não crítico, bem como o aparecimento de uma série de sintomas decorrentes desse processo de, digamos, massificação e de afastamento da experiência (mais ainda fora do Brasil do que no Brasil, eu diria). Os cursos em Psicologia têm diminuído carga de estágio (isto é, de contato com pessoas) e aumentado a leitura de textos básicos, de livros-textos, ignorando a força da experiência da leitura de autores originais e das discussões mais verticais em termos de teorias psicológicas.

C. M. R.: Você acha que, nesse processo, entra também essa tendência de colocar disciplinas EAD?

C. D.: É, nós sofremos muito mais com isso do que outros cursos. As disciplinas de ensino a distância são legais para compensar certas dificuldades que são postas pelo tamanho do Brasil, devido à dimensão continental do nosso país. Mas o que vem acontecendo –redução de carga presencial e aumento de carga de ensino a distância– é outro golpe, porque, na nossa formação, a experiência em ato, pessoal e direta com quem nos forma, nos transforma decisivamente. E aí a experiência com o vídeo perde muito, pois ela acaba justamente uniformizando e produzindo experiências de dessingularização e de perda de experiência.

C. M. R.: Como você avalia a formação universitária em Psicologia na contemporaneidade? E aí eu acrescentaria uma segunda pergunta: como você avalia a experiência de formação em Psicanálise?

C. D.: Então, pergunta muito pertinente, porque, no Brasil, a Psicanálise é, certamente, uma das formas da Psicologia, se pensarmos nas disciplinas universitárias, mais organizadas. E isso não só porque ela está presente ao longo do tempo, mas porque ela faculta uma coisa decisiva e que é um patrimônio que a gente tem: essa passagem do universo universitário formal, de disciplinas, de curso, para um sistema mais amplo de formação. Nenhum psicanalista se forma tendo aula de ler Freud, Lacan no curso, mas a coisa começa ali e, de certa forma, ela faculta que o aluno saia da sua experiência imediata, da sua atitude de aluno e comece esse processo ético de se tornar um clínico. Minha avaliação é a de que, de certa forma, a Psicanálise é o melhor e o pior que pode sair dessa relação. O pior é que a Psicanálise, de certa maneira, começa a se psicologizar; há certos vícios que vêm da atitude, da formação em Psicologia, e que passam para a Psicanálise, mas, por outro lado, a Psicologia começa, também, a ser mais e mais influenciada por tudo aquilo que a Psicanálise traz de interessante, que é a implicação, o espírito de crítica e a dimensão de formação clínica que ultrapassa aquilo que está sendo dado no curso.

Se, durante o curso, você consegue produzir esse espírito de formação permanente, a nível de formação ética e, por que não dizer, política no aluno, você garante que ele não vai terminar a faculdade agora e querer aplicar o que aprendeu. Isso deveria ser impedido, não deveria acontecer, porque, de fato, o Brasil tem essa situação diferente em relação à maior parte dos cursos de Psicologia do mundo, os quais não são habilitantes. Ou seja: no exterior, você faz o curso, depois um training, uma especialização ou estágios programados, e só depois você consegue credenciar sua atividade profissional junto ao Estado, representado por uma associação que regula a prática. No Brasil, a gente decidiu que não: o curso habilita. Então, você pode terminar o curso e, simplesmente, passar a praticar alguma forma de Psicologia. E isso está muito equivocado. Se pensamos que é bom a pessoa fazer isso, ela vai parar de estudar, ela vai parar de fazer supervisão, fazer sua terapia ou sua análise pessoal… E isto não é bom.

Por outro lado, também não é bom que a gente faça esse trabalho de formação apenas como um caminho burocrático, porque o Estado diz que você tem que fazer e, então, você regula a psicoterapia. Essa massa burocrática e administrativa é muito incompatível com o que a gente espera da formação de um psicanalista. Ela tem que articular sua experiência de sofrimento, seus sintomas, seus limites e com o seu fazer de uma forma muito mais extensa do que os cinco anos do curso de Psicologia. É uma espécie de aposta ética, o que a gente tem. Ou conseguimos produzir essa lucidez ou facultamos que, de fato, a sociedade acolha muitos psicólogos malformados, com uma pequena consciência da complexidade do seu fazer.

C. M. R.: O que tem a ver com uma herança do tecnicismo também.

C. D.: Exatamente.

C. M. R.: A Psicologia foi influenciada por essa questão dos elementos tecnicistas…

C. D.: Exato, essa questão de você formar pessoas que são capazes de reproduzir rotinas anonimamente, segundo métodos impessoais. E, para a Psicanálise, isso não dá. Não é apenas difícil, mas é contraproducente, o que tem a ver com efeitos iatrogênicos que se terá depois nos tratamentos, com relações de reprodução de dominação social, isto é, certos processos de individualização que são, por si mesmos, patógenos. Apenas no contexto disso tudo é que conseguimos compreender o psicólogo como reprodutor de técnicas, sejam elas clínicas, sejam elas educacionais, ou mesmo presentes em empresas e organizações.

C. M. R.: E isso vai ao encontro do que Lacan falou, sobre como sair da ética para um exercício do poder.

C. D.: Exatamente. Aquele que não consegue sustentar a suas práxis, autenticamente, vai se lançar num exercício de poder. É exatamente isso. Como é que você mantém a autenticidade de uma prática ética? A partir da formação do desejo. E como se forma um desejo? Não é só no curso de Psicologia, mas também começa nele, quando você começa a se perceber e a reparar que tudo depende de como você coloca o seu desejo e de como forma o seu desejo de analisar. Ou seja: não o desejo de ser analista, fazer o bem, de ganhar dinheiro, de ficar na profissão, mas sim o desejo de analisar. E isso é complicado, porque não há muita referência, é uma coisa artificial, não segue a inércia. A inércia é a gente fazer relações de mestria, universitárias, relações histéricas, não relações a partir do desejo de ser analista, propriamente.

C. M. R.: Você falou da formação da Psicanálise no Brasil com relação à Psicologia. Pensando nesse nível mais amplo, como está hoje a formação em Psicanálise na América Latina? Como você avalia esse quadro maior?

C. D.: A Psicanálise é uma força emergente, um tipo de Psicologia, que foi contra todas as previsões… Nos anos oitenta e noventa, Freud estava sendo enterrado (e Lacan junto com ele…), graças ao lugar social que a Psicanálise ocupa nos países centrais, da Europa, mas não nos Estados Unidos. Na América Latina, posso falar mais propriamente sobre a situação da Argentina, da Colômbia, um pouco do Peru e Chile também, bem como sobre o Uruguai, aonde vou com relativa frequência. Nesses lugares, a Psicanálise é uma forma de saber, de prática universitária de excelência. Então, o que você tem nesses países é que, justamente porque os psicanalistas se engajam em uma formação permanente, eles acabam alcançando posições universitárias mais pujantes. Muitos estão fazendo doutorado, estão se tornando professores, e existem muitos grupos de estudo, muitos grupos de pesquisa, cada vez mais articulados entre si. A América Latina começa a conversar e a circular. Você e eu, por exemplo, temos esse contato com o pessoal da Colômbia, então fazemos livro juntos, e isso é um autodiagnóstico da situação.

Acho que há também uma ligação importante (e, a essa altura, mais nova) entre a Psicanálise e as teorias críticas. Uma aliança que vem se fazendo da Psicanálise com a teoria feminista, com a teoria queer, com pensamentos como o de Ernesto Laclau, Slavoj Žižek, Alain Badiou, Michel Foucault, com a esquizoanálise… Enfim, um grupo bastante extenso do que podemos chamar de teorias críticas ou, em alguns lugares, de estudos pós-coloniais. E todos eles debatem fortemente com a Psicanálise, às vezes com mais tensão, às vezes com mais compromisso. Mas o que temos aí é que, no fundo, a Psicanálise acabou, dentro das Psicologias, sendo a forma que mais se preocupa, exaustivamente, com a construção e a crítica de conceitos, análise e confrontação de teorias.

Na Europa, por exemplo, existe uma divisão muito curiosa entre aqueles que fazem Psicologia (e isso quer dizer sem o método experimental) e aqueles que fazem teoria. Como se, ao fazer pesquisa stricto sensu, eles se incumbissem de pensar e criticar conceitos, de avaliar, permanentemente, a condição discursiva do seu próprio fazer. Isso tem chegado a uma espécie de colapso, de modo que hoje há esse escândalo de 61% das pesquisas stricto sensu feitas nos Estados Unidos não serem replicáveis, pois são farsas científicas. Você tem, por outro lado, uma série de estudos que têm mostrado que a Psicanálise pode se justificar, sim: ela não é uma pseudociência, não é uma lavagem cerebral; ela tem suas limitações epistêmicas, mas ela faz parte do debate. Então, tem havido uma mudança no tom e isso tem vindo, com muita força, da América Latina, em países como México e Costa Rica, por exemplo. Nesse sentido, tem-se produzido um tipo de teorização que está sendo acolhidoe que está se conectando com diferentes teorias críticas nas Ciências Humanas e na Psicologia no resto do mundo.

C. M. R.: Muito legal isso que você coloca. Já que você falou sobre o produtivismo, me lembro de que, em uma de suas aulas, você deu o exemplo do falso moedeiro, que é aquele cara que compra pontos no Lattes, que faz coisas que não deveria. Como é que você pensa essa questão do impacto desse produtivismo acadêmico no ensino da Psicanálise e o que a gente pode fazer com isso?

C. D.: Ótima pergunta. Por um lado, os psicanalistas se viram em uma relação relativamente favorável no quadro produtivista, porque eles têm revistas, eles têm encontros, têm certa facilidade para publicar, em alguns casos eles têm dinheiro, têm um público que lê pesquisa e que não são especificamente os pesquisadores. Isso é completamente inusitado se a gente comparar com estudos muito específicos, no âmbito dos quais há meia dúzia, ou dez, vinte pesquisadores no mundo, um público seleto. Então, é legal e muito importante que se tenha isso, só que a Psicanálise tem essa outra característica. Agora, por outro lado, há uma resistência espontânea a isso, porque essa atitude, no fundo, está transformando os nossos professores em administradores, em gestores.

Quanto mais se vai entrando na carreira universitária, mais você vai sendo tirado da experiência da pesquisa, da aula, do contato com as questões de publicação, de conceito, de estudo, e você vai virando outra coisa, vai virando um membro de colegiado, ou então um redator de pareceres para revistas. Não existem as fake news? Existe também o fake teacher, a fake university, um mundo completamente artificial, falso, desgarrado de qualquer laço com a realidade e que gira em torno de si mesmo, produzindo, inclusive, um lixo industrial de trabalhos, mais ou menos amigados, para marcar pontos no seu currículo Lattes, apenas para que seu programa de pós-graduação vá para uma posição melhor, de modo que seus alunos tenham bolsas e você possa conseguir, enfim, mais apoio do Estado. Mas isso é um completo descaminho. Claro que algum controle é interessante, alguma avaliação é benéfica, mas o que tem acontecido é que nós transformamos os critérios de avaliação nos nossos objetivos. A gente não faz mais pesquisa, marca pontos no Lattes; a gente não cria mais ideias, mas serve a editoriais e publicação. Isso é uma inversão de meio e fins. Aliás, de práxis, pois a Psicanálise é uma práxis com certa montagem, em que os meios, os fins, os outros e nós mesmos, enfim, andemos na copresença.

Essa industrialização universitária é completamente contrária ao espírito psicanalítico, ainda que nós tenhamos essa posição, mais ou menos favorável, por contingência. Entretanto, devemos fazer a crítica dos falsos moedeiros, as moedas gastas do Mallarmé, aquelas de que não conseguimos mais ler a efígie, portanto não conseguimos mais trocar… Isso tudo precisa ser, imediatamente, revisto –e está sendo. Percebemos que estava havendo uma consciência um pouco mais clara de que o sistema não foi feito para servir a si mesmo, mas sim para ajudar as pessoas, a sociedade civil, a resolverem seus problemas reais, o que sofrem, etc.

C. M. R.: Quais acertos, desacertos e contradições você consegue perceber na história da formação em Psicologia?

C. D.: É difícil, porque, na história, cada cultura seria de um jeito. Por exemplo, pensar São Paulo e Tocantins: são momentos diferentes. Vamos pensar assim: na América Latina, nós tivemos alguns recortes mais ou menos recorrentes, mas que não foram sincrônicos. Nós temos um primeiro momento em que a Psicologia chega por parte do nosso processo colonial, como um conjunto de ideias fora do lugar, que são aplicadas para reforçar os laços de poder e dominação na inflação, na psiquiatria e nas empresas. Isso é atravessado pelas ditaduras militares e pelos regimes opressivos em diferentes países nos anos setenta, que é uma década em que a Psicologia está se institucionalizando e aparecendo como curso independente. Trata-se de algo muito marcante e que explica a diferença da nossa Psicologia em relação àquela praticada na Ásia, na África, em outros universos. Nós fomos formados em uma experiência política segundo a qual a Psicologia foi chamada a tomar a posição diante de regimes opressivos. Então, ao mesmo tempo, historicamente, temos uma demanda para a discussão da cientificidade da Psicologia e outra para a discussão do seu potencial de transformação crítica da realidade.

Acho que temos, ainda, um terceiro momento, que diz respeito à saída desses países em processos autoritários, ditatoriais, rumo a uma reconstrução democrática, processo esse em que a Psicanálise e a Psicologia tiveram um papel importante. Mas penso que, agora, vamos dizer assim, estamos em um quarto momento, um momento em que a inspiração de lutar contra regimes opressivos se dispersou. Ainda que as nossas relações sejam excessivamente racializadas, heteronormativas, classistas ou racistas, isso tudo constitui o quarto momento da conversa, em que estamos rediscutindo o que significa a crítica e o que significa a prática formativa em um universo onde o inimigo não está tão claro e em que começamos a perceber que existem formas que nos anos setenta eram extremamente resistenciais e interessantes, mas que no presente se tornaram normas dominantes, uma espécie de crítica compulsória, ou seja, se tornaram ideologia.

Então, está sendo feita uma espécie de balanço nesse processo, que é o momento que estamos vivendo, no sentido de uma redefinição possível do que seria o projeto de sustentação da Psicologia no mundo, porque a ideia é a de que vamos formar pesquisadores de massa porque o mundo precisa. Porque o mundo precisa de professores de Psicologia? Isso é um anacronismo, isso é o que a gente precisava se dizer nos anos setenta para formar alguma coisa chamada de sistema universitário de pesquisa, de pós-graduação, que dão os contornos de uma cultura psicológica. Por um lado, isso se tornou muito necessário, porque se realizou. Por outro, se tornou indesejável, porque estamos fazendo parte do processo do complexo “psi”, que é o processo de psicologização da cultura, da política, da saúde, etc. Ou seja, deu certo, porque deu errado. Então, porque deu certo, tudo se transforma tudo em problema. Ainda assim, a gente teria que pensar como a Psicologia pode, efetivamente, sair de seus próprios muros. Estamos vivendo em condomínio, condomínio dos pesquisadores. Nada contra a pesquisa. Que se façam as pesquisas, pois são uma coisa absolutamente essencial, mas elas precisam se conectar com as demandas reais, precisam se conectar com o comum, com a vida institucional dos países.

C. M. R.: Indo ao encontro disso que você colocou como quarto momento: o atual contexto político do país tem influência na formação em Psicologia e Psicanálise?

C. D.: Tem influência e essa influência deveria estar mais mais clara para as pessoas, que deveriam estar mais conscientes disso. Porque nós estamos vivendo um processo de reformulação da problemática política. Nós vivemos um processo ligado às ditaduras, e agora estamos diante de outra coisa, que passa pela emergência de discursos, que eu não gosto muito de chamar de fascista, porque isso nos remete aos anos trinta. É uma coisa nova sobre a qual temos que pensar, e também enfrentar. Acho que temos visto professores, não tanto na Psicologia, mas professores que trazem Marx para a sala de aula serem demitidos. Isso ocorre não por eles serem contra o governo, mas, simplesmente, porque tal prática não interessa ao nosso mercado, assim como não interessa ao nosso mercado uma série de outras coisas que, no fundo, são coisas caras, que a gente não quer pôr na balança. Porque, formação e educação são caras, independentemente de quem vá pagar a conta, se é o Estado, se é a iniciativa privada, se é a sociedade civil. No Brasil, pelo menos, essa discussão está sendo acobertada por outras coisas: “porque é ideológico”; “porque é mais funcional, ou menos funcional”; “ensino a distância”… No fundo, você está tentando inventar uma espécie de junk food; uma forma de pensar assim: “Olha, a gente consegue fazer barato e melhor”. E, na Psicologia, você não consegue.

Note: não estou falando apenas com uma ênfase na clínica, que demanda tempo, pois você precisa ver pacientes, precisa cometer erros e depois aprender com esses erros, precisa combinar experiências de vida com o que você está enfrentando ali, precisa de uma vasta formação cultural, precisa de erudição, precisa trafegar em outras áreas… Porque o limite do que você consegue escutar, às vezes, é o limite da sua linguagem e da sua experiência. Sem isso, você só escuta aqueles que são iguais a si mesmo.

Isso tudo, então, demanda tempo e custa caro. No fundo, a Psicanálise está em vantagem aí, porque ela, justamente, insiste nessa pegada. Muitas vezes, as pessoas tomam isso como sendo de elite e para ricos. Não é para ricos, só que demora e não é fácil, e o “x” da questão é como vamos produzir um ambiente de maior excelência. Por isso é que eu digo que a Psicanálise é uma peça civilizatória, porque ela está puxando para cima os nossos medíocres parâmetros de avaliação, expectativa, ensino, universidade, relações pessoais e tudo mais. Isso tudo é extremamente miserável, no mal sentido; é pobreza de espírito. A pobreza de espírito é a indecência com que a gente trata aquilo que seria mais precioso: as pessoas, suas relações, suas histórias, sua cultura.

C. M. R.: São exigências, no mínimo, pessoais…

C. D.: Sim. Mas isso deveria ser institucional, deveria ser comum, só que não é. No fundo, é uma discussão que está acontecendo para nós na universidade, mas também na educação em geral. Nós conseguimos incluir muita gente, muito mais do que até então o país conseguia, porém à base de uma educação pouco qualificada, muito massificada, de baixa qualidade.

C. M. R.: É um processo de precarização que não está acontecendo só na universidade e não só na educação. É uma precarização em todos os âmbitos.

C. D.: Exato.

C. M. R.: Em relação a essa questão do preço que se paga para uma formação em Psicanálise, o que você pensa da popularização do ensino da Psicanálise?

C. D.: Bom, eu concorro para isso… Tenho meu canal no Youtube (risos)… Acho que, por um lado, isso cria e reforça problemas desagradáveis ligados à psicologização e a questões de contradições sociais. Isso educora e oferece narrativas mestres no sentido do que pensa Fredric Jameson, da ideologia do capital. Existe uma quantidade extensa de problemas que vêm com essa popularização. Mas eu perguntaria: “E a popularização das outras coisas, dos outros discursos que não são da Psicanálise?” Que comparação a gente faria? A popularização da Psicanálise, que é, até onde entendo, de baixo nível corporativo, é que consegue, de fato, controlar a produção. O trabalho de Psicanálise continua bastante artesanal, com muita liberdade. Inclusive, os analistas que trabalham em instituições fazem o que podem –ou fazem o que conseguem, o que querem. E isso diferentemente de outras áreas, em que você tem um sindicato, ou uma organização que estipula e controla sua prática. Quanto a nós, devido ao nosso anacronismo, não conseguimos fazer isso com a psicanálise, por mais que a gente a popularize. Por mais que se divulguem as ideias, ninguém vai se formar psicanalista vendo coisas no Youtube ou lendo trabalhos de popularização. Essa nossa prática tem um outro sentido, um sentindo de intervenção social, de transmitir junto com a Psicanálise valores críticos, valores culturais, introdução a reflexões estéticas, problemáticas éticas. Ou seja, isso é muito mais importante do que aderência a conceitos, valores, identificações com psicanalistas específicos ou que você quiser inventar. Dito de outro modo, é nessa condição, no Brasil de hoje, que a gente tem nosso aproveitamento indireto, de que aquilo que é exigido pela formação de um psicanalista tem valor social, não de apenas se formar como psicanalista, mas para penar, para refletir, para se disseminar certa discussão ética e política, por exemplo.

C. M. R.: No seu ponto de vista, quais são os aspectos nucleares da formação em Psicologia?

C. D.: A gente pode pensar nuclear como as condições críticas, os pontos decisivos. Essa é uma resposta bastante contextualizada. Talvez, daqui a alguns anos as respostas, possam ser outras. Pensando hoje, as perguntas que eu faria, se eu fosse escolher um curso, como, por exemplo, a Psicologia, seriam: nesse curso a gente lê os autores, nas suas formações iniciais, originais, ou a gente lê comentadores, facilitadores? Segunda pergunta: nesse curso eu vou ter experiências concretas com pessoas, pessoas que sofrem, pacientes em hospitais, em escolas, em espaços jurídicos, ou eu vou ouvir experiências que outros vão me contar? Terceiro qualificativo: nesse curso eu vou encontrar professores que são burocratas, que estão interessados em sair da sala de aula, que estão mais preocupados em preencher formulários para os seus departamentos, ou vou encontrar professores que estão ligados aos seus alunos? Que têm espaço, tempo e incentivo institucional para dar, em curso, aquilo que se desvia do programado? Aquilo que vem como efeito secundário dos encontros que vamos fazendo? Se não houver espaço para isso, eu procuro outro curso.

Outro tipo de pergunta que eu faria seria: que tipo de relação orgânica há entre aquela experiência que você vai fazer e a continuidade dela, seja como pesquisa, iniciação cientifica, seja com estágios ou como formações complementares? Isto é, como você vai sair daquele curso? Se você encontra uma proposta de curso em que tudo vai acontecer lá onde você está, dentro da sala de aula, que funciona como um shopping center ou como uma espécie de condomínio fechado, procure outro curso, porque esse vai te enganar, vai provocar a sensação de que você aprende sobre o mundo fora do mundo. Não é assim.

Outra pergunta que eu faria diz respeito a qual nível de violência institucional você encontra. Qual a quantidade de processos, de sindicâncias, de pessoas se agredindo, se atacando dentro do curso? É difícil termos acesso a isso, porque está escondido, mas, se procurar um pouquinho na internet, você acaba descobrindo. Cursos que têm relações entre os funcionários, os professores e os alunos, do tipo jurídico, contratualista, que tem tudo que ver com a lei, com o segmento das ordens. São cursos que estão acabando com a experiência do comum, que não têm cultura acadêmica, tampouco essa experiência de um destino comum. Fuja desses cursos, pois são feitos apenas para reproduzir uma promessa ilusória que você tem na sua cabeça e que não tem nada a ver como o que é, de fato, a experiência concreta com pessoas no universo do sofrimento e da Psicologia.

C. M. R.: Pensando na formação em Psicanálise, nas duas acepções da formação, conforme você descreve em um texto sobre supervisão (por um lado, como uma história de separações em relação às ilusões constitutivas e, por outro lado, como um percurso em direção ao próprio desejo), como podemos colocar em prática esse processo hoje, especialmente dentro da academia?

C. D.: Pensando nas supervisões clínicas de trabalhos comunitários, na prática da supervisão, eu acho que isso é plenamente aplicável. Nós acabamos fazendo um pouco assim, informalmente. Eu trabalho com a Psicanálise, então me oriento por isso, por essa ética, e isso traz uma série de corrupções ou de resistências ao sistema de controle, mais ou menos, tradicional. De fato, uma boa supervisão é aquela que, em primeiro lugar, consegue fazer com que o sujeito se escute; que consegue lhe transmitir como ele é capaz de pensar fora de si, fora dos seus valores iniciais, das suas hipóteses iniciais, das suas convicções, dos seus esquemas de ligação e dos seus esquemas conceituais. Uma boa supervisão deve ser capaz de recriar os conceitos, a partir –e no contexto local–, daquela prática e daquela experiência. Isso significa passar por um conjunto de desilusões que têm certas implicações, como “precisa ter uma relação pessoal supervisora e supervisionando” ou “grupos pequenos”. E isso sai caro, porque não tem como você contornar isso. Supervisão tem que ser para sete, cinco, oito, por vez. É um processo que você não massifica. Então, tem uma resistência dos materiais operando aí, você não tem como industrializar esse negócio. Mas mesmo com grupos pequenos você vai precisar contar com certo desejo daquele que é o supervisor na sua relação com o supervisionado, um desejo que implica certa humildade da própria posição de professor. O supervisor não é um professor, pois ele, justamente, renuncia ao exercício do seu poder, para colocar em primeiro lugar não o que pensa o aluno, mas a experiência que se coloca para os dois, os desafios, os obstáculos, aos quais tanto o supervisor, quanto os supervisionados estão submetidos.

Isso implica laços de confiança, bem como a reinvenção da relação de autoridade e, inclusive, uma formação de crítica da situação institucional a que o aluno e mesmo o supervisor estão envolvidos. É muito interessante se pensar como nos formamos pouco para essa divisão. Então, a supervisão é feita e tudo o que acontece durante o atendimento é pensado e escutado, como se ao sair dele não se precisasse mais ser escutado e pensado, tal como a sua relação com funcionários, sua relação com o ônibus que atrasa, sua relação com as normas, e isso é, simplesmente, descartado. O supervisor tem que ter a coragem para levar e colocar as experiências do que acontece, para além do stricto sensu do privado.

C. M. R.: Há uma frase do Lacan que diz: “Deve renunciar ao trabalho de psicanalista aquele que não consegue compreender, em seu horizonte, a subjetividade de sua época”. Qual é a subjetividade da nossa época e o que a Psicanálise tem a dizer acerca disso?

C. D.: Uma das coisas próprias e típicas da subjetividade da nossa época é que ela não cabe em duas ou três frases. O contemporâneo é o que existe de mais opaco para nós. A subjetividade contemporânea não é acessível só porque está acontecendo agora. No recuo você pega muito melhor do que na imanência da situação. O que eu posso dizer é que há alguns casos, bizarramente, fora do horizonte da sua época, casos em que se tem uma renúncia compulsória não por idade, mas por falta de seguir o espírito da proposta. Então, o que está fora disso é aquele tipo de discurso, completamente endogâmico, condominial, às vezes feito de complexidade desnecessária, feito para iludir e criar reverência. Isso está fora do horizonte da nossa época. Aquele discurso da Psicanálise em estrutura de condomínio, o qual eu estudei, no caso do Brasil, em meu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma. Isso é a Psicanálise que está, enfim, fora dessa subjetividade. Quer dizer, é possível entendê-la nos anos setenta e tal, mas hoje não dá mais, não é esse tipo de resistência que podemos trazer de melhor para a nossa época.

Há uma tese do Freud, por exemplo, que para a época dele era interessante: ele falava das resistências à Psicanálise, de como a cultura resistia às teses da sexualidade, ao desejo, à teoria da pulsão. Hoje temos que pensar que não é só o mundo que resiste à Psicanálise, mas a Psicanálise que resiste ao mundo também, criando, assim, o seu próprio curral, o seu próprio mundo à parte, achando que não devemos nos contaminar… Essa coisa típica da Idade Média: “Há peste fora dos consultórios, então temos que nos proteger”. As nossas instituições devem ser refúgios para o mal-estar, então o mal-estar deve ficar lá fora, aqui é o bem-estar, e isso é ridículo, é o que eu chamaria de Psicanálise neoliberal, que a gente ainda não pôs na pauta. Há muitas tendências em Psicanálise que são expressões diretas do que há de pior na nossa época, que é o neoliberalismo, tais como: “faça-se empreendedor de si mesmo”, “cada um por si”, “as singularidades”, o self made analista, os analistas feitos as pressas, os analistas que são militantes políticos… Não dá! Isso tudo está em uma linhagem que não atualizou a crítica.

C. M. R.: Como é que fica a questão do compromisso social para psicólogos e psicanalistas no nosso cenário atual?

C. D.: A própria colocação “o compromisso social” já é um pouco problemática, porque é como se disséssemos: “Ah, antes a gente não tinha”. A questão é orgânica. O compromisso social faz parte do que você faz, desde o começo. Qual é o seu o conceito de sociedade? Qual é o seu conceito de compromisso? Você pode dizer: “Eu tenho uma atitude de compromisso social, porque eu estou no mercado”. Não é exatamente isso. As condições para o exercício da Psicanálise convocam a pensar, cotidianamente, a radicalidade do que significa o outro, do que significa a linguagem, o imaginário, o simbólico, do que é feito o real, e isso tudo, no fundo, é imanentemente ligado à problemática social, ao campo social. Bom, mas o que é o social? O social é tudo isso, esse regime de trocas, essas gramáticas de reconhecimento, essa experiência de sofrimento, isso tudo é o que a gente faz. O social não está fora, não está mais além, só que, se você faz mal feito, você não consegue reconhecer. Por isso eu sempre insisto que boa clínica é crítica social feita por outros meios. Mas não é toda clínica, apenas aquela que é realmente boa. Você não está ali doutrinando o seu paciente, fazendo partido, etc., você está fazendo aquilo que vai, de certa forma, restituir para o social, aquela forma de sofrimento que ele não consegue tratar, acolher e escutar.

C. M. R.: Por último: que recomendações você faria para uma boa formação tanto de psicólogos quanto de professores?

C. D.: Então, você não pode trabalhar quarenta horas dentro de um consultório ou dentro de uma sala de aula. Não pode. Há que se mudar a legislação. Psicólogo não pode trabalhar mais que trinta horas, que já é muito para o começo. No contrato deveriam ser quarenta horas, mas você tem que ter dez horas para fazer a sua análise, para fazer a sua formação. A formação é longa! O problema, quando se fala em Psicanálise, é que se tem o curso de Psicologia e depois se tem mais dez anos. Não adianta você dizer: “Depois vou voltar e fazer”. Isso aí, às vezes, acontece na vida de alguns, mas você tem que ter a oferta de que a pessoa ganhe para se manter, etc. É preciso que ela continue, que lhe seja facultada a possibilidade de permanecer na formação. O que isso envolve, então? Atender pacientes, trabalhar em instituições, etc.

Uma recomendação que eu faria é com o cuidado de si. Se você não consegue manter o cuidado de si na formação própria, depois da formação universitária, não vai dar certo. Outra recomendação é: não se isole, não imagine que a gente consegue fazer uma formação do tipo “você, o seu amigo e mais um”. A formação é justamente um empreendimento coletivo. Trata-se de conhecer o outro, sair de si. Isso é uma prática anti-narcísica, porque todas as profissões têm as suas doenças funcionais: pode ser dor nas costas, sinusite; o outro pode ter, enfim, problemas de intoxicação… A nossa doença profissional se chama narcisismo. A nossa doença está muito ligada a certos efeitos que podem ser descritos assim: o paciente nos procura e se estabelece uma relação de respeito, admiração, gratidão. E, facilmente, nós ficamos muito fascinados por isso, de modo que começamos a “vampirizar” os outros com esse desejo de reconhecimento e de admiração no mau sentido. Então, se você quer ser excessivamente amado, vá procurar outra coisa, pois aqui não faz bem. Você precisa conter o seu desejo de submissão, o seu desejo de obediência. Eu vejo muita gente que se atrapalha muito porque não sabe o que faz. Daí começa a questionar: “E aí como é que eu faço?”; “quero ser um psicanalista”;“quero ser um clínico”; “como é que eu faço para montar um consultório?”. Trata-se algo que faz parte da resistência da matéria prima da Psicanálise, não é possível transformar isso em um roteiro –e, quando se transforma, dá errado. Então, se você tem que fazer essa pergunta –“Ah, me diga que eu obedeço”, “me diga que eu faço”–, você está na posição errada, não vai dar certo. Esse é um cuidado a se tomar.

Outro cuidado que acho importante diz respeito a vamos dizer assim, uma posição pessoal: procure uma instituição, um grupo de estudos, um lugar que vai te colocar em contato com conferências e encontros regulares fora do teu local (estadual, no Brasil, no mundo). As instituições em Psicanálise te levam para fora dali. Você não precisa fazer isso toda hora, mas, de fato, aquele modelo do mestre que está com seus discípulos, que produz e reproduz uma relação de pastoreio e de dominação, isso não faz bem. A nossa época não precisa disso: temos outras experiências e o psicanalista precisa ser um viajante, tem que viajar dentro e fora. Se você não cria essa situação, é possível começar a haver efeitos bem letais.

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