Читать книгу Como eu atravessei Àfrica do Atlantico ao mar Indico, volume primeiro - Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto - Страница 37

AINDA EM BUSCA DE CARREGADORES.

Оглавление

Índice de conteúdo


O Governador, Alfredo Pereira de Mello--A casa doGovernador--Cousas de que não tem culpa o Governo da Metròpoli--Oque é Benguella--O commercio--Sou roubado--Outro roubo--A Catumbela--Obtenho carregadores--Chêgada de Capello e Ivens--Nôvaalteração de itinerario--Outra difficuldade--Silva Porto, o velhosertanejo--Apparecem nôvos obstàculos--O Capello vai ao Dombe--Partida--O que é o Dombe--Nôvas difficuldades--Partimosemfim.


Alfredo Pereira de Mello,[1] Governador de Benguella, ao ouvir o meu pedido de hospedagem, mostrou um embaraço que percebi, e disse-me, que não tinha meio de me receber em sua casa. Sorprendeu-me o caso, sabendo eu que o Governador era bizarro de genio e de natureza franco. Tive convites, logo á minha chegada, já de Antonio Ferreira Marques, já de Cauchoix; mas persisti no intento de hospedar-me em casa do Governador. Elle disse-me, que não tinha cama a offerecer-me, e eu mostrei-lhe a minha cama de viagem; porque fui logo pondo em casa d'elle a minha bagagem. Disse-me, que não tinha quarto; apontei-lhe para um canto da sala em que estàvamos, onde ficaria òptimamente. Não havia mais que dizer, e fiquei. Aguçava-me a curiosidade a resistencia do Governador em negar-me a hospitalidade que pedia; mas cêdo desvendei o misterio. Alfredo Pereira de Mello era homem nôvo, ainda que tinha já uma patente superior na armada. Sympàthico e intelligente, é estimado por tôdos aquelles que o conhêcem de perto; porque a uma finissima educação, reune grande rectidão de caracter, e a energía peculiár a tudo bom marinheiro. Serviu na marinha Ingleza, e tem de viagens larga pràtica. Vio as Amèricas, e antes de ir para Àfrica como Ajudante-de-Campo do Governador Andrade, tinha visitado a India, a China e o Japão. O Governador, que já me conhêcia de nome, ao ouvir o meu pedido, esquèceu que tinha diante de si o explorador, para só se lembrar do homem habituado a viver no meio do luxo e das commodidades. Pereira de Mello têve vergonha de hospedar-me. Um Governador de Benguella, se é recto e probo, vive mesquinhamente com a paga que recebe. A casa do governo é arrendada. A mobilia, um pouco menos de modesta, guarnece a sala e um quarto. Na sala, destoa da mobilia, ricamente amoldurado, um retrato d'El-Rei, o melhor que tenho visto. E com-tudo a este porto, v[~e]m repetidas vêzes navios de guerra estrangeiros, cujos officiaes visitam o Governador, regalam-n-o a bordo; e elle nem um copo d'àgua lhes pôde offerecer em sua casa, porque a prêta ou o muleque tem de trazer o côpo n'um prato velho. O serviço de mesa era, creio eu, a espada de Damocles suspensa sôbre a cabêça de Pereira de Mello, ao ouvir a minha teimozía em ficar. Não tinha razão. O asseio que presidía a tudo, suppría o vidrado da louça gasto com o tempo, e os manjares simples, mas bem cozinhados, avivavam o appetite já derrancado pêlos ares Africanos; e não se offenda o cozinheiro do Hotel Central em Lisboa, se eu lhe dizer, que comi melhór em casa do Governador de Benguella do que comia dos seus opìparos manjares, ainda que a prêta Conceição, cozinheira do Governador, nunca ouvio falar do heroe das caçarolas, o cèlebre Brillat-Savarin. Pereira de Mello, logo ao primeiro dia de convivencia, abrio-me o seu coração, mostrando-me a menos que singeleza da sua vida interior. Três officios dirigidos ao Governo da Provincia, em que pedia autorização para fazer algumas reformas caseiras, tinham ficado sem resposta. Isto não é de estranhar, porque foi sempre assim. Em um copiador de correspondencia, que existe nos archivos do Governo de Benguella, li eu uns officios datados de 1790, em que o Governador de então já se queixava a El-Rei das mesmas faltas; por a ellas lhe não dar remedio o Governador Geral da Provincia, e entre outras cousas que pede com urgencia, figuram os reparos para duas peças de bronze que designa, e que ainda hôje os carecem. Sam as mesmas de que fala Cameron; o que elle vai saber agora é, que os reparos já fôram encommendados e não podem tardar em chegar; porque, sendo a encommenda d'elles feita em 1790, dêve estar quasi concluida a sua construcção. Benguella é uma bonita cidade, que se estende desde a praia do Atlàntico até ao sopé das montanhas que formam o primeiro degrao do planalto da Àfrica tropical. É cercada de uma espessa floresta, a Mata do Cavaco, ainda hoje povoada de feras; e isso não admira, que os Portuguezes, em geral, de caçadores não t[~e]m manhas. As habitações dos Europêos occupam uma grande àrea, porque todas as casas t[~e]m grandes quintaes e dependencias. Os quintaes sam cuidados; produzem todas as hortaliças da Europa, e muitos frutos tropicaes. Vastos pàteos cercados de alpendres servem para dar guarida ás grandes caravanas que do sertão descem á costa em viagem de tràfico, e que repousam três dias na casa onde effeituam as permutações. Um rio, que na estação estía apenas é larga fita de àrea branca, que se desenrola das montanhas ao mar, a travez da floresta do Cavaco, é ainda assim a grande fonte de Benguella, que os poços ali cavados dam àgua boa philtrada pêlas àreas calcàreas. Nas ruas da cidade, largas e direitas, crecem dois renques de àrvores, pela maior parte figueiras sycòmoros, de pouco arraigadas, e por isso ainda pequenas. As praças sam vastas, e em uma ajardinada, crescem bonitas plantas de vistoso aspecto. As casas, todas terreas, sam construidas de adôbes, e os pavimentos sam, em umas de tijolos, e de madeira em outras. A alfàndega é bom edificio, recentemente construido, e tem vastos armazens para as mercadorias do tràfico. Esta alfàndega, e o largo ajardinado, como outros melhoramentos de Benguella, fôram de um Governador, Leite Mendes, que de si deixou rasto. Uma ponte magnìfica de architraves de ferro, creio que encommendada pêlo mesmo Leite Mendes, mas muito posteriormente montada pêlo Governador Teixeira da Silva, é guarnecida por dois guindastes e carrís, por onde, em vagonetes, se transportam as mercadorias das lanchas á alfàndega. Eu aqui commetti um erro de grammàtica, escrevendo o verbo transportar no presente do indicativo, quando no condicional é que era. Transportariam, se houvesse pessôal para isso; mas não transportam, porque o não ha. Tem a cidade um templo decente, e um cemiterio bem collocado e murado. A povoação Europêa é cercada, por todos os lados, desenzalas, ou povoações de prêtos, e mesmo entre a povoação branca ha pequenas senzalas, em quintaes abandonados. O seu aspecto geral é agradavel e aceiado. Tem Benguella má fama entre as terras Portuguezas de Àfrica; e supõem muitos, ser aquillo um paiz infecto, que exhala de miasmàticos pàntanos a peste, e com a peste a morte. Não é assim. Eu não conhêci Benguella como ella fôra em tempos passados; mas hôje, não é nem melhor nem peior do que outros muitos pontos d'Àfrica. O aceio e as plantações de arvoredo, de certo t[~e]m. modificado muito as suas anteriores condições hygiènicas, e com uma pouca de boa vontade, não seria difficil o seu saneamento; o que estou certo se fará, porque não pôde deixar de merecer verdadeira attenção um ponto de tão subida importancia commercial, e em facil contacto com tão ricas terras nos sertões. Os principaes productos que alimentam o commercio de Benguella sam cêra, marfim, borracha e urzella, que chêgam á cidade trazidos pêlas caravanas dos sertões. Estas caravanas sam de duas espècies. Umas, dirigidas por agentes das casas commerciaes, trazem ás mesmas casas que os despacham os productos do seu tràfico no interior; outras, exclusivamente compostas de gentio, descem a negociar por canta propria, onde melhor ganho encontram. O tràfico com o gentío faz-se por permutação directa do gènero por fazenda de algodão, branco, riscado ou pintado. Os outros productos Europêos sam objecto de uma segunda permutação pêla fazenda recebida; e assim, depois da primeira troca do marfim ou cêra pelo algodão, é este trocado por armas, pòlvora, àgua-ardente, missanga, etc., á vontade do comprador; porque a fazenda de algodão é, por assim dizer, a moeda corrente n'este tràfico. O commercio está entre mãos de Europêos e crioulos, e felizmente já ali encontrámos muitos d'esses rapazes que, aventurosos, deixam patria e familia, para ir em terras longinquas buscar fortuna. Alguns deportados de menor importancia tambem negociam, já por conta propria, já como empregados de casa alheia. Os maiores criminosos do Reino, os condenados por tôda a vida, sam deportados para Benguella, do que resulta, encontrar-se ali quantidade de patifes, de que é bom resguardar-se; não os confundindo com a gente digna e capaz, que a ha. A policia é confiada á fôrça militar, que um dos regimentos destaca para Benguella; sendo que de Benguella ainda sam espalhadas differentes fôrças nos concêlhos do interior; desfalcando a guarnição da cidade, já de si pequena. Nós temos dois exèrcitos, um na Metròpoli, outro nas colonias, que nenhuma relação t[~e]m entre si. O nosso exèrcito da Metròpoli é bom, porque o Portuguez é bom soldado; o nosso exèrcito das colonias é mao, porque o prêto é mao soldado; e os brancos que ali servem de mistura com prêtos, sam peiores ainda do que estes. Deportados por crimes que os excluíram da sociedade, fazendo-lhes perder na Europa o fôro de cidadãos, vam desempenhar em Àfrica o posto nobre do soldado; sendo a nossa autonomía Africana, e a segurança pùblica e particular, confiada á defeza de homens, que dam por garantía um detestavel passado. Dahi as contìnuas scenas de caracter vergonhoso que se presenceiam ali. Durante a minha permanencia em Benguella, houve um grande roubo com arrombamento, no cofre militar. O Governador houve-se com a maior energía na maneira porque procedeu para descobrimento dos culpados, sendo muito coadjuvado pêlo seu Secretario, o Capitão Barata, que conseguio descobrir os ladrões, e haver o dinheiro roubado. Fôra o roubo planeado pêlo proprio sargento do destacamento, e levado a effeito por elle e alguns soldados!!! Se o nosso exèrcito Metropolitano não se presta á censura do homem mais pichoso, as nossas fôrças coloniaes sam vìctimas das merecidas chufas de tôdos os estrangeiros, que as observam. Por mais que tenha cogitado, nunca pôde attingir ao prèstimo de tal exèrcito em nossas colonias, que para policia não serve; servindo menos para a guerra, que da minha lembrança tenho visto ser feita por côrpos voluntarios, levantados no reino, e que àlém vam servir por certo praso. Hôje mesmo, em Lisboa, três batalhões estam sempre prontos a marchar para as colonias, e já lá t[~e]m ido; o que prova sabermos nós, que o ter exèrcito no ultramar, tal como elle é, não passa de velha costumeira. Na noite da minha chegada a Benguella, fiz o conhêcimento do Juiz de Direito Caldeira, que se associou ao Governador para me certificar, que, como elle, empregaria tôda a sua influencia para que eu não tivêsse vindo de balde a Benguella, e assim o fêz. O Governador convocou os moradores importantes a uma reunião em sua casa, e expondo-lhes os motivos da minha viagem, e o meu projectado itinerario, pediu-lhes que o coadjuvâssem na empresa de arranjar carregadores; para que eu podêsse levar a cabo a expedição. Todos assim o prometêram. O Governador Pereira de Mello, e o Juiz Caldeira, fôram incansaveis, e no dia 17, dia em que este ùltimo se retirou para Lisboa, tinha eu o nùmero de carregadores que pedira, cincoenta, que, com trinta esperados de Nôvo Redondo, prefaziam um total de oitenta; tantos quantos eu havia julgado precisos para subir da foz do Cunene ao Bihé. O velho sertanejo, Silva Porto, encarregara-se de fazer transportar ao Bihé o grôsso das bagagens, que nós encontrarìamos n'aquelle ponto; onde deverìamos contratar mais carregadores para seguir ávante. N'esse dia mudei eu para a casa que antes occupava o juiz, continuando a ir jantar com o Governador, ou com Antonio Ferreira Marques, da Casa Ferreira e Gonçalves, que porfiavam em obsequiar-me. No dia seguinte, um prêto meu serviçal furtou-me uns 75 mil réis, e desappareceu, sem que d'elle mais se soubesse. A 19 chegáram os meus companheiros na canhoneiraTâmega, e n'esse mesmo dia resolveu-se, que não irìamos á foz do Cunene, mas sim entraríamos directamente ao Bihé. Esta nôva resolução que tomámos, alterava o que havia contratado com os carregadores, e àlém d'isso, a gente de Benguella, que, transportada a paiz distante, não pensaría em desertar, não me inspirava garantía, viajando logo no comêço em paiz de que conhêcia a língua e os costumes. Comêçou nôva campanha. Eu tinha presentes as narrações de Cameron e Stanley a respeito dos embaraços causados por deserções, e até as do proprio Livingstone, que foi abandonado por trinta homens na viagem de Tete com o D^{or.} Kirk. Logo depois da chêgada dos meus companheiros, combinámos em ser o Ivens encarregado dos trabalhos geográphicos, o Capello de Meteorologia e Sciencias Naturaes, e eu do pessôal auxiliar da expedição, coadjuvando-nos mutuamente. Assim, pois, tive de me pôr logo em campo, e o primeiro passo que dei, foi ir tomar consêlho de Silva Porto. Narrei-lhe a nôva decisão que havìamos tomado, de seguir directamente ao Bihé, e expuz-lhe o meu embaraço. Silva Porto veio a Benguella comigo, pois que a sua casa da Bemposta dista 6 kilòmetros da cidade, e precorrémos as casas onde haviam caravanas de Bailundos, sem que elles quizêssem annuir a levar as cargas ao Bihé. Á casa Cauchoix tinha chêgado uma grande caravana, e este cavalheiro chêgou a offerecer uma avultada gratificação ao chefe, e paga dupla aos carregadores, se quizêssem conduzir as nossas bagagens, mas nada conseguío. Cabe aqui narrar um facto muito curioso. Os Bihenos sam os primeiros viajantes d'Àfrica, e nenhum outro pôvo estende mais longe as suas correrias, nem se lhe iguala em arrojo e robustez de caminheiros; mas os Bihenos viajam só do Bihé para o interior como assalariados; e se de maravilha v[~e]m á costa, é por conta propria. Os Bailundos alugam os seus serviços entre a costa e o Bihé, e não vam ao interior para leste; mas ao norte estendem suas viagens até ao Dondo e Loanda. Assim, pois, os negociantes sertanejos fazem transportar as mercadorias de Benguella ao Bihé por Bailundos, e d'ali aos pontos remotos do interior por Bihenos, que voltam, com os productos permutados, ao Bihé. D'este ponto á costa tornam a servir-se dos Bailundos. Depois de informado d'isto, só me restava mandar assalariar Bailundos, para me virem buscar as cargas; e d'isso se encarregou Silva Porto, despachando logo cinco prêtos ao Bailundo, a ir buscar a gente. O velho sertanejo disse-me logo, que elles teriam muita demora, porque os enviados levavam 15 dias a chêgar ao paiz, e outro tanto tempo, pêlo menos, gastariam a reunir os carregadores, e estes, 15 dias para vir; fazendo uma somma de 45 dias; afiançando-me elle, que antes não os teria. Nós estàvamos em fins de Setembro, e por isso só poderìamos partir por meado de Novembro.[2] Vim participar isto aos meus companheiros, e depois de conferenciar com elles, resolvémos não perder tanto tempo em Benguella; e entregando as cargas a Silva Porto, para que nol-as enviasse pelos Bailundos, partirmos immediatamente com as cargas indispensaveis, indo esperar no Bihé; tempo que aproveitarìamos no arranjar de carregadores ali para seguir ávante. Dos carregadores contratados em Benguella apenas uns 30 mereciam alguma confiança para seguir tal caminho; e estes, com 36 de Nôvo Redondo, faziam um total de 66 homens. Tìnhamos, àlém d'isso, 14 soldados; os meus muleques pequenos de serviço; uns Cabindas de serviço de Capello, e Ivens; e 2 chefes prêtos, um contratado por mim na Catumbella, o prêto Barros, e outro por Capello, em Nôvo Redondo, o Catão. Em tôda esta gente não tìnhamos um só homem de confiança. Tratámos de separar as cargas julgadas indispensaveis, e conhêcémos que eram 87; isto é, tìnhamos 21 cargas mais do que carregadores. Foi de balde que trabalhei para os haver, não me foi possivel obter um só. Os prêtos, não comprehendendo o que ìamos fazer, ao sertão, estavam receiosos, e com a sua desconfiança natural, imaginavam loucuras e recusavam-se. Chêgou o fim de Outubro sem nada termos adiantado. Resolvi, por consêlho de Silva Porto, ir ao Dombe, experimentar se os Mundombes faríam menos difficuldades, do que a gente de Benguella; mas, sentindo-me incommodado, pedi ao Capello ali fôsse por mim. No dia 29, partio o Capello, e voltou no dia 3 de Novembro. Nada fêz. Os Mundombes prestam-se com facilidade a ir a Quilengues por caminho conhêcido d'elles; mas, fora d'isso, não fazem outras viagens; e recusáram as pagas avultadas que lhes offerecìamos para irem ao Bihé. Tornava-se necessario tomar uma resolução, e essa foi logo tomada; seguirìamos sempre para o Bihé, mas tomarìamos por Quillenges e Caconda. O Governador Pereira de Mello deu logo ordem ao chefe do Dombe, que tivesse prontos 50 carregadores, para seguirem com-nosco para Quillengues. Silva Porto encarregou-se das cargas que deviam ser mandadas ao Bihé, e eram umas 400. Poz o Governador á nossa disposição uma lancha, para transportar por mar ao Cuio (Dombe Grande) as cargas que d'ali deviam ser carregadas até Quillenges, e alguns carregadores de Benguella que estavam doentes. No dia 11 de Novembro, estàvamos prontos a deixar a costa, e fixámos a partida para o dia 12. Nesse dia fugíram 4 carregadores de Nôvo Redondo, e no seguinte 5 de Benguella. Emfim, no dia 12 deixàvamos a Cidade, depois das mais cordiaes despedidas dos amigos, que se reuníram para nos dizer adeos. Pouco antes tinha eu ido á praia, e por muito tempo tive os olhos fixos na vastidão do Atlàntico, d'esse mar enorme que ia perder de vista; e mal cogitava então, que só o volveria a ver dois annos depois, na França, em Bordeos. Não sei se a outros tem acontecido o mesmo; eu, no momento da partida, senti uma pungente mágoa, uma indefinivel saudade, uma dôr profunda, que me produzíram como que uma embriaguez, e confesso que não tenho muito a consciencia de ter deixado Benguella. A bandeira das Quinas estava desenrolada, e afastavase da cidade ao passo cadenciado da caravana; seguí-a. No dia 13, chegàvamos ao Dombe, tendo feito uma jornada de 64 kilòmetros. Tìnhamos com-nosco 69 pessôas, e seis jumentos, que fôram, homens e burros, alojados na fortaleza. Nós três, com os nossos muleques de serviço, fomos obsequiosamente hospedados em casa de Manuel Antonio de Santos Reis, distincto cavalheiro que porfiou em obsequiar-nos. Dois dias depois, chegáram as cargas que tinham vindo por mar, e inventariando tudo, conhêci, que para seu transporte precisava de 100 homens, àlém dos effectivos que comigo tinha. Isto proveio de termos abusado da facilidade que nos offereceu a lancha, mettendo a bordo mais cargas do que tìnhamos julgado absolutamente necessarias. Decidímos partir a 18, depois de recebermos cartas da Europa, porque o paquete, de costume, está em Benguella a 14; mas a 18 nem o vapor tinha ainda chegado, nem o chefe tinha tambem assalariado um só homem. A 21 chêgou a mala, mas de gente só tìnhamos a trazida de Benguella. O chefe declarou-nos, que no dia 26 poderìamos partir; mas, precisando nós de 100 homens, apenas nos mandou n'esse dia 19. No seguinte dia aparecêram mais 27; e eu, receioso que elles viessem a debandar se os fizesse esperar, despachei-os logo para Quillengues, acompanhados por dois soldados dos que comigo tinha. O chefe declara-me que lhe é impossivel conseguir mais gente. Faço reunir na fortaleza os três Sobas do Dombe, no dia 28, e fui eu mesmo tratar com elles. Sam três typos magnìficos. Um chama-se Brito, nome que tomou de um dos Governadores de Benguella, que o restaurou no poder; outro, Bahita; o terceiro é Batara. Os meus companheiros perdem o assistir a esta scena joco-seria, porque desde o dia 24 estam com febre. O Soba Brito apresenta-se com três saias de chita, pintada de ramageus, muito enxovalhadas; veste uma farda de capitão de infanteria, desabotoada, deixando ver o peito nú, porque camisa não usa; e na cabêça, sôbre um barrete de lã vermelha, põe nobremente um chapéo armado de estado-maiór. O Bahita traja saias de lã de vistosas côres, uma rica farda de Par do Reino, quasi nôva, e na cabêça, sôbre o indispensavel barrete, uma barretina de caçadores 5. O Batara está literalmente coberto de andrajos, e traz á cinta um espadão enorme. Estes illustres e graves personagens estam rodeados dos séculos e altos dignitarios das suas negras côrtes, que tomam assento no chão em torno da cadeira do soberano. O Bahita era acompanhado de um menestrel, que tirava de uma marimba, monòtona toada. Esta marimba é formada de dois paos de 1 metro de comprido, ligeiramente curvos, em que assentam em cordas de tripa taboinhas pequenas de madeira, cada uma das quaes é uma nota da escala. O som é reforçado por uma fila de cabaças collocadas inferiormente, sendo a que corresponde á nota mais baixa da capacidade de 3 a 4 litros, e á mais alta 3 a 4 decilitros. Os Sobas portáram-se com grande seriedade, e eu fingi tambem que os tamava a sério. Depois de me prometterem carregadores, viéram acompanhar-me a casa, que distava uns dois kilòmetros da fortaleza; e como eu desse uma garrafa de àgua-ardente a cada um, mandáram elles dançar a sua fidalgaria, e o Bahita mandou entrar na dança umas raparigas que haviam ficado de parte. Eu pedi-lhes que dançassem elles; mas respondéram-me, que a sua dignidade lh'o não permittia; sendo isso contra as pragmàticas estabelecidas. Eu ardia em desejo de ver o Bahita dançando, de saias e farda de Par; e conhêcedor do imperio da àgua-ardente nos prêtos, mandei dar outra garrafa aos sobas. Foi o bastante. Atropeláram as suas leis, e eil-os saltando em brutesça dança no meio do seu pôvo, que enthusiasmado por tal honra, redobra de contorsões e momices, que chegam a atingir o delirio. O Bahita é magnìfico, e com certeza o typo do rei Bobeche foi creado sobre este molde. Fala continuamente em mandar cortar cabêças, sentenças estas que os seus escutam com a maior submissão, mas de que interiormente se riem, porque bem sabem o Governo Portuguez lh'o não consente. O Dombe Grande é um fertilissimo valle, que se estende primeiro do Sul ao N., e depois a Oeste, quasi em àngulo recto, até ao mar. É enquadrado por dois systemas de montanhas, um por oeste, que borda a costa, e outro por leste, em cujo sopé corre o rioDombe,Coporolo, ouQuiporolo, e até riode S. Francisco--que todos estes nomes tem.


Figura 1.--Mulhéres Mundombes, vendedeiras de carvão.

(De uma photographia do pharmaceutico Monteiro.)

É rio que de inverno traz muita àgua, mas de verão é sêco; sendo que, mesmo nas maiores estiagens, àgua se encontra cavando poços; o que acontece em tudo o valle do Dombe, onde não é preciso profundar mais de 3 metros para a obter. Junto das montanhas de Oeste na parte em que o valle se estende N. S., ha uma lagôa, de 50 metros de largo por 1 kilòmetro de extenção, e da forma de S. Esta lagôa é curiosa, porque não é formada por depòsitos pluviaes, mas sim alimentada por uma forte nascente subterranea, por nunca alterar o seu nivel, e produzir infiltrações, que, um kilòmetro abaixo, vam formar nascentes, que sam aproveitadas na rega de uma propriedade. Dizem que tem peixe bagre, tainha e muitos crocodilos.


Tenho-a visitado muitas vêzes, e nunca vi ali crocodilos ou peixe; mas é certo que os ha, porque m'o afiançou o meu hospedeiro, dizendo-me mesmo, que sam muito vorazes; e que, tendo sido, em 1876, a sua propriedade atacada por um bando de salteadores de Quilengues, estes, rechaçados pêlos seus prêtos, tentáram na fuga atravessar a nado a lagôa, não logrando um só atingir á outra margem, porque tôdos fôram prêsa dos vorazes amphibios.


Nas montanhas de oeste junto á lagôa, montanhas formadas de carbonato calcàreo e algum sulfato de cal, existem algumas grutas, uma das quaes nos afiançou o nosso hospedeiro, nunca ter sido visitada, ser enorme, e parecer, tanto quanto por fóra se podia observar, que contém extensas galerias.


Fomos visital-a, eu, Capello, e o nosso hospedeiro Reis, e verificámos não ter ella merecimento.


É um salão pròximamente circular, de 14 metros de diàmetro, architectado pêla natureza na immensa mole de calcàreo, que forma a montanha. Parece ser guarida habitual de feras, que o dá a entender o ar saturado do fedôr almiscarado de certos animaes, bem como as traças de leão impressas no pó impalpavel que cobre o chão, onde encontrámos alguns espinhos do Hystrix Africano.


No valle do Dombe ha algumas feitorias agrìcolas importantes, sendo as principaes a do Loache, a de Paula Barboza, e a do nosso hospedeiro Santos Reis. Esta ùltima conta apenas três annos de existencia, e produz cana de açucar de que extrahe para cima de 40 mil litros de àgua-ardente; e note-se, que o terreno era antes mato, e foi desbravado ha só três annos. É uma feitoria que começa, tudo ali está ainda em construcção; mas pêlo resultado já obtido se pôde aquilatar a riqueza do solo ali.


Tudo o valle é cultivado de mandioca, pêlos indìgenas, e tão fertil é, que depois de três annos de falta de chuva, não tem deixado de ter producção regular, exportando cerca de 70 mil decalitros de farinha por anno. É o celeiro de Benguella. Os indìgenas ali não permutam as fazendas, mas sim vendem a dinheiro, cujo valor já conhêcem.


Figura 2.--Mulhéres e Donzellas, Mundombes. (De uma photo. de Monteiro.)

A demora que ali tivémos foi prejudicialissima á ordem, e disciplina da minha gente.


Tôdos os dias apresentavam nôvas exigencias, tôdos os dias levantavam querellas entre si; e eu não podia ser demasiado severo, de receio que me desertassem tôdos.


Vendéram os pannos para comprar àgua-ardente, e chegáram a vender as rações de comida para se embriagarem.


Os soldados eram os peiores. Os sobas não mandáram gente, e eu principiei a ver a repetição das scenas de Benguella. Não podìamos seguir.


Figura 3.--Homens Mundombes. (De uma photo. de Monteiro.)

No dia 1 de Dezembro, chegáram ao Dombe 30 homens mandados de Quillengues pêlo chefe militar, a buscar bagagem sua; mas eu lancei mão d'elles, e decidi com os meus companheiros partirmos no dia 4.


Tinha havido mais três deserções, dois homens de Nôvo Redondo e um de Benguella.


Os nossos burros eram muito manhosos, e não havia ensinal-os; todavia resolvêmos conserval-os.



Como eu atravessei Àfrica do Atlantico ao mar Indico, volume primeiro

Подняться наверх