Читать книгу Como eu atravessei Àfrica do Atlantico ao mar Indico, volume primeiro - Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto - Страница 35
ОглавлениеUm dia, Jacintho deu em ser lavrador. Era a costumeira de criança que puxava por elle. Comprou terreno, e lançou os fundamentos d'essa vastissima propriedade que é digna de ser visitada; e á qual dedicou o seu trabalho e a sua bôlça, até ao ùltimo momento de vida que têve.
Era Jacintho conhecido por estropiar as palavras, e citam-se d'elle tolices engraçadissimas, pêlo mao emprego de um ou de outro vocàbulo que decorara, mas cuja significação não conhecia bem; com tudo, tinha muito espìrito, e ha d'elle anecdotas engraçadas. Esta por exemplo:
Já elle se achava estabelecido na sua propriedade do Loge; mas, logo que ao porto chêgava navio de guerra Portuguez, ia a bordo fazer offerecimentos aos officiaes; que de genio era franco.
Um dia que elle fôra a bordo, o commandante pediu-lhe um macaco. "¿Quantos quizér?" lhe respondeu Jacintho; "mande ámanhã um escalér, pelo Loge até minha casa, buscal-os."
No dia seguinte, um escalér, tripulado por seis homens, encostava ao muro do jardim de Jacintho. Fêz elle subir o escalér até dois kilòmetros mais, e chêgando á vertente de um monte coberto de gigantes baobabs, em cujos ramos horizontaes pulavam centos de macacos, disse aos marinheiros: "Tôdos estes macacos sam meus, vivem cá dentro da minha propriedade; tendes licença de apanhar quantos quizerdes e leval-os ao commandante."
Os marinheiros encaráram com os cimos elevadissimos das enormes àrvores, cujos troncos, de espantoso diàmetro, não lhes permitiam a subida; e depois de alguns vãos esfôrços, retiráram desanimados, perseguidos pêla grita e pêlas caretas da macacaria.
"Eu dei-lhos; se os não levam, não é culpa minha," dizia o Jacintho, rindo ás gargalhadas.
Visitei a propriedade, e uma cousa que me impressionou foi ver, que, màchinas, apparelhos, instrumentos, etc., tudo era de fàbrica Portugueza.
Nada Jacintho admitia que não fôsse Portuguez, e, custassem-lhe o dôbro, fazia elle fabricar em Lisboa tôdos os seus artigos, já para a agricultura, já para a industria.
A memoria d'esse homem obscuro--mais conhêcido pêlos disparates que dizia, do-que pêlas muitas cousas acertadas que fêz--dêve ser respeitada por tôdos os que se interessam pêlo desenvolvimento Africano; porque elle foi o homem que, nos modernos tempos, maior serviço fêz, para desenvolver a agricultura em colonia Portugueza, empregando n'isso a sua immensa fortuna, e trabalhando até ao seu ùltimo dia.
Na margem esquêrda do Loge, assenta outra propriedade agrìcula, tambem importante, pertencente ao S^{nr.} Augusto Garrido. Não tive tempo de a visitar, porque, no dia que ali passei, não pude esquivar-me aos muitos favores de Nicolao e tia Lina, e tudo o tempo foi pouco para admirar o que ali, no brejo agreste, a vontade do homem tinha feito.
No dia seguinte, chêgou a canhoneiraTâmega, e sube, indo a bordo, que se achava sem mantimentos, e com grande nùmero de praças doentes; motivo por que combinei com o commandante, o S^{nr.} Marques da Silva, esperal-o no Ambriz, em quanto ia a Loanda refrescar.
Três dias depois chêgou aTâmega de volta de Loanda; indo eu logo para bordo, com Avelino Fernandes, seguímos viagem no mesmo dia para o Zaire.
Eu tinha adoecido com uma bronchites aguda, de que felizmente melhorei logo que comêçou a viagem.
Subímos o Zaire até ao Porto da Lenha, onde desembarquei com Avelino Fernandes, que me apresentou aos seus amigos d'ali. Falei logo em carregadores. Disséram-me, que seria, talvêz, possivel obtel-os, se os chefes indìgenas me quizêssem auxiliar; mas que, o melhor meio para mim, era resgatar escravos, e em seguida contratal-os para o serviço que eu exigia.
Repugnou-me a idéa de comprar homens, embora fôsse para os libertar em seguida. E depois, ¿quem sabe se elles me quereriam acompanhar sendo livres?
Resolvi immediatamente não proceder d'este modo, embora não obtivêsse um só carregador ali.
Na casa em que estava sube que tinha chêgado a Boma, no dia 9, o grande explorador Stanley, que descera tudo o curso do Zaire. Stanley tinha seguido para Cabinda.
Voltei a bordo e combinei com o Commandante irmos a Cabinda offerecer os nossos serviços ao arrojado viajeiro. Partímos, e logo que ancorámos no porto, fui a terra, com Avelino Fernandes e alguns officiaes da canhoneira.
Foi commovido que apertei a mão de Stanley, homem de pequena estatura, que a meus olhos assumia proporções de vulto colossal.
Offereci-lhe os meus serviços, em nome do Governo Portuguez, e disse-lhe, que se quizêsse ir a Loanda, d'onde mais facilmente poderia obter transporte para a Europa, o Commandante Marques lhe offerecia transporte a elle e aos seus a bordo da canhoneira. Em nome do Governo Portuguez puz á sua disposição o dinheiro de que carecêsse.
Stanley respondeu-me com um vigoroso aperto-de-mão.
Os officiaes daTâmega confirmáram os meus offerecimentos em nome do seu Commandante.
Stanley aceitou, e desde esse momento, ficou a canhoneira á sua disposição.
Como bem se pôde calcular, eu e Avelino Fernandes não deixàvamos Stanley, e àvidos de ouvir a narração da sua viagem, o tempo que elle tinha preso, era por nós passado a questionar os seus homens.
No dia 19, os officiaes daTâmega déram um soberbo banquête ao intrèpido explorador, para o qual convidáram o Commandante Marques, Fernandes e a mim.
No dia 20, partímos para Loanda, levando a bordo tôda a comitiva de Stanley, que se compunha de 114 pessôas, entre ellas 12 mulhéres e algumas crianças.
Stanley, em Loanda, foi hospedar-se em minha casa; distincção a que eu fui muito sensivel, porque recusou, para isso, os muitos convites que têve, e com elles commodidades que eu não podia offerecer-lhe, n'uma casa onde tinha por mobilia os meus utensilios de viajeiro.
O Governador mandou logo comprimentar o ilustre Americano, e offereceu-lhe um banquête, a que assisti. De volta a casa, perguntei a Stanley, ¿qual a impressão que trazia do S^{nr.} Albuquerque? E elle disse-me apenas: "He is a very cold gentleman." ("É um cavalheiro mui frio.")
O Consul Americano, o S^{nr.} Newton, deu-nos um almôço, e muitos favores nos dispensou.
Haviam festas e banquêtes; mas, a 23 de Agôsto, ainda não tìnhamos um só carregador; e na noite do jantar offerecido a Stanley pêlo Governador, me repetira sua Excellencia, que não me seria possivel obtel-os, sôbre tudo em Loanda; mostrando-me a difficuldade em que se encontrara o Major Gorjão, que apenas tinha podido obter metade do nùmero de homens de queprecisava, para estudar a linha ferrovial do Cuanza.
É tempo de falar dos nossos projectos, segundo a lei, e as instrucções do Governo.
O Parlamento votara uma somma de 30 contos de réis para se estudarem as relações hydrogràphicas entre as bacias do Congo e Zambeze, e os paizes comprehendidos entre as Colònias Portuguezas de uma e outra costa d'Àfrica Austral.
Umas instrucções subsequentes indicavam mais particularmente o estudar-se o rio Cuango, nas suas relações com o Zaire; o estudo dos paizes comprehendidos entre as nascentes do Cuanza, Cunene, Cubango, até ao Zambeze superior; indicando, que, se possivel fôsse, deveria estudar-se o curso do Cunene.
O que fôra designado na lei do Parlamento, elaborada pêlo S^{nr.} Corvo, parece ao principioproblema vasto de mais para uma só expedição, e uma verba de trinta contos de réis; mas a lei foi bem redigida. O S^{nr.} Corvo sabía, que o viajante em Àfrica, não só nem sempre é senhor dos seus passos, mas tambem, que no seu caminho pôde encontrar um não-previsto problema, que julgue de importancia superior á do que lhe foi designado; e por isso deixou a maior latitude aos exploradores.
Quanto ás instrucções, fôram ellas mais restrictas, mas ainda assim, deixavam bastante largos os movimentos da expedição.
O ponto de entrada, como dependia essencialmente do logar onde obtivèssemos carregadores, ficou indeterminado.
Tìnhamos eu e Capello pensado em entrar por Loanda, seguir a leste, até encontrar o Cuango; descer este rio por dois graos; passarmos ao Cassibi, que intentàvamos descer até ao Zaire; e finalmente, reconhêcer o Zaire até á sua foz.
Com a chêgada de Stanley, tendo elle feito uma parte do trabalho que nós propunhamos fazer, e sôbre tudo a impossibilidade de obter carregadores em Loanda, tivémos de modificar completamente o nosso plano.
Decidímos, que fôsse eu ao Sul procurar carregadores em Benguella; e que, se ali os obtivêsse, entràssemos pêla foz do rio Cunene, subindo-o até ás suas nascentes; e depois seguìssemos com os nossos estudos para S.E., até ao Zambeze.
Como não podìamos ter grande confiança na gente que ajustàssemos, lembrámo-nos de pedir ao Governador um certo nùmero de soldados, que fôssem, por assim dizer, a escolta de vigia. Sua Excellencia accedeu e mandou saber aos regimentos, se alguns soldados nos quereriam acompanhar; porque, não sendo aquelle serviço regular, não podia compellir os soldados a irem.
Ficou, pois, decidido, que eu partisse para Benguella no vapor que no principio de Setembro devia chêgar de Lisboa.
N'esse vapor veio o Ivens, que pêla primeira vêz eu via. Sympàthico, ardente, dotado de grande verbosidade, e muito enthusiasmado pêlas viagens difficeis, depressa me ligou a elle a amizade. Narrámos-lhe tudo o que resolvêramos fazer, e as difficuldades que tìnhamos encontrado até então. Ivens concordou com-nosco, e ficou definitivamente resolvida a minha partida para Benguella, no dia 6.
Preparei-me logo para partir, e fui dar parte d'isso ao Governador.
Durante a minha ausencia os meus companheiros deviam preparar as bagagens, que estavam em grande desarranjo, com a nossa precipitada partida da Europa.
Cabe aqui contar um episodio que me aborreceu bastante; porque poderia ter feito, que Stanley julgasse do caracter meu e dos meus companheiros, differentemente do que o devia fazer.
No dia 5, ao almôço, conversàvamos eu, Capello, Ivens, Stanley e Avelino Fernandes, a respeito da escravatura, e mostràvamos a Stanley o espìrito das leis Portuguezas sôbre o infame tráfico; notando-lhe a falsidade de asserções de estrangeiros a nosso respeito; e a impossibilidade de fazer então escravos onde o Governo tinha força. Discorrìamos ácerca do assumpto, quando Capello têve de ir a Palacio falar ao Governador.
Voltou uma hora depois, e logo em seguida recebia Stanley uma carta official do S^{nr.} Albuquerque, a pedir que lhe certificasse, ¿se nas terras do seu governo se fazia escravatura? Stanley veio sorprendido
mostrar-me a carta, e não menos sorprendidos ficámos eu, os meus companheiros, e Avelino Fernandes. Effectivamente, a nossa conversação ao almôço, e aquella carta depois de um de nós ir a Palacio, pareceria ao illustre viajante uma comedia habilmente preparada.
Stanley podia certificar a sua Excellencia, que a bordo daTâmega, em minha casa, em casa de sua Excellencia, e na do Consul Newton, não tinha visto fazer escravatura. Fora d'isto, Stanley, como sua Excellencia muito bem sabía, só por informações nossas poderia falar, convivendo quasi exclusivamente com-nosco, e não tendo visitado ponto algum do paiz governado pêlo S^{nr.} Albuquerque. Era querer o S^{nr.} Governador viesse Stanley a pagar caro um jantar e os seus favores, pedir-lhe um certificado que elle Stanley nunca deveria ter passado.
Stanley, creio eu, fêz-nos a justiça de pensar que èramos estranhos áquella carta.
No dia 6, parti para Benguella, levando cartas do S^{nr.} José Maria do Prado para alguns particulares, e nem uma recommendação para o Governador do Districto, que eu não conhecia.
Ia outra vêz á busca de carregadores, que eu, Portuguez, não tinha podido obter em Loanda, e que, 4 mezes depois, tinha ali obtido um estrangeiro, o explorador Schutt, que não encontrou as menores difficuldades, para seguir o primeiro caminho que nós tìnhamos tencionado seguir.
Em viagem conheci um passageiro que me disse ser possivel obter alguns carregadores em Nôvo Redondo, e que se comprometteu a contratar ali uns 20 ou 30.
Foi já um pouco animado com esta promessa, que chêguei a Benguella, no dia 7 á noite; e ainda que levava cartas de recommendação para alguns negociantes, fui procurar o Governador, e pedir-lhe hospedagem.