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Capítulo Um
ОглавлениеQuatro semanas depois
Cynthia?
A voz atravessou o nevoeiro, arrancando-a da nuvem de sono que o corpo lhe pedia. Desejou dizer à voz para se ir embora, que era mais feliz a dormir e sem dor, mas a voz insistiu.
– Cynthia, o Will está aqui.
Qualquer coisa espicaçava a sua mente, uma sensação inquietante que a fazia franzir a testa cada vez que alguém dizia o seu nome. Mas só durava um instante e nunca tinha tempo para interpretar o que era.
– Talvez devesse vir mais tarde. Precisa de descansar – a voz grave do homem aproximou-a mais da sua consciência. Tinha aquele poder sobre ela desde a primeira vez que a ouvira. O seu corpo respondia a ele, contra a sua vontade.
– Não, está a fazer uma sesta. Querem que acorde, se mexa e participe em conversas.
– Para quê? Nem sabe quem somos.
– Dizem que pode recuperar a memória a qualquer momento – a voz da mulher pareceu irritada. – Falar-lhe é o melhor que podemos fazer para ajudá-la. Sei que é difícil, mas temos de tentar, todos nós. Cynthia, acorda, por favor.
Ela abriu os olhos e tentou focar. Primeiro viu as luzes fluorescentes, depois o rosto da mulher mais velha. Vasculhou na sua mente. Diziam que era a sua mãe, Pauline Dempsey. Era muito triste que nem sequer a mulher que lhe dera a vida tivesse deixado uma marca no seu cérebro.
Estava muito bonita. Tinha um lenço de flores no pescoço que combinava com o fato de calças azul e os seus olhos verdes. Quis levantar o braço para lhe mexer no lenço, mas a tala impediu-a. Sem saber porquê, tinha pensado que uma ligeira mudança de posição daria um ar mais moderno e favorecedor ao lenço.
– O Will está aqui, querida – Pauline carregou no botão para levantar a cabeceira da cama de hospital.
Ela passou a mão pelo cabelo e ajustou a tala para que o gesso lhe incomodasse menos. Quando se conseguiu endireitar, viu Will sentado nos pés da cama. Diziam que era o seu noivo. Quando olhava para aquele homem bonito e bem vestido, custava-lhe a crer. Tinha o cabelo castanho muito curto e traços angulosos e aristocráticos, exceto pelos lábios carnudos. Os olhos eram azuis, mas não sabia bem de que tom porque olhar diretamente para ele incomodava-a muito. Não sabia se pela forma como a observava e estudava, se pela falta de emoção que via no seu olhar.
Não sabia nada de nada mas, nas últimas semanas, tinha percebido que não gostava do seu namorado. Sentava-se sempre longe dela e observava-a com o sobrolho franzido; ou parecia desconfiado e confuso com o que dizia, ou indiferente em relação a ela e ao seu estado. Isso dava-lhe vontade de chorar, mas disfarçava. Assim que se inquietava um pouco, as enfermeiras vinham a correr com calmantes que lhe deixavam tudo dormente, até o coração.
Gostava de reparar na roupa das pessoas e como a combinavam, de modo que decidiu concentrar-se nisso. Ele estava com um fato cinzento escuro, camisa azul e gravata de losangos. Dirigia um jornal e só podia visitá-la à hora de almoço ou depois do trabalho, exceto se tivesse reuniões. E tinha muitas.
Ou isso, ou era uma desculpa para não ir vê-la.
– Olá, Will – disse, mas não soou como queria. As múltiplas operações que tinham feito ao seu rosto estavam a sarar bem, mas ainda iam demorar a cicatrizar. Tinha perdido todos os dentes no acidente. Tinham-lhe implantado novos, mas sentia-os estranhos na boca. Embora já lhe tivessem tirado os pontos e tivesse baixado o inchaço, custava-lhe vocalizar.
– Deixo-vos sozinhos – disse Pauline. – Queres que te traga um café, Will?
– Não, estou bem, obrigado.
A sua mãe saiu, deixando-os sozinhos no grande quarto privado, reservado para pacientes VIP. Pelos vistos, ela era VIP porque a sua família tinha feito um donativo chorudo uns anos antes.
– Como estás hoje, Cynthia?
– Bastante bem, obrigado. Como estás tu?
– Estou bem – Will franziu a testa um momento. – Ocupado, como sempre.
– Pareces cansado – disse ela. Não sabia que aspeto tinha normalmente, mas estava com olheiras. – Dormes bem?
– Nem por isso – admitiu ele após uma breve pausa. – Tem sido num mês muito stressante.
– Precisavas de um bocadinho disto – disse ela, tocando no fio da via intravenosa. – Dormes dezasseis horas como um bebé, quer queiras quer não.
Ficou contente por ver que Will sorria. Era a primeira vez que via o seu sorriso desde que saíra do hospital. Desejou ouvi-lo a rir. Ele irradiava segurança e sexualidade; não duvidava que o seu riso devia ser muito sexy.
– Aposto que sim – disse ele, incomodado.
Ela nunca sabia o que dizer-lhe. Recebia visitas constantes de amigos e parentes, aos que juraria nunca ter visto na vida, mas nenhumas eram tão incómodas como as de Will. Quanto mais amável era, mais distante ele ficava, quase como se não esperasse que ela o tratasse bem.
– Tenho uma coisa para ti.
– A sério? – ela endireitou-se um pouco mais.
No início, tinham-lhe inundado o quarto de presentes. E continuavam a chegar ramos de flores da família e mesmo de desconhecidos que tinham lido a sua história nas notícias. Ser uma das três sobreviventes de um acidente de avião era digno de muitas manchetes.
– A companhia aérea ligou-me. Continuam a classificar os restos do avião e encontraram isto. A inscrição a laser do número de série do diamante levou-os a mim – tirou uma caixinha de veludo do bolso. Abriu-a e revelou um enorme anel de diamantes.
– É muito bonito.
Pela cara de Will, não era a resposta certa.
– É o teu anel de noivado.
Ela esteve prestes a desmanchar-se a rir, mas ao ver a sua expressão séria, conteve-se.
– O meu? – parecia-lhe absolutamente descabido ser dona de um anel como aquele. Observou Will a colocar-lhe o anel no dedo, na mão esquerda. Estava-lhe um pouco justo, mas tinha os dedos inchados por causa do braço partido. Olhou para o anel e sentiu uma familiaridade vaga. – A verdade é que sim, parece-me tê-lo visto antes – os médicos tinham pedido que comentasse tudo o que parecesse trazer-lhe alguma recordação.
– Isso é bom. É bom, se te é familiar é porque já o viste antes. Mandei-o limpar e analisar, mas queria trazer-te. Não é de estranhar que o perdesses no acidente. Tanto fazer dieta para o casamento, estava-te solto.
– E agora está-me demasiado apertado e pareço a derrotada de um combate de boxe – disse ela com uma careta que lhe provocou uma pontada de dor na bochecha.
– Não te preocupes, há tempo de sobra. Estamos em outubro. Em maio já deves estar recuperada.
– Em maio no Plaza – disse ela, sem saber por que se lembrava daquilo em concreto.
– Pouco a pouco deve ir voltando tudo – disse ele com um sorriso que os seus olhos não refletiam. Levantou-se e guardou a caixa no bolso. – Hoje à noite vou jantar com o Alex, de modo que será melhor ir-me embora.
Ela lembrava-se da visita de Alex na semana anterior. Era amigo de Will desde a escola, e um sedutor. Mesmo com o seu aspeto, tinha-lhe dito que era uma beldade e que, caso não estivessem noivos, a roubaria a Will. Mesmo que fosse mentira, ela agradecera o esforço.
– Divirtam-se. Acho que aqui devemos jantar frango de borracha com arroz.
Will riu-se suavemente e acariciou-lhe a mão.
– Vejo-te amanhã – disse.
Assim que a tocou, ela sentiu um arrepio familiar nas costas. Em vez de sentir dor, cada terminação nervosa do seu corpo reagiu com interesse. Involuntariamente, apertou-lhe a mão para prolongar a ligação que almejava.
O contacto com ele era melhor do que a morfina. O simples roçar dos dedos dele na pele fazia-a sentir-se viva e excitada. Era assim desde a primeira vez que ele lhe beijara o dorso da mão. Ainda que o seu cérebro não reconhecesse a imagem, o seu corpo reconhecia o seu amante.
Will olhou para a sua mão e depois para ela com uma curiosidade que a fez perguntar-se se ele sentia a mesma ligação. Então, percebeu que os seus olhos eram azul-acinzentado. Por um momento pareceram suaves e recetivos, como se a sua indiferença se dissolvesse, mas nesse preciso momento o som do seu telefone distraiu-o e afastou-se.
– Boa noite, Cynthia – disse, dirigindo-se à porta.
Assim que ele saiu, o quarto voltou a ficar frio e estéril como qualquer outro quarto de hospital, e ela sentiu-se mais sozinha do que nunca.
Alex saboreava a sua bebida do outro lado da mesa. Estivera em silêncio durante os dois primeiros pratos. Will apreciava a sua capacidade de estar em silêncio, sem forçar assuntos nem fazer conversa fiada. Sabia que o seu amigo entendia que tinha muitas coisas na cabeça e precisava de desfrutar do seu uísque escocês antes de poder falar.
Convidara Alex para jantar porque precisava de falar com alguém sincero. A maior parte das pessoas diziam-lhe o que queria ouvir. Mas Alex era uma das poucas pessoas que conhecia que tinha mais dinheiro do que ele, e não tinha papas na língua. Era um reconhecido playboy e Will não costumava pedir-lhe conselhos de tipo romântico, mas sabia que Alex iria dar-lhe a sua opinião clara com respeito a Cynthia.
A relação entre eles era um desastre. Umas semanas antes achara que não podia piorar, mas fora tentar ao diabo.
– Como está a Cynthia? – perguntou Alex finalmente.
– Melhor. Está a recuperar-se muito bem, mas continua sem se lembrar de nada.
– Incluindo a discussão?
– Sobretudo da discussão – Will suspirou.
Antes de Cynthia ter ido para Chicago, Will tinha-a confrontado com provas da sua infidelidade e tinha acabado o compromisso. Ela tinha-lhe dito que podiam falar e resolver aquilo quando voltasse, mas para ele já tinham acabado. O avião de Cynthia sofrera um acidente do qual ela, milagrosamente, escapara, mas tinha acordado com amnésia. Will achara cruel deixá-la sozinha e decidira esperar que se recuperasse e ir-se embora depois.
Aquela fora a ideia original. Mas a situação estava a complicar-se. Por isso tinha chamado Alex, para que o ajudasse a pôr as ideias no lugar.
– Já lhe disseste?
– Não. Hei de falar com ela quando lhe derem alta. Quase nunca estamos sozinhos no hospital, e não quero envolver os pais dela.
– Nunca mais voltou a ser a víbora frígida que todos conhecemos e amamos? – ironizou Alex.
Will abanou a cabeça. Uma parte dele desejava que o fosse. Então, poderia deixá-la sem se sentir culpado. Mas desde o acidente, parecia uma mulher diferente. Estava a custar-lhe adaptar-se às mudanças que via nela, e continuava à espera que começasse a ladrar ordens ou a criticar o pessoal do hospital. Mas nunca o fazia. Embora contrariado, devia admitir que cada vez desfrutava mais nas suas visitas.
– É como se tivesse sido raptada por extraterrestres e substituída por outra.
– Tenho que admitir que foi muito agradável quando a visitei no outro dia.
– Sim, eu sei. A cada vez que vou vê-la, observo com incredulidade que pergunta a toda a gente se estão bem e agradece a todos pela visitas e por lhe levarem coisas. É doce, considerada, engraçada... não se parece nada com a mulher que foi para Chicago.
– Até sorris quando falas dela – Alex inclinou-se para a frente com o sobrolho franzido. – As coisas mudaram mesmo a sério. E tu gostas – acusou.
– Sim. É mais agradável e gosto de estar com ela. Os médicos dizem que a sua amnésia, provavelmente, será temporária. Pode voltar à normalidade a qualquer momento. Recuso-me a investir na relação para acabar onde comecei.
– Provavelmente temporária pode significar possivelmente permanente. Talvez fique assim.
– Não interessa – Will abanou a cabeça. Típico de Alex animá-lo a arriscar. – Pode ser que ela não se lembre do que fez, mas eu lembro-me. Nunca mais vou ser capaz de voltar a confiar nela, e isso significa que acabámos.
– Ou esta poderia ser a tua segunda oportunidade. Se realmente está uma pessoa diferente, trata-a como se fosse. Não tenhas em conta um passado do qual não se lembra. Ainda perdes qualquer coisa fantástica.
Alex tinha dito precisamente aquilo que Will temia pensar. Estar com Cynthia era como conhecer uma mulher nova. Pensava nela quando tinha que concentrar-se no trabalho e quase corria para vê-la quando saía do escritório. Aquela tarde tinha sentido um arrepio inegável quando se tinham tocado. Não sabia se era por ela ter estado tão perto da morte ou se pela sua mudança de personalidade, mas parte dele queria seguir o conselho de Alex.
No entanto, ainda que não parecesse, a antiga Cynthia continuava dentro dela. Aquela mulher desagradável e infiel que tinha espezinhado os seus sentimentos, acabaria por vir ao de cima. Will tinha acabado com ela e não ia entregar o seu coração, a sua liberdade e mais anos da sua vida àquela relação.
Os médicos diziam que em breve poderia voltar para casa. Tinha a certeza de que Pauline e George iam querer que ficasse com eles na quinta, mas Will ia fazer questão de que voltasse para o loft que eles partilhavam para cuidar dela. Era o mais natural. Estaria mais perto do médico e estar rodeada das suas coisas podia ajudá-la.
E se com isso recuperasse a memória, poupava-se ao trabalho de ter que acabar com ela uma segunda vez.
«Quer trocar de lugar?».
As palavras ecoavam na sua mente. Os seus sonhos misturavam a realidade com a fantasia, e os calmantes ainda tornavam tudo mais confuso.
«O meu nome é Cynthia Dempsey».
Franziu a testa. Cynthia Dempsey... Gostava que parassem de chamá-la assim. Mas não sabia como queria que a chamassem... Se não era Cynthia Dempsey, não devia saber quem era?
E sabia. Tinha o seu nome na ponta da língua. Mas a explosão de um motor e o fogo tinham-no apagado da sua mente. Depois continuou aquela horrível sensação de queda livre em direção ao chão.
– Não!
Endireitou-se de repente. Tinha o coração tresloucado e estava ofegante. O monitor começou a apitar e rapidamente chegou uma enfermeira do turno de noite.
– Como está, senhorita Dempsey?
– Pare de chamar-me assim – respondeu ela, demasiado dormente para ter bons modos.
– Bom... Cynthia. Está bem?
Quando ligou a luz de noite, viu que era Gwen, a sua enfermeira favorita. Era uma rapariga do sul, pequenina e com o cabelo loiro platinado encaracolado e uma atitude positiva perante a vida.
– Sim – esfregou os olhos com a mão boa. Tive um pesadelo. Desculpe ter-lhe gritado.
– Não se preocupe – disse Gwen com um forte sotaque sulista. Desligou o alarme e comprovou o soro. – Muitos pacientes com trauma têm pesadelos. Quer que lhe dê alguma coisa para dormir?
– Não. Estou cansada de... de não me sentir eu mesma. Embora comece a perguntar-me se isto terá alguma coisa a ver com a medicação.
– Sofreu um grande trauma – Gwen sentou-se na beira da cama e deu-lhe uma palmadinha no joelho. – É possível que nunca volte a sentir-se como antes. Ou que, quando isso acontecer, não o saiba. Tente desfrutar de como se sente agora.
Cynthia decidiu aproveitar a única pessoa com a que podia falar sobre aquele tema. Will nunca iria compreender e para Pauline seria demasiado doloroso. A sua mãe passava horas no hospital, mostrando-lhe fotos e contando-lhe histórias, procurando a chave que pudesse abrir a porta da sua memória. Dizer-lhe que não se sentia ela mesma seria um insulto ao esforço de Pauline.
– Tudo me parece errado. As pessoas. A sua forma de me tratarem. Isto é, veja isto – tirou a mão da tala para lhe mostrar o anel de noivado.
– É lindo – disse Gwen educadamente, embora os seus olhos castanhos se tivessem aberto como pratos ao ver o enorme diamante.
– Deixe lá. Ambas sabemos que isto podia dar de comer a um país do terceiro mundo durante um ano inteiro.
– Provavelmente – concedeu a enfermeira.
– Isto não tem nada a ver comigo... Não me sinto uma rapariga de bairro de boas famílias que andei numa escola privada e sempre tive tudo o que queria... Sinto-me um peixe fora da água. Se esta era a minha vida, por que me parece tão longínqua? Como posso ser quem sou quando não sei quem era?
– Querida, esta conversa é demasiado profunda para se ter às três da manhã. Mas vou dar-lhe um conselho de peixe de Tennessee em águas de Manhattan: pare de se preocupar por quem era e seja você própria.
– Como é que faço isso?
– Para começar, pare de lutar. Quando sair deste quarto para iniciar a sua nova vida, aceite que é a Cynthia Dempsey. Depois, faça o que quiser. Se a nova Cynthia preferir um jogo de basebol a uma sinfonia, tudo bem. Se já não gosta de caviar e de vinho caro, coma um hamburguer e beba uma cerveja. Só você sabe quem quer ser agora. Não deixe que ninguém mude isso.
– Obrigada, Gwen – inclinou-se para ela e deu-lhe um abraço. – Dão-me alta manhã. O Will vai levar-me de volta para o nosso loft. Não sei o que me espera ali mas, se me apetecer uma cerveja e um hamburguer, posso telefonar-te?
– Claro que pode – Gwen sorriu e anotou o seu número de telefone no caderno que Cynthia usava para tomar notas. – E não se preocupe. Não posso imaginar um mau futuro se o Will Taylor fizer parte dele.
Cynthia sorriu. Oxalá Gwen tivesse razão.