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I.

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O meu amigo Valladares, em uma tarde formosa, passeando comigo no Penedo da Saudade, sentou-se, accendeu um cigarro com perfeição academica, abriu a carteira, e recitou-me os versos, que, um anno antes, me recitára em Alpedrinha.


—Lembras-te?—disse elle.


—Perfeitamente. Prometteste contar-me então uma historia.


—Vou cumprir a promessa.


—E disseste que o teu conto prendia muito com aquella casa.


—Disse, e vaes vêr porque. Olha que eu não vou fazer estilo. Prepara-te para uma narração simples, e clara. Não pertenço á escóla dos nossos lapidarios de palavras, que nos dizem em estilo de Corneille as scenas comicas de Moliere. A minha historia, se tal nome lhe cabe, é uma tragedia com muitas scenas de farça. Ainda que me não vejas rir, tens a liberdade da gargalhada. Ahi vai:


Em 1843 fui á feira do Santo Antonio a Villa-Real. Encontrei ahi uma familia que mora uma legua distante de minha casa. Compunha-se d'uma senhora idosa, que era mãi d'um cavalheiro, e este cavalheiro era pai d'uma bonita mulher, que teria dezoito annos. Gostei d'ella, ou antes confirmei a sympathia que ella me tinha presa desde que a vi, pela primeira vez, dous annos antes, n'umas ferias grandes. Não lhe disse quasi nada. Eu era rapaz de dezoito annos, e, aos dezoito annos, um moço d'aldêa tem o coração acanhado, e córa facilmente, quando encontra os olhos d'uma mulher, supposto que os veja constantemente em sonhos. A rapariga chamava-se Miquelina; isto não faz ao caso; mas sempre te digo que nunca suppuz poder pronunciar este nome sem lagrimas... O que é o tempo!...


Combinamos partir juntos de Villa-Real. Não recordo na minha vida um dia mais feliz do que o dia da nossa partida! A familiaridade animava-me a dizer algumas palavras d'aquellas que nunca exprimem senão a sombra do sentimento. Miquelina corava, mas nem por isso sustinha as redeas do cavallo para esperar a avó e o pai, que vinham alguns passos distantes.


Teriamos andado legua e meia, quando o macho em que vinha montada a velha tomou susto d'um tiro, que se deu ao lado da estrada, recuou, e deu em terra com a pobre senhora. Acudimos todos.


Encontramos-lhe uma fractura profunda na cabeça, e uma perna quebrada. Perguntamos se d'alli perto haveria uma casa onde nos recolhessemos. Encaminharam-nos a Alpedrinha, e a casa era a do padre onde me encontraste.


O acolhimento que nos deram foi excellente. Encontrei ahi o irmão do abbade que era meu contemporaneo em Coimbra. Os facultativos disseram que era impossivel continuar jornada, e ahi ficamos vinte dias.


N'este espaço de tempo, sonhei a felicidade, por que hoje sei que não existe a realidade d'esses sonhos. Fui muito feliz, senti-me poeta, idealisei á sombra de Miquelina cousas e pessoas que nunca tiveram senão materia vilissima para as aspirações do poeta. Em fim, meu caro, cheguei a recuperar a fé perdida nas cousas da Providencia, porque me parecia impossivel tanta felicidade sem consentimento especial da Providencia.


Disse a Miquelina tudo que humanamente póde dizer-se. Traduzi-lhe em palavras os extasis, que as não tinham. Interessei-a na comprehensão da minha alma, e arranquei-lhe uma palavra, que mil vezes lhe morrera nos labios, como queimada pelo ardor do pejo. Quando ella me disse «amo-o» se não endoudeci de contentamento, é porque a disposição do meu cerebro é invulneravel aos golpes da demencia. Hoje rio-me d'isto, e tu, se te não ris, agouro-te que não poderás dizer o mesmo a respeito da tua cabeça, passados alguns annos.


—Porque?


—Porque das duas uma: ou doudo, ou cynico. Tomar a serio a sociedade é endoudecer. Viver com ella em boa paz é escarnecel-a. Ou doudo ou cynico. Não enlouqueci; mas depravei-me. Este escarneo, que indistinctamente voto a tudo, é a negação da piedade para todas as dôres nobres, e a do odio para todos os prazeres infames. Não me espanta nada. Aperto a mão do mais corrupto, e a do mais virtuoso com a mesma graça. Recebo todos os desaforos como factos consumados. Não dou dez reis pela virtude dos missionarios do Japão, nem daria cinco de volta se elles me trocassem a sua fé pela minha illustrada impiedade. Eu e elles somos bons, ou maus: como quizerem. Eu acho que todos somos excellentes filhos de Deus, e Deus, que nos conserva, lá sabe a razão porque o faz...


—Tu não sentes o que dizes...


—Estás a brincar comigo!... Pois não sinto o que digo?! Tu não vês o que está dentro d'este homem, nem pódes ainda ajustar á face do cadaver a mascara que o retrate...


—Mas é possivel ser-se o que tu és?!


—Se é!... Se me não tivesses interrompido, já sabias a razão porque o sou... Nada de interrupções... Se começo a divagar, digo diabruras, perco-me em abstracções, que te hão-de parecer pretenciosas, e lá vai a historia...


—Palavra, que não te interrompo...


—Quando sahimos de Alpedrinha, as minhas intimidades com Miquelina eram já suspeitas ao pai, que não se entremettia paternalmente no negocio. Sabes que eu tenho uma soffrivel casa, e Miquelina não era muito mais rica. Era possivel, e até vantajoso um casamento. Murmurou-se n'este assumpto em casa do padre, e eu fui consultado por elle.


Isto arrefeceu-me um pouco. Não queria que me viessem tão cedo direitos ao materialismo. A pequena, porém, não tinha culpa. Eram cousas da velha, que quebrára a perna, mas ficára com a alma inteira para seguir o recto caminho, a logica implacavel do namoro, banhos, casamento, filhos, aborrecimento, barrete de dormir, catarrho, cangalhas no nariz, e rheumatismo.


Eu amava verdadeiramente Miquelina. Instado pelas perguntas do officioso abbade, respondi que me casaria um anno depois, porque não queria dar tal passo sem o consentimento d'um tio, que fôra receber ao Brazil uma herança, que viria augmentar consideravelmente a minha casa.


Ficamos n'isto.


Tres vezes por semana, durante os dous mezes de ferias, visitei Miquelina, e revalidei os meus votos, porque esta paixão não era das que fogem quanto mais faceis se aproximam. A minha Beatriz parecia-me boa de coração, ajuizada de cabeça, fina de espirito, e em quanto á cara, ao corpo, e ao donaire... dir-te-hei que as seducções eram tantas, e tão a proposito que nunca tive occasião de me sentir de uma illusão desvanecida. Vim para Coimbra. A nossa despedida foi pathetica. Beijei-lhe a testa pela primeira vez. Comprimi-a ao coração com o enthusiasmo do primeiro abraço. Recebi da sua mão tremula, como prenda, o lenço com que enxugára as lagrimas, e retirei-me com o coração partido, mas vaidoso de esperanças, que a saudade me dourava no meu lindo futuro.


Logo que aqui cheguei, escrevi-lhe. Imagina o que eu lhe diria! Eram vinte folhas de papel, escriptas em todas as estalagens onde pernoitei, e fechadas com uma especie de hymno de lagrimas, em que se me foi tudo o que a minha alma podia dar de superior áquillo que todos os homens sabem dizer n'uma carta de namoro.


Respondeu-me. A sua carta era simples, mas os toques eram verdadeiros... pareciam-no... via-se alli a mulher que escreve a primeira carta, o coração timido que balbucia os sons d'uma selvagem innocencia, que é a felicidade do homem que primeiro os tira do coração d'uma virgem.


Tres mezes assim. Tres mezes d'uma vida phantastica. Ancias insaciaveis das suas cartas. Tristezas dôces quando me faltavam n'um correio. Zangas sem odio, se o coração de tão longe a criminava de ingrata. Tres mezes assim... e no fim de tres mezes... adevinha o que aconteceu...


—Eu sei cá... morreu?


—Não.


—Veio cá ter comtigo?


—Não.


—Abandonou-te?


—Abandonou.


—Isso é incrivel!


—Acredita. Agora adevinha por quem eu fui preferido.


—Eu só te conheço a ti na tua terra...


—Imaginas que algum dandy a requestou de modo que a fragil creatura succumbiu ás seducções invenciveis?


—Só assim.


—Ora adeus! Tu não adevinhas, porque não sabes nada de mulheres...


—Foi o pai que a forçou a casar-se com algum brasileiro muito rico?...


—Tambem não...


—Diz lá isso, que estou impaciente...


—Pois lá vai: a minha querida Miquelina, o meu anjo que corava se o meu halito lhe roçava nas faces, a minha pudibunda Virginia que recebeu o meu primeiro beijo a tremer, a minha mimosa sensitiva que parecia resequir-se á mingoa dos meus carinhos... sempre queres que te diga?


—Pois então?


—A minha promettida esposa... fugiu com um... digo?


—Acaba, homem!


—Com um lacaio da casa!... Ólá! não fiques assim atordoado! Rite, como eu...


—Isto é inconcebivel!... E depois?


—Depois... que queres que eu te diga?


—Que fim teve essa mulher?


—Foi agarrada por ordem do pai, e o lacaio morreu arcabusado summariamente para não dar que fazer á justiça.


—E ella... vive?


—Creio que sim.


—Na companhia da familia?


—Não... Tu não me disseste que viras no Porto... Fiquemos aqui...


—Isso de modo nenhum... Has-de concluir...


—Pois sim... que importa!... Não me disseste que viste no Porto uma meretriz que revelava uma boa educação, e não queria dizer d'onde era, nem como viera áquella vida?...


—Disse... mas não se chamava Miquelina...


—Isso não faz nada ao caso... Rosa, ou Miquelina, é a mesma... é a minha promettida esposa, é o anjo dos meus primeiros amores, é a pomba alvissima da innocencia que encontrei em Alpedrinha... É ella... Basta... É noite... Vou fazer monte, e depois, se te quizeres embriagar comigo, vamos ao Paço do Conde, e beberemos á saude da exc.ma Miquelina Alpoim e Malafaia, victima d'uma paixão pelo infeliz lacaio, que desceu ao tumulo... das illustres victimas. Já sabes como se faz um cynico? A esses parvos, que por ahi andam a gaguejar um scepticismo que cheira a cueiros, dá-lhe com uma palmatoria.


E não tornou a fallar-me n'esta mulher.



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