Читать книгу A Primavera - Antonio Feliciano de Castilho - Страница 3

PROLOGO.

Оглавление

Índice de conteúdo

Não erão vãos os meus receios; acabo de visitar a Primavera, não ainda para lhe emendar as miudezas, mas para a conhecer por alto, e podê-la sentenciar no todo. Reconheci-a, mas demudada, mui outra da que a tinha deixado na graça, geito e amores; trocarão-ma os annos, trocando-me. Desama-la ainda não, mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero mal, he só porque lhe quiz muito bem, e foi minha; mas como ja me risquei de seu namorado, não hei de chamar-lhe formosa, que o não he, nem dissimular que sejão defeitos, muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive por perfeições e primores. Não ha remedio, prometti-me seu juiz, passará por onde houvéra de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder do seu preço, e eu do meu, consolemo-nos ambos d’esse pouco damno; ella por não receber de mim injustiça, eu com ter obedecido á consciencia, que tambem em letras a ha. Antes porem que entremos a contas e lhe formemos o summario, releva anticipar uma dúvida não leve, que se me pode pôr, e desfazer um reparo, que deixado a si pareceria de fôrça.

He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro inamavel por defeitos a seu proprio autor, não havia porque de novo o semear em público, antes importava pôr todos os meios para que o nunca mais vissem, nem d’elle se fizesse menção; que o contrario he faltar a toda a reverencia, que aos leitores se deve, dando-os por broncos para conhecer o máo; ou á caridade natural comsigo proprio, expondo-se sem fôrça de obrigação a menoscabos, se não injurias.

Não quero responder que em dar o que ha quando ou emquanto não ha melhor, ja o que o faz se ha de haver por desempenhado; nem que, para reo que sem tratos e sôlto confessa os delitos, sempre por bom direito se usou de misericordia; melhores me parecem do que estes, os meus fundamentos: e ei-los aqui.

Primeiro: que andando a Primavera ja impressa e corrente por muitas mãos, e não podendo ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la da memoria de muitos que a bem agazalharão, melhor arbitrio he, pois que tem de se conservar no mundo, renascer n’elle expurgada de muitos vicios da primeira impressão, e se a paciencia me acudir com o preciso valor, retocada no que pertence ao literario.

Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo vir a haver, moços que se dem a poetar, acontecerá que entre os mais livros portuguezes que ás mãos lhes cheguem, vão de envolta os meus (assim mo promette sua boa fortuna, que os livros a tem como os homens, e ás vezes os mais ruins muito melhor do que os bons): mãos de principiantes não sabem escolher, os amores, amenidades e branduras da Primavera cáem muito a gente moça, ir-se-hião traz o gosto, e beberião muitos defeitos; do que seria minha a culpa, se eu não procurasse agora arrancar boa parte d’elles, e contra os demais os não precavesse com honestas advertencias.

Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que fui, sou, e hei de ser, do que só pelo que sou; porque nascendo-nos o presente do passado, ainda que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem diverso, o futuro, o sermos só conhecidos pelo que somos não he sermos conhecidos. He pensamento que merece ser entendido. Alexandre Dumas o explicará. Sem pedir venia traduzo o passo, com quanto seja longo, certo de que o não parecerá.

—“A maior desgraça da crítica, ainda quando se não sae com ignorancias e velhacarias (diz elle no prologo da Catharina Howard) consiste em sentenciar uma Obra nova desmembrada do feixe literario cuja he parte: ahi está porque nunca se póde avaliar um livro com exacção antes da morte do autor; e mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido desde o primeiro até o ultimo, os dias, que para acabar seu edificio se lhe fazião mister; por quanto, se antes de tempo morreo, o monumento que traçára tem de ficar incompleto para sempre como a Sé de Colonia, e os homens mal justos para com elle ainda para alem da sepultura, lançar-lhe-hão á conta de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo vão por tapar, quando a morte de invejosa e apressada lhe veio atar as mãos, e ja talvez para se arrematar mais não faltava que uma só pedra: ora por aquelle vão, he que a crítica se mette e entra, quer o autor esteja vivo, quer defunto.”

“De trez idades se compoem a vida de quem nasceo fadado a dar de si produções, e em trez periodos se desparte: como couza alta e nobre que he, tem primeiramente sua base por onde se começa; depois um cume onde se chega; ultimamente la por dentro um motivo, tenção e fim particular para onde se torna a descer. Pelo que, he necessario que o homem tenha vivido todas estas trez idades e que o seu talento haja cursado estes trez periodos, para se poder avaliar aquelle talento no seu todo, aquelle homem na sua produção.”

“Primeira idade, quando a fantasia prevalece á rasão. A esta idade de viço pertencem as horas que tão despedidas voão dos vinte e cinco aos trinta e cinco. He o periodo para dever inventar Hamlet quem se chamar Shakespeare, o Cid quem tiver nome de Corneille, os Salteadores quem for Schiller.”

“Segunda idade, em que a fantasia e a rasão se embalanção, ajudando-se mutuamente, e vindo a formar das suas duas uma só força neutra. A esta idade vigorosa pertencem os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos quarenta e cinco. He o periodo em que os mesmos trez sujeitos produzem O Rei Lear, Cinna, Wallenstein.”

“Terceira idade, em que a rasão prevalece á imaginação. A esta idade de reflexão pertencem os annos que descem dos quarenta e cinco aos cincoenta e cinco. He o periodo em que elles compoem Ricardo III, Polyeuctes, Guilherme Tell.”

“Ora pergunto, ficarião completos Schiller sem Wallenstein e Guilherme Tell, Corneille sem Cinna e Polyeuctes, e Shakespeare sem O Rei Lear e Ricardo III?”

“Parece-me portanto que nunca devêra a crítica requerer de um poeta, senão as obras de sua idade; e bem sabemos nós como o faz ella sempre ao revez, sendo as obras que mais se empenha em querer extorquir de um engenho as dos annos que ainda não vingou, ou as dos outros annos que ja deixou transpostos. Pelo que toca a uma obra que vem condizendo com o periodo d’onde dimana, nunca a impertinencia dos juizes a dá por cabal: são uns Aristarchos sem paciencia, que acodem logo com a crítica a cada pedra de per si, ao passo que ainda se está guindando, sem advertirem que aquella pedra só assente e junta com as outras pedras he que ha de dar prova da traça e desenho geral do architéto: são como uns pomareiros esquipaticos, que não tomando em conta o inalteravel fio das quadras do anno, pedem fruta madura á primavera, frutos verdes ao verão, e ao outono flores.”—

Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa e claramente me decifrou, e me ajudou a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito ha que eu tomava de longe; uma verdade que eu andava adivinhando como por entre nevoas.

Ora pois, dos trez apontados motivos de determinação, foi este ultimo o de maior momento: quiz dar completo o meu retrato, menos o intellectual do que o moral, a quem desejasse conhecer-me: não podia omittir como feição o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella primeira idade, que dos vinte e cinco decorre até os trinta e cinco annos. A Primavera, escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de entrar encorporada na collecção das minhas Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que ficára outra, e por conseguinte falsa como feição. Tudo quanto era seu geito, seu pensar, seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se hão de perdoar gabos a quem sem disfarces nem dó se disciplina deante do Povo por peccados poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de bom, sem o que não tivera agradado a tanta gente. O por onde a lima pode e deve correr afoita e sem dó, são—as numerosas faltas de boa falla portugueza—desleixo de frase—e estiramento de períodos.

Quero-me explicar, não para os Mestres, sim para os novéis no officio de escrever, com os quaes particularmente converso nos meus prologos; e porque não havia eu repartir do fruto de minha tanta ou quanta experiencia com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la com seguir cursos de Bellas-letras que entre nós se não ensinão? Um dos maiores delitos literarios, e em que mais usualmente cáem os moços, he o desprezo de lingua e corréção; delito que per si basta para descontar muitos meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber sua lingua, diz Boileau, o autor mais divino nunca passará, por muito que faça, de máo escritor. He ella a ferramenta para este genero de lavor da alma; e quem poem as mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer, escolher e apontar bem os instrumentos de que se ha de valer, nem se pode mostrar bom artífice, nem merecer desculpa de o não ser.

Toda a Musa em creança padece dispepsia de versos, diabetes disséra quem se menos prezára de cortez com Divindades. Na primeira idade he costume, e por muitas rasões, das quaes não será a mais fraca a aversão ao trabalho, presumir-se antes de facilidade e presteza no escrever, do que de corréção e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro, querem que a penna lhes obedeça, como se ella podesse; forção-na, e dahi resulta que pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo, apparece cá fora frio, mesquinho, desengraçado; e maravilha-se o escrevedor quando a mesma couza que valentemente o agitava, em quanto em si a revolvia, depois de passada para o papel adormenta os ouvintes, e a elle proprio o desconsola. De todos os defeitos de autor, talvez se podesse affirmar que só este he verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, se os pensamentos e affetos de cada idade são della, e dessoão e descontentão a todas as outras, tem por si o serem d’ella, e como taes se defendem por conterem verdade e pintarem o homem; não assim a lingua, que em todas as idades he ou deve ser uma, não provando outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, e por bem do proximo direi com vergonha minha, que no que me ficou escrito d’essa quasi infancia poetica, as couzas nem me espantão nem me offendem, ainda quando as desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem de continuo caír as faces; e por isso que he escolho em que naufraguei tão desastradamente, o assignalo com tanta miudeza e teima; nem cançarei de o assignalar e accender-lhe em cima boa luz de farol, em quanto vir, como vejo, outros, que nem por idade se absolvem, esbarrar n’elle e perder-se a todas as horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem ás letras) vós que encetaes a mui ardua e perigosa vereda que pelas letras conduz á fama, seja qual fôr o genero de poesia para onde propendais, seja qual fôr o vosso não vulgar engenho, sejão quaes forem os louvores que os velhos na arte vos concedão, e os applausos com que as sociedades vos afoutem, não vos deis pressa de apparecer: os conselhos que Horacio vos deu, durão com toda a fôrça que a natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se compor de espaço, consultar os bons e peritos, guardar por nove annos, chamar, e tornar a chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita. O amor proprio nos persuade e impelle a apparecermos cedo, devia elle, se não fôra cego, ter-nos mão para nos não sairmos senão a horas;

A melhor fruta colhe-se mais tarde.

(F. R. Lobo.)

Muito mais vale começar jornada com dia claro, do que, para adeantar horas, largar a pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços são faceis, perigosas as quedas, e quasi certo o extravio, que a final lançadas as contas nos farão chegar mais tarde e menos gostosos ao lugar que demandâmos. Repetirei, porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o que ja por semelhante occasião disse em outro meu livrinho, contra esta enfermidade que se tornou praga, e nos traz a todos lastimosamente gafados; não ha mais remedio senão soccorrermo-nos aos livros mestres de nossa lingua. A aversão que vós outros, gente moça, lhes tendes, bem sei d’onde nasce, que tambem eu por ahi passei: correm para vós como rio caudal os livros d’essa França, todos especiosos e doirados, todos galhardos e louçãos, arrebicados e argutos no dizer, promettedores de maravilhas nos titulos e indices, conversando comvosco paixões fortes e brandos affetos, uns vomitando republica por todas as folhas, outros por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, e todos á uma embebidos do presente, afinados pelo vosso ponto, e se o posso dizer, mancebos como vós mesmos. Não ja assim os nossos patrios autores: estes não vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem, pela escuridão êrma das bibliothecas, mal envoltos na grosseira capa de seu tempo, enterrados no pó, meio devorados dos bichos; se os olhais por fóra, parece-vos que a vida vos não daria para um só volume: se os consultais por dentro ja os titulos vos não namorão, os indices vos descoroçoão: folheai-los por alto, vem os milagres incriveis, a historia encarecida ou chã, a poesia enleada e escura, o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e sizudo, os costumes castos, a moral severa, a fé religiosa e inconcussa: cada pagina na sua simplicidade apregoa Deos, revem por cada poro o cheiro do mundo velho: mas esforçai, affazei-vos por alguns dias a soffrê-los e comsenti-los; continuá-los-heis sem tedio, logo com gôsto, com ancia, reconhecendo a final quanto as primeiras mostras vos havião mentido, como pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor andavão sumidas galas, joias, riquezas, maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão a vontade, e fazem que vos peze do tempo que os não conhecestes. Assaz nos divertimos do caminho, rasão he que a elle nos tornemos.

O segundo defeito geral que me occorreo n’esta leitura, foi o que eu chamei desleixo de frase. He este muito menos grave que a impureza da lingua, sendo-o todavia assaz que mereça quanta reformação lhe eu possa fazer. Quando quem não cura da pureza de sua lingua, cura ao menos de lhe não deitar remendo de panno estranho ou novo que não seja vistoso e garrido, quando o que se não preza de dizer limpa e castamente, ao menos timbra no exprimir com viveza não vulgar, com certo matiz, com certa novidade, algum passo mais se lhe póde conceder. Procurei se ao menos teria eu posto algum pouco d’isto, e achei um desconsolado não. A locução não me pareceo tão poeticameme figurada como convinha em poesia, ainda pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos como a caruma no mato. Uma e outra couza requerião, em quem as quizesse bem emendar, muita paciencia, e muitissima mais da que eu tenho. De ambas, mormente dos epíthetos, procurarei limpar a maior; todos não he possivel: tanto e por tal geito estão com toda a Obra cozidos e enraizados, que lhes vale o que ás ervas parasítas em parede velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas demazias, perdoa-se ao resto, com o medo que em faltando, se esboroe a parede, e venha ao chão toda delida.

Tambem me queixei de estiramento de períodos. He defeito portuguez, peninsular, meridional. Dava-me agora na vontade tornar a culpa ao sol, que n’estas suas terras faz que tudo se desaperte, e derrame, e desate em viço e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol para os esquadrinhadores metafisicos, a quem inda assim, não quero mal; e eu, melhor que a nenhuma outra causa, lançarei aquella minha diffusão ás costas dos annos em que escrevia, com o que sempre fico de bom partido, por das minhas a tirar. O que he grandemente verdade, he ser este defeito para muitissimos leitores, principalmente mancebos ou hospedes nas regras de escrever, virtude, e a virtude contrária vicio. Saírão a Noite do Castello e Ciumes do Bardo muito mais contraídos e apanhados em couzas e palavras, do que estes Poemettos e as Cartas de Echo: pois comtudo muitos houve e ha, que por isso mesmo ficárão preferindo aos novos os antigos e até velhos opusculos. A cada hora me diz um que me torne ao meu primeiro caminho; outro que não desampare o novo: uns, que estas ultimas obras se não lem senão de escaço numero; outros que as passadas não occupão meia hora os olhos dos homens graves e bons juizes. Oh! quem reconheceo nunca a verdade da fabula do velho, do rapaz e do burro como o triste, que para expiação talvez d’algum grande peccado, entrega e desampara a público os partos do seu tinteiro! Pois que não póde ser contentar a todos, ir-me-hei como e por onde o meu juizo, gôsto e natureza me levarem.

A poesia substancial e severamente escrupulosa, he o mais das vezes descontada por uma certa desharmonia: a muita harmonia, ainda quando mais apoucada de ideas, ja entretem suavemente: qualquer leitor se entende com taes escritos, ninguem com elles se cança; são um genero de musica facil, que ainda quando não exprime affetos, se ouve com gosto; são como um deslizar de barco por uma agoa mansa: por isto he que os livros do Porto e Tristezas de Ovidio se lem de um cabo a outro com muita deleitação.—Inter utrumque: nem tanto apêrto como Almeno na chamada tradução de Ovidio; nem tanta soltura como o seu amigo, e outr’ora meu mestre, Elpino Duriense[4] nas poesias originaes; nem tanto pospor a harmonia e clareza á brevidade como Filinto; nem tanto sacrificar o entendimento ao ouvido como Elmano. Isto foi o que me pareceo lograr na Noite do Castello, e Ciumes do Bardo, e não me arrependo se por ventura o consegui.

Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra o que eu quizera na Primavera: alguma couza, para poder com ella reconciliar os severos; tudo não, por não dessimilhar em demazia esta parte do retrato.

Até aqui descubrimos defeitos que importa emendar, agora os vamos ver do outro genero, em que me não he licito bolir, por serem essencia do livro: erão aquelles no tocante á lingua, estilo, e metro, que ainda que importantes, não passão de accidentes da obra; estes são da alma, vida, e pensamento da mesma obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza a voz, mas o uso e necessidade lhe valeráõ.) Descritivos se chamão em geral todos os poemas deste genero, e como a taes, parece que tudo quanto for pintar dentro do quadro do seu painel, lhes compete e convem. Não he comtudo bem assim, porque as descrições, por mui formosa e naturaes que se ostentem, tambem canção a imaginativa de quem lê, quando umas ás outras se vem succedendo perennemente e sem um bom entremeio de narração, ou outro valente interesse, que por um modo verosimil as reuna, separando-as ao mesmo tempo, para que se não confundão, nem se afrontem, nem esmoreção. Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não bastar seu altissimo engenho para livrar seus poemas de enfadosos. Ora este livro he quasi um embrechado massiço de descrições; e assim, se o posso dizer, mais para ou olhos da alma do que para o seu entendimento. Mas serão ao menos estas pinturas, consideradas uma por uma, de algum preço por fineza de tintas, ou pontualidade de desenho? autos são em que me não compete dar sentença. O Padre Kinsey, ou o Portuguez que em seu nome escreveo, disse que eu não pintava bem a natureza; talvez que outro tanto, e ainda peór, se devesse dizer da mór parte de nossos poetas; mas não he contra elles, senão contra mim só que eu enfeixei varas no princípio d’este prologo: como os applicados noviços se não enganem comigo por minha culpa, que se desvairem e percão com os outros, paciencia! Aqui está comtudo o que me parece; este descritivo he desbotado e de côres pouco vivas e proprias se com o de Gessner ou Kleist se compara, mas he o melhor que eu soube; eu que nem podia ir-me pelos campos fazendo, como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de imagens, nem discorrê-los como Gessner, de lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey, ou o seu ponto, não houvessem de se me avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás escuras, ou quasi, o retrato da natureza: muito mais faz quem atravessa o Tejo a nado, do que hum Almirante Inglez que em segura e bem apercebida náo rodêa a esfera; poderá este trazer mais riquezas e informações, mas á fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o desconhecido nadador de uma só corrente.

Passemos ávante, e das descrições entremos nos affetos. N’esta parte direi pouco, porque sem embargo de que o desabrimento com que me castigo onde entendo merecê-lo, me podia deixar alguma licença para tambem me louvar pelo que em mim visse de bom, melhor he que nos louvores, em que mais facilmente nos podêmos enganar, nos contentemos de ser ouvintes. Ainda assim, não acabo eu de dizer tão pouco, que muito bem se não entenda ja que no tocante a affetos não quero muito mal á minha Obra: fallo dos affetos em geral, porque passos ha n’ella a cujo affeto não sei ja hoje querer mal nem bem; honesto, formoso, e macio me parece, sei que n’esse tempo devia ser meu, porque eu não compunha, tirava do coração, mas ja o não posso entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, apezar de tudo e de mim, hão de passar intatos, que em assunto de branduras o eu de hoje respeita religiosamente ao eu de algum dia; e porque tudo diga, ainda que quizera emendar, não saberia. Sim me inclino a que haverá (e ja de alguns m’o boquejarão) excesso, redundancia, languidez em tantas suavidades, caricias e extremos de bem querer a tudo, e a todos. Inclino-me e talvez o creio: mas que havia de cortar? a que havia de perdoar, se assim como o eu antigo valia tanto mais que o eu presente, póde ser que o melhor se me figurasse agora peór, e o peór melhor?

Digamos duas palavras da Mithologia. Ja não sou tão emperrado pagão como n’outro tempo; desconsola-me ver o desmedido uso que d’ella fiz. Não se entenda por isto que me alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria de botar pelo mundo pregáõ, como Beranger, que os Deuzes ja saírão do meu credo. Todo o excesso em crer ou não crer, em admittir, ou recusar me parece hoje em dia um disparate, de que sempre, mais por aqui mais por ali, vem a resultar contras e arrependimentos. Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo o emprego que dos Romanos para cá se tem feito d’ella, incredulus odi. Só consinto na fabula parca, explicavel, e só a amo quando soberbamente poetada. Alumiarei com um exemplo: quero-a assim como a derrama ás mãos chêas por suas tão poeticas prozas o christianissimo Chateaubriand, esse mesmo que de longe visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto acho eu pelo commum no meu livro: de cada canto me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas não responde verdade, e se alguma couza ahi vierão fazer, certo que não foi inspirar-me um só rasgo poetico. Porque pois as deixarei? porque não substancia do livro, e n’elle tem posse velha e apozentadoria.

Dêmos a derradeira parte do prologo, que em prologos deve ser sempre esta a de vantagem, a algum poucachinho dizer sobre a moral. Moral hoje, moral em livro de poeta, grande novidade e grande estranheza! Sim hoje, que ainda ha muito quem se preze de viver honesto, virtuoso e pela antiga: sim em livro de poeta, e por isso mesmo; visto como tudo quanto era contra ella o tem a proza a si tomado, não será muito que lhe abra sua porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre cantinho térreo de sua pousada, como he este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha escuridão e penuria, por todas as fendas e agulheiros do mal reparado edificio poetico lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal de seus inimigos, e contra essas não ha valer-lhe. Ha pois do titulo d’este livro a dentro, dado se não prometta senão primavera, um como ar de bondade e saude para o animo, de socego e bemaventurança para a vida: e por isso he que, a despeito da todas suas manchas, me parece bem, como ja no Ante-Prologo deixei tocado, atira-lo, como sementinha de erva medicinal, ao baldio sáfaro e corruto d’esta idade. Bem estou eu antevendo quantos de mim hão de haver lástima, por me assentar no meio de tão ferida e accesa batalha, por cantar entre tantas vozerias de odios. Paciencia! tambem sei que homem sentado não sóbe, nem a trôco de cantigas se comprão riquezas e valimentos: mas cada qual tem sua estrella, e a minha, que outra vez descobrio depois de largo eclipse, esta foi, e esta ha de ser; oxalá que para sempre! Com o bom de Archimedes me pareço n’isto, o qual na hora que a cidade estava sendo entrada do inimigo, e alagada das torrentes de ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, nem deixava de proseguir na composição da lustrosissima esfera celeste, unicos amores que no canto calado de sua casa o desvelavão. Havia ahi uma não sei que magnanimidade; e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado feroz que despede tal cabeça para cima de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo a brincar com flores e cordeiros, ao tempo que em redor de mim estão no chôco tão grandes destinos do mundo, não me lastimo, porem rio-me, e cuido estar vendo em mim proprio um menino, que por um dia de tempestade, enthesoura conchas e forma lagoazinhas na praia, emquanto andão á vista galeões alterosos á luta com os elementos, e na mesma praia uns pasmão, outros se aterrão, outros suspirão pelo instante do naufragio para se arremessarem aos despojos, apenas o mar os cuspir.—Fugindo me hião agora outra vez os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral, esquecida até por quem lhe deo couto! Com ella sou, e com ella determino acabar.

He a moral na maior parte d’estes poemas pura, facil e amavel; e se não tão efficaz como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse menos, he porque podia menos atavia-la, e aformozea-la do que elle, e atavios e formozuras até servem para fazer do bom optimo. Todos os amores de que se urde e tece a domestica felicidade, se achão aqui representados por um modo que se recommendão, e d’elles se imbue de mui bom grado o animo; o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal, a amizade, até o affeto aos animaes, arvores, flores, e mais creaturas de Deos, companheiras nossas n’este mundo, aqui vem de envolta com a recreação. Porque tudo diga, pelo gostador ou gostadora d’este livro daria eu mais, e mais quizera viver com elle debaixo do mesmo telhado, e tratar quer negocios quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro, com gostadores e pregoadores d’outros livros que estamos vendo rebentar de muito mais avultados engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas a quem dar criação, sei que emquanto não podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros, lhes daria a Primavera; e ja não digo o mesmo das Cartas de Echo, e muito menos da Noite do Castello, e Ciumes do Bardo. Mas, acudirá algum prudente, couzas se deparão na Primavera que mais são para ser defendidas a donzellas, e resguardadas de fantasias ainda verdes, do que para se aconselharem por doutrina. Sim as ha, e todas essas paginas que para idades encorpadas e apercebidas de experiencia bem podem não ser damnosas e parar em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo antes de lhes entregar a obra para lição: e porei exemplos; na Festa de Maio, os fins dos episodios de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo poema boa parte da republica de Chipre, como o culto religioso da Natureza, os bens em communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento de um com muitas et cetera. Antes de passar adeante, trasladarei, que alguma couza fará para aqui, parte de uma Nota que ácerca da republica de Chipre se lia na primeira edição, a pag. 169.

—“Note-se que este poema está muito longe de dever ser considerado como didático; que toda esta republica de Chipre he meramente um Dithirambo, aonde a licença do poeta he muito mais ampla do que em outro qualquer genero de poesia; que esta sociedade de que se ha de formar a republica, he de poetas, homens de quem vulgarmente se diz que mais dão ao prazer do que á rasão; e que em boca de poeta se poem a arenga recitada no templo. Para os avisados escusada fôra a nota, mas para os fanaticos, que ignorão ter a Musa do Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter contra tudo, he indispensavel.”

Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, porem melhor houvéra sido não carecer d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á republica de Chipre, não assim ás demais desenvolturas, como as dos dois ja apontados episodios. Porque as puz umas e outras? vá mais penitencia. Puz as pinturas amorosas em quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da vida e do anno, em que todos nos deliciamos nas fantasias sensuaes, e se somos poetas, cuidamos morrer abrazados e afrontados em não desabafando. Porque não expurguei d’ellas esta segunda edição? pelo mesmo motivo do retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza, e á gente nua, e aos maridos de muitas mulheres, são necedades taes, que não merecem que nos detenhâmos em as refutar: são d’aquellas demencias, cujo aggregado dá o que entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados e térsos, se denomina filosofia, e que só dura emquanto a experiencia e o tempo nos não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão geral, ja muitas vezes apontada, de querer mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem, que depois d’isto ja a ninguem farão mal.

Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade, o juizo que da Primavera formei; he primavera por matos de serra, com mais flores do que graças, com mais ares saudaveis do que ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias mimosas, mui nua em muita parte de terreno, mas com seus longes de campos e cazaes felizes, e muitas saudades lá pelos extremos confusos do seu horizonte. Quem se d’estas cousas contenta, fico se recreie com ella; e quem com ella se recrear, para amigo o quero, que esse saberá, como eu, amar muito os homens, fugindo-os; e enfadado, como eu, das terras onde não ha ver passaros senão em gaiola, nem verdura fóra de gigas, nem arvoredo que não seja pintado, nem pastores e innocencia senão na opera e trajados de seda e veludo, nem felicidade senão em promessas de políticos, irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos, de si, e dos penhores de sua alma no seio e entranhas da vida campestre. Oh, se assim fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda por vizinho!...

Lisboa 4 de Dezembro de 1836.

A Primavera

Подняться наверх