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EPISTOLA
Á PRIMAVERA.

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Corre a Noite, jaz muda a natureza;

Os campos solitarios esmorecem;

Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente:

De quando em quando a lua desmaiada

Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre;

E das planicies a extensão geosa

Ora resae e alveja, ora se apaga.

N’esta cabana de grosseiros troncos,

Tecido vime e colmo, onde sereno,

Vento, e cuidados não coárão nunca,

N’esta onde habita perennal fogueira,

E onde he Penate o Genio da hospedagem,

Venho entre amigos deslembrar tristezas:

Do frio lá de fóra o ultimo resto

Ja o atirei á chama tragadora.

Em ti, Amores meus, em ti só fallo

Ó Primavera minha; em ti só cuido;

A ti quero escrever: inda ha bem pouco

Em meu passeio a flor das larangeiras,

E do sol que hia a pôr-se o extremo raio,

Cá me derão de ti saudades tristes.

Desde que ao scetro do raivoso Junho

Tu doce com teus Zéfiros fugiste,

Meu dia estendo em languidos suspiros.

A noite em vagos sonhos me afigura

Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos:

Mal desponta a manhã, mal foge o sono,

Desespero-me, lido entre amarguras;

Peço aos bosques sem folha, aos ermos campos,

Aos rochedos de neve, ás turvas fontes,

Ao ceo toldado, aos ares tempestosos,

E a toda a natureza, a minha Amada.

“Primavera, onde estás?” do outeiro exclamo;

De valle em valle, de um cabêço em outro,

“Primavera, onde estás?” responde o echo:

No prado o guardador, no monte o Fauno,

Pelo arvoredo as Dríades á escuta,

“Primavera, onde estás?” depois exclamão.

Emquanto assim fiel, por ti ó Deosa

Me desentranho em ais, onde te escondes,

Perguiçosa gentil? onde vagueas

Bella inconstante que estes ais não ouves?

Algum Deos namorado, em plaga estranha,

Encheria de amor teus olhos livres?

Esquecer-te-hião, (Ceos!) promessas tantas?

Sim: que te importa o definhar de um vate?

Do vate que te amou, te adora ausente?

Tu folgas e elle gema; elle delire,

Tu a prados sorris vestindo prados,

Revês-te, amante nova, em novas flores:

Fontes ha tambem lá, que importão éstas?

De fonte ao claro espelho te engrinaldas;

E ufana de encantar sensiveis peitos,

Tambem, como entre nós, por lá dardejas

Fogo de amor aos entes insensiveis.

Volta, volta, ó cruel, aos campos nossos.

Qual paiz no universo, a não ser Pafos,

He mais digno de ti? ¿por onde achaste

Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras,

Como éstas que entre a murta o ceo nos cria?

Amantes mais fieis? florestas, rios

Namorar-se, mais frescas, mais formosos?

Mais doces flautas quando amor entoão,

Aves mais doces quando amor gorgêão?

¿A tua Cintra, Elisio dos desejos,

Nobre jardim do Oceano, onde folgavas

Contemplar na alta noite em mista dança

Ninfas das ondas, Ninfas das florestas,

Assim te descaío? ja não proteges

Os córos virginaes que ali passêão

Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque?

¿Por toda a parte as Graças que espairecem;

Do aligero esquadrão travêssos brincos,

Frechas doiradas em contínuo vôo

Aqui e ali aos peitos descuidados,

E se errão corações, ferindo os bosques,

Porque os bosques ali tambem suspirão,

Tudo pois te esqueceo? Volve, ó Querida;

Cede, não sejas dura, a amor, aos versos.

Desde que te ausentaste ahi pende a lira

Nos braços nus de um álamo sem folhas,

A minha lira ao vento abandonada!

A lira d’oiro, onde entoei teu Nome,

Onde a minha paixão soou mil vezes

Na linguagem dos ceos a teus ouvidos,

Ei-la sem honra; os ventos lhe roubárão

Dos antigos festões o escaço resto!

Ao passar com seu gado, e vendo-a muda,

Diz suspirando a turba dos pastores:

“E’sta a que dava alento ás nossas festas:

Mal haja quem a trouxe a tal desterro!”

Dríades ternas, que meu canto ouvião

Não talvez sem prazer, dizem passando:

“O vate emmudeceo longe da Amada!”

Mas apenas teus Silfos precursores,

C’roados de violetas assomarem

Na ethérea região de nossos climas;

Apenas este ceo pezado e turvo

Mandar á terra os ultimos chuveiros;

Apenas rebentando as novas folhas

Se remoçar esse álamo tristonho,

E entre a nova ramage, emtorno á lira,

Cançada de seguir-te andar pouzando

A rolinha estrangeira, e sócia tua,

Á lira despirei do inverno o musgo;

E n’ella, de aureas cordas melhorada,

Só de ti chêo, na presença tua,

Brotarei versos, como brotas flores.

Oh voa, acode a consolar Cibele,

Cibele a térrea mãi da especie humana,

Cibele, amores teus, qual tu Deidade!

Se ora a visses! ... do carro verdejante

Os rebeldes tufões a derrubarão:

Co’a trança descomposta, o manto em rios,

A altiva c’roa em parte destruida,

Nua jaz á vergonha, ao vento, á neve.

Seu tanto desamparo he mágoa aos filhos:

Mas para dar-lhe a mão, torna-la a Nume,

Poder, qual em ti ha, não ha nos homens:

Do fundo do teu lodo a ti só chama,

Ai, leve-te algum vento as queixas d’ella!

As torrentes sem freio divagando

Contra marmóreas pontes indignadas,

Investem, chocão, despedação, rojão

Ruinas em montoẽs aos fundos mares.

As Dríades, teu povo e tua gloria,

Tremem, oh dor! ao furioso assalto

D’Euros, e Notos, e Africos em guerra:

A seu brutal furor nenhuma escapa:

Crer-se-hia que as prisões da Eolia furna

Para sempre arrazára a mão de Jove.

Dríades nobres de arvores antigas,

Refugio outr’ora das calmosas séstas;

Dríades bellas de arvores vaidosas

Co’a idade juvenil, verdura e fôrças,

Tem a seus pés quaes vítimas caído.

Co’os negros frutos oliveira amiga

Baqueou; não lhe valeo celeste guarda;

E Minerva prantêa o estrago enorme:

Cáe o pinheiro amedrontando os valles,

E Pan, sentado nos troncados restos,

Triste espera por ti co’a flauta muda.

¿D’esta cabana a rustica fogueira

Sabes quem a sustenta? ah! corre, vôa:

Cedro, que eu te sagrei, caío por terra,

E onde brincou favonio estalão chamas.

Mui tarde chegarás se não-te apressas;

Do colono e pastor os ais te invocão,

A mesma natureza he morta quasi!

Que fragor, que trovão! piedade ó Numes!...

Este deu raio, e pérto.—Outro rebrama!...

O Olimpo sobre nós desaba em fogo!

Chlóe, e Amarilis trémulas, gritando,

Desfeita a rubra côr em côr da morte,

Enchem de seu terror esta cabana.

O’ innocentes, miseras pastoras,

Não griteis, não tremais; vereis em breve

Dissipado este horror nos longes ares;

Contra o crime orgulhoso os Deoses troão,

Não fere o raio a rusticos alvergues.

Não, não me engano, ouvís como se afasta?

Como la vai ja longe? o mais do estrondo

Ja he toada vã no vão dos bosques.

Chuva propícia em caudalosa enchente

Desce na escuridão; resoa o této

Com o crebro saltitar das frias gotas:

Sibila o vento na vizinha serra.

Chlóe a porta fechou: nós apertâmos

O cerco estreito em deredor do fogo.

Cantou o gallo esperto: he meia noite!

E eu vélo ainda, e velarei saudoso

As horas todas que á manhã precedem!

Horas, horas de paz no horror das trevas;

Horas de estro, misterio, omnipotencia

Ao que nasceo das Musas bafejado!

Sonhe a ambição com purpuras, e scetros;

Torpe avareza com os inuteis cofres;

A vingança, fatal a si e aos outros,

Cogite embora nas traições, no engano,

Nos agudos punhaes, no sangue em jorros;

Vulgar amante afine, esmere astucias,

Com que succumba a tímida innocencia,

E aos laços venha destramente armados:

Eu dando a amor o que se deve ao sono,

Em chama pura, porque he tua, ardendo,

Alégro com teu Nome a horrenda noite,

A saudade em saudades apascento,

E inda ausente, comtigo ausente fallo.

Como o perdido em temeroso escuro,

Que ao mais leve rumor trémulo pára,

Assacinos agoura em cada tronco,

Não ouza resfolgar, prosegue a medo,

Aqui lhe surde a silva, alem penedos,

E lhe abrem fauces mil os precepicios,

Só tem na aurora esp’rança, e mal que ao longe

Annuncios d’ella vê, canta e renasce;

Serei mais que feliz pois vas ser minha,

Mal te sonhar ao longe, ó Primavera.

Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco,

Mais do que o touro em maio ama a novilha;

Quero-te mais que o Deos de amor ás trevas,

Mais do que Flora ao Zéfiro inconstante.

Eu suspiro por ti, como suspira

Murchada planta por sereno orvalho,

E ardente ceifador por fresca fonte:

Es-me tão cara como a bella esposa

A seu amante de chorar cançado,

Quando no dia d’hirneneo se abração:

Tão doce emfim como o primeiro beijo,

Que uma terna pastora, a medo e a furto,

Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios.

Qual dos amores, que no mundo girão,

He mais grato que o meu? Este em delícias

Excede tanto aos mais, como tu vences,

Tu belleza do ceo, do mundo as bellas:

Eu amo e para amar não me recato,

Ao mundo inteiro meu ardor confesso,

Tenho rivaes e do ciume zombo,

Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorvão.

Inda me está lembrando (hora doirada!)

Quando longe do mundo, e a sós comtigo,

Pela primeira vez te disse “Eu te amo!”

Abria a Aurora o roxo mez das flores:

Juntas em córos no arvoredo as aves,

De ramo em ramo aos ranchos adejando,

Em nunca ouvidos sons a luz saudavão:

Inda do puro rio a opaca nevoa

Bem não era desfeita ao sol nascido;

Inda das folhas concavas pendião

Trémulas gotas de luzente orvalho,

Que depois leva o brincador Favonio;

Quando (ai memoria doce!) eu dei comtigo

Inda meia a dormir na fofa relva.

N’alguns louros de roda entretecida

Hera tenaz um toldo te formava:

O melro grave, o rouxinol cadente,

Para encantar-te os sonhos, diffundião

Entre uns rosaes a musica dos prados;

Enchia aroma puro os puros ares.

Ligeiras, bellas Sílfides, velando

Invisiveis teu placido retiro,

Impedião que um Fauno petulante

Ou rustico pastor pozessem olhos

Em teu corpo sem véo, cheio de encantos.

Alí me conduzio propicio acazo:

Não mo impedirão Sílfides zelosas,

A natureza inteira he franca ao vate.

Ridente sono, da innocencia imagem,

Cerrava ainda os olhos teus ao dia:

Todo brandura o juvenil semblante,

Até sem o saber, até dormindo,

Faria suspirar homens e feras.

Entre a face mimosa e a fria relva

Tinhas meio curvado o braço lindo:

Como ao desdem, na esquerda seguravas

A cornucopia, a não poder com flores:

Halito doce de fragancia amena

Sáe do seio, que túrgido se eleva;

Dos roseos labios, da pequena boca

Vem tão doce, vem tal, que um peito humano

Bafejado por elle, excede os numes,

E a alma, em vez de pensar, delicias volve.

Tal eras, tal fiquei ó Primavera!

Espertaste de todo; e toda risos,

E todos luz e amor os olhos verdes,

O que era ja sem termo accrescentaste,

Dobrou-se a graça ao mundo, o fogo aos peitos.

Um mar de deleitosas fantasias

Me soçobrou, confesso, e tempo largo

Jazi com o ledo mundo em braços da alma.

Depois tornando em mim, ví-te ja prestes

Para baixar do outeiro aos amplos valles:

Quão mais louçã, e em galas mais garrida!

¿Que muito, se a mais nova das trez Graças,

De tuas mil Oréades servida,

Pozera as proprias mãos ao vago enfeite?

Erão-te manto ondado, e roupas simples,

Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas;

Mas triunfava a rosa! aos botões d’ella,

Nem ja todos botões, nem flores todos,

Fôra o tépido seio em throno dado,

E em vez de o embellezar, se ornavão d’elle:

Erão raios do Sol a c’roa tua!...

Parei de embevecido! e quem no mundo

Te vio jamais como te vio teu vate?

Em teu seio amoroso um Cupidinho,

Qual borboleta d’oiro, esvoaçava

De botões a botões, na escolha incerto.

Vio-me; e curto farpáõ, doirado, agudo,

Curto farpáõ que os olhos não percebem,

Me arrojou, me sumio dentro no peito.

Graças ao tiro do mimoso Alado!

Na profundez da f’rida, e gôstos d’ella,

Contente reconheço, adoro um Nome.

Amante, desde então, ditoso amante,

De dia a dia te encontrei mais terna.

Incenso, que antes dava a falsas Musas,

Off’reci-te, acceitaste, e foste a minha.

Abriste-me a Aganippe em cada arroio,

Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles:

E tu em cada valle, em cada monte,

Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre

Musa do coração, presente aos olhos.

De poetas foi sonho a voz das outras,

A tua graciosa ciciava,

De toda a parte vinha em tom macio,

Que filtra inspirações, e a amor contenta.

Se os de ambições miserrimos forçados

Que ás cidades dão vida, e a si a roubão,

Podessem vir um dia onde tu reinas!

Se a mente que as paixões lhes anuvião,

E olhos em que os cuidados, seus verdugos,

Atárão com trez nós perpétua venda,

Podessem ver-te a luz deliciosa,

O manso da alegria, os gostos puros!...

Deixando sem adeos tumulto e pompas,

Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos,

Co’as pouzadas dos bons unirra a sua.

E a quem darás tu nunca o riso cheio,

Como o déras a este, que trocasse

Oiro a virtude, e marmores a flores?

¿Que ja sôlto de si e a si tornado,

Viesse pôr, para os livrar de queda

E adora-los em ocio, os seus penates

Á beira de uma límpida corrente,

Que de um bosque atravéz susurra e foge.

Víra os Genios da terra o anno inteiro

A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a

No pomar curvo, ali na horta regada,

Lá no chão da seara, alem na vinha

Que o recôsto do outeiro alastra e enreda,

Mais longe nos cabeços verdejantes

Onde o gado em socego os leites cria.

Não lhe ameaçára o raio o této humilde:

As manhãs, d’entre as ramas espreitando

Pela aberta janella, o acordarião,

Por lhe alargar a vida: os passarinhos

Lhe dirão nas frescas alvoradas

“Bem vindo, alegre amigo, ás nossas casas!

Nós cantamos teu Deos, somos felizes,

Tu louva o nosso, e goza d’este mundo.”

Se algum cuidado a vespera deixasse,

Levar-lho-hia na vêa murmurante

A correntinha onde lavasse o rosto.

Vê zagalas fieis, vê perigrinas

De formosura e joias não compradas,

(Que uma da-lha a saude, outras o prado);

Com ellas espairece a fantasia,

E se inda o coração quer mais ventura,

Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce!

Quanto via e pasmava em mortos quadros,

Onde astuto pincel prodigios obra,

Sombras vãs, cujo preço he rios d’oiro,

Tudo agora real, vivo, mais bello,

De mais subida mão pintura immensa,

De graça lhe cercára o lar e a vida.

Mas ah! porque me sólto em vãs ideas!

Embora o preço teu não saiba o mundo,

Primavera, eu te adoro e tu me afagas:

Caro co’a lira vezes mil teu nome,

E tu me infloras magamente a lira:

Em longo mútuo abraço almas trocâmos;

A minha he mansidão, frescor, perfume,

Toda a tua, poesia, amor, extremos.

Lanças-me em teu regaço, e quando a noite

A lira e cornucopia aos dois nos furta,

Das-me dormir co’a fronte no teu seio,

D’onde me vem coando uns sonhos leves,

Todos teus, todos candidos, na fórma

De flores, de aves, de amorinhos, de auras.

Assim, me queres teu até no sono!

E porque sombras más o não perturbem,

Mo ficas a velar á luz dos astros,

O semblante pacífico ao sereno,

Os olhos no ceo da alva, e o peito amores.

Mas tu ... porque não vens?—Não não me engano,

Inda agora os trovões rijo batalhão.

Talvez rola n’esta hora a tempestade

Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas;

Rugindo estoira o mar em crespas serras:

Possança de baixeis, esfôrço, industria

Não vale a contrastar-lhe a valentia;

De toda a parte a morte esvoaça, ruge

Na horrenda cerração com sons do averno;

O náufrago abraçado a sôlto lenho,

De toda a parte a vê, a ouve, a sorve;

Vai a abismos e a ceos repulso d’ambos,

E perde, antes da vida, a luz e a mente.

Sumio-se o ultimo audaz de sôbre as aguas!

De nuvens atro veo submerge a lua;

Não luz na escuridade alguma estrella;

He o luto do Homem forte! Ó Mar és livre!

Triunfaste, adormece.—Ah que de vezes

Taes scenas, tal horror, maior, mais negro,

Nos tem de si brotado a umbrosa quadra!

Ó tu contrária sua, o tu dos homens

Sempre invocada amiga, ethéreo Nume,

A quem ceo, terra e mar dão vassallagem,

Onde estás, que não vens com um leve assopro

Trazer serenidade aos elementos?

Se inda és a mesma, e súpplicas te movem,

Sobe ao carro da aurora, os ares fende,

E acode ao Luso clima, onde te invocão.

¿Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis

De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto,

Acceitou, de sincera, a grave aposta?

Qual era, que o pastor lhe não podia

Dar n’uma tarde tantos beijos, tantos,

Como as folhas do plátano vizinho,

Sendo o premio da aposta inda outro beijo?

¿Aquella gruta, onde ambos consumirão

Um dia teu, a adivinhar a ponto

Todas as graças do primeiro filho;

E só no sexo os votos discordavão,

Porque Umbrano pintava outra Amarilis,

E Amarilis raivosa um novo Umbrano?

Pois n’essa, n’essa gruta os meus amigos

Para hospedar-te um grão festejo tração.

Pôr-se-ha do cedro á sombra altar gramíneo

Com seus flóreos listões, onde c’roados

Te libem vinho annoso e leite puro,

Concertando himnos teus com lira e flautas.

O lavrador da proxima campina,

A estirada cantiga aos bois tardios

Parando calará, para escutar-nos.

Então, então começa o tempo d’oiro,

Folgão no campo os naturaes prazeres,

E a rustica alegria apraz aos deoses.

Aqui, apoz as candidas ovelhas,

Vai trigueira, descalça pastorinha

Aos echos do arredor cantando amores;

Ali galhudo Sátiro se esconde

Para colher alguma Ninfa errante;

Alem com ledos sons retine o bosque,

O riso ferve, as flautas se misturão;

Mais longe, aos pés de mal fingida ingrata,

Se exhalão rogos apiedando as selvas.

Um favonio subtil encrespa as ágoas,

E enfada a Ninfa, que estudava uns geitos

De se enfadar com quem de amor lhe falle.

Priapo brincador gira saltando

Nos jardins, nos vergeis, e nos pomares,

Ramos bate, alvorota o plúmeo bando,

Que foge, mas de Amor não foge ás settas.

Amor e seus irmãos, com o facho em punho,

Lanção tacito fogo a quanto existe.

Junto da verde faia susurrando

Se ouve outra faia um não sei que, tão doce,

Que aos amantes apraz o seu murmúrio.

Do rebanho o marido entre o rebanho

Bala amoroso, e todas lhe respondem:

Pela novilha se enfurece o toiro,

Accomette o rival, goza o triunfo.

Côr de neve, innocentes cordeirinhos

Ja balão na verdura, ja recresce

Maravilhando a serra, a grei profusa

Das erradias cabras saltadoras:

A nova creação corre exultando;

Aquelle foge, os outros o perseguem,

Voltão, saltão, empinão-se, discorrem

Por toda a parte n’um momento o prado;

Cresce o leite, e o pastor a quem ja faltão

Cinchos para o queijar, tarros que o levem,

Lédo se enraiva com riquezas tantas.

Todo o arredor da aldea he movimento,

Contente lida, esp’rança, amenidade.

Porque se hão de calar da infancia os brincos?

A infancia he primavera, he mundozinho

Florente, de que nasce um grande mundo.

Menino á espreita e mudo entre as silveiras,

Apoz o som do grillo o vai buscando;

Outro os ramos envisca, as redes arma;

Prêzo de longo fio ao pé mimoso

Passarinho pelo ar chirla e revoa,

E crendo-se de novo o rei do espaço,

De inconstante creança um dedo o rege.

Um mais travêsso, ás árvores trepado,

Nos ramos se embalança, ou furta os ninhos;

Outro mais atrevido, emvão forceja

Por montar no carneiro, que se escapa,

Fazendo ao longe retinir os bosques

Co’ o crebro som da aguda campainha.

Tenra menina um malmequer desfolha,

E pelo amor da mãi á flor pergunta;

Em quanto seus irmãos vão na corrente

Pôr de cortiça um concavo barquinho.

Na luta, na carreira apostas fervem.

Oh! da infancia do mundo amaveis scenas!

Se inda as virtudes sôbre a terra existem,

Se inda existe o prazer, o socio d’ellas,

He no campo, no campo; e a quadra tua

Nos mostra, ó Primavera, este prodigio.

Mas da fogueira as chamas enfraquecem!

Ja os gallos das proximas cabanas

Vão começando a annunciar-me o dia:

Que som grato! que enlêvo estar sentindo

Por um sereno albor, estes vizinhos

Nuncios da aurora, a cuja voz respondem

Outros aqui e alem, com voz diversa!

Sim, o dia começa: a luz nascente

Pelas fendas do této está brilhando.

Eis-me só junto ao lar! quem sabe ha quanto

Se irião meus bons hospedes ao colmo:

Agora em doce paz lá estão dormindo.

Que breve noite! e he finda; ah toda he finda!

Da fresta, onde cheguei, contemplo os ares,

E claro vejo o ceo, de nuvens limpo:

Mal brilha no horizonte a estrella d’alva.

E os olhos meus (oh dor!) só descobrirem

Como por um véo denso a natureza!

Os montes que longissimo se alcanção

De vinhas e arvoredo entresachados,

O rio ao longe a fulgurar co’as ondas,

Os remotos cazaes da gente humilde

Pelas verdes campinas alvejando,

Não vê-los eu! não ver!... Mas que murmúrio

Sólta a folhagem do loureiro antigo,

Que defronte de mim remonta aos ares?

O Favonio acordou, que hontem de tarde,

Cançado de girar, adormecêra

Junto á cascata no pomar sombrio.

Vai subito partir: em curtas horas

Será comtigo, e te dirá meus versos.

Meus Amores, adeos! adeos meu Nume!

Da Epistola a resposta a vinda seja.

A Primavera

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