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DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO
ОглавлениеFôra o inverno de 1821 para 22 dos mais desabridos e temerosos de que entre os vivos se faz memoria. Na Beira, onde me então achava, vião-se arrancados e espedaçados bosques, olivaes e pomares, sementeiras afogadas, pontes demolidas, e os rios sem margens. Dos 25 de Dezembro até os 9 de Janeiro, que me demorei em uma aldeinha, uma legua desviada de Coimbra, saboreando no trato cordeal de alguns amigos e parentes as férias, então mui festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada e rigorosa a porfia das invernadas, que nos falseou quasi de todo a recreação mais apetecida dos que fartos da cidade, vão alguma hora ao campo desenfadar-se. De não passear nos vingavamos o melhor que o tempo e lugar no-lo consentião: práticas desaffrontadas de constrangimento, temperadas de bom sal, e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas, leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia, e improvisos de charadas e adivinhações nos enchião as horas não contadas. As espaçosas noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes e semelhantes passatempos, em de redor de uma farta fogueira, segundo he costume d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando o sol descobria, e o ar um pouco mitigado nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo jardim onde se explanava um soberbo lago, outr’ora pela orla mais assoalhada dos laranjaes, que mui corpulentos e viçosos, acenavão de seus ramos com frutos e flores, pondo a vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era, umas lembranças, uns longes de primavera no coração do inverno, saíamos da prisão dos lares, aproveitavão-se com sofreguidão: talvez nenhum dia de perfeita primavera na longa cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais ledo, do que estas pobres tardes sonegadas ao mez do Natal. A fantasia enganada do sol, toda se me desatava em poeticas flores, o que n’esses tempos só por maravilha me acontecia fóra da primavera, e luares do verão. Quando vinha a noite, acceita ao meu coração, (que sempre de si o conheci, não sei porque, amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos ao conchego do nosso lume fiel nos tornavamos alvoraçados, comigo só me hia pouzar a um canto, colhendo, concertando e accrescentando com mui entranhado contentamento, quantas florinhas me havia brotado a fantasia. De saudades da primavera me parece ainda agora que nascião todas; o que certo sei, he que ahi, e n’um imaginar d’estes meus, me veio a lembrança e desejo de escrever á Primavera uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença tão concedida a poetas, não o sei; sei que no ditar estes versos para se escreverem, e no conceber-lhes o assunto a passear ou a seroar, gozei prazeres que ja a crítica me não póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo o meu pezar he não poder outra vez peccar pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me da Primavera: os annos que a trazem ás arvores no-la levão a nós, e ja la vão quinze, (quinze annos!) sôbre o tempo em que eu brincava com estas innocencias.
Lisboa: 9 de Dezembro de 1836.