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INTRODUCÇÃO
ОглавлениеLe résultat de l'art... c'est l'adoucissement des esprits et des mœurs, c'est la civilisation même.
V. HUGO.—Les voix intérieures.
Em uma tarde de agosto de 1867, passeava eu, com um amigo de aprazivel tracto, nos arrabaldes de Lisboa, e comparávamos a desamena e árida vegetação d'aquellas gándaras com os arvoredos e verdejantes valles do Minho.
Alli por perto de Odivelas me disse o meu amigo Luiz da Silva:
—Entremos por esta azinhaga que não tem sahida. Isto vae dar áquella casinha branca. Móra lá um velho a quem te vou apresentar. Mas quem sabe se o homem morreu?! Ha tres annos que o não vi...
—Tem esse sujeito—perguntei eu com a minha natural magnanimidade de immortalisador—passagens na vida dignas de chronica?{10}
—Tem, e magnificas.
—Capazes de um volume de 250 paginas em 8.º?
—Isso não sei. A biographia d'este homem é uma infelicidade vulgar, que, todavia, fez grande estrondo; mas os naufragios do coração parecem-se aos do mar: abre-se um abysmo, que sorve centenares de vidas, e d'ahi a pouco nenhum vestigio sobrenada á flor das ondas; assim succedeu na procella que sossobrou o velho que vaes vêr.
—Fez grande estrondo, disseste ahi tu! Mas eu, attento aos escandalos estrondosos do meu paiz, não me lembro d'isso...
—Não eras ainda nascido.
—Ah! eu não era ainda nascido? Isso então é caso muito antigo...
—Um pouco depois da edade-media—replicou Luiz da Silva.
E d'esta fórma gracejando por conta da nossa velhice, entestamos com uma porta estreita e baixa pertencente ao quintal da casinha branca.
O meu amigo bateu duas aldravadas na porta.
—Está aberta; levante o ferrolho quem é—disse uma voz de dentro.
—É vivo o homem!—disse Luiz, entrando.
Caminhamos por debaixo de uma parreira, cujos pilares se vestiam de festões de rozeiras vulgares e descuradas, alastrando-se por terra, e formando alcatifa de rosas murchas. Ao cabo da fresca e assombrada avenida, encontramos um caramanchel enverdecido de trepadeiras,{11} e lá dentro um ancião sentado em escabello de cortiça, afagando um gato maltez que lhe dormitava sobre os joelhos, e com pachorrento desdem entre-abriu os olhos á nossa chegada.
O velho formou com a mão direita um quebra-luz sobre os oculos verdes que pareciam coar-lhe aos olhos escassa claridade, e disse com prasenteiro semblante:
—Quem me faz a honra?...
—É Luiz da Silva e um amigo que tem a honra de ser apresentado a V. Ex.ª
Depois da apresentação, o sujeito, para quem o meu nome não era inteiramente desconhecido, disse ao meu amigo:
—Muito ha que o não vejo, snr. Silva. Seu tio general esteve aqui ha tempos, e me contou que V. Ex.ª andava a correr mundo. Conte o que viu.
—Vi o que Salomão via em tudo: vaidade.—Respondeu, sorrindo, o meu companheiro.
—Então, caro senhor meu, não só viu, mas estudou muito—volveu Venceslau Taveira, afagando o lubrico dorso do gato que, estrouvinhado pela incommoda palestra, se remechia no regaço do dono, resmuneando, e afofando o ninho para recomeçar o seu placido dormir.—Escusava de sahir de si proprio, snr. Silva, para vêr o homem qual é em toda parte—proseguiu o velho.
—E, se eu quizesse vêr um homem distincto do commum—tornou o meu amigo—bastar-me-hia ter conhecido V. Ex.ª{12}
—Distincto, quer dizer, distincto na infelicidade...—acudiu Taveira.
—Na honra e na virtude—emendou Luiz da Silva.
—Agora vejo que não estudou nada... Vaidade, tudo vaidade, e... algumas lagrimas.
E, voltado contra mim, perguntou:
—O seu amigo disse que v. é da provincia. É minhoto?
—Tenho vivido no Porto—respondí.
—Lá viví tambem dois annos e tanto. Os suburbios são graciosos, quanto me podiam parecel-o atravez do fumo das batalhas. Sou um dos sete mil e quinhentos. Conservo recordações agradaveis de umas grandes arvores da quinta do Vanzeller. Verdade é que as contemplei em posição molesta. Havia-se-me cravado uma bala na perna direita, e assim estive duas horas esperando a maca. Foi n'este espaço de tempo que eu, confrangido, de dôres, admirei a serenidade das arvores, e ponderei a vantagem de ser vegetal, estranho ás côrtes de Lamego e á constituição da monarchia. E a impassibilidade das carvalheiras aparando as balas no seu arnez de cortiça! Tudo é grande e forte, excepto o homem! O homem... esse é um mixto de odios, de angustias e vaidades, segundo assevera o nosso viajante Luiz da Silva...
Proseguiu o ancião, entremeando de discretas jocosidades a deleitosa conversação, que durou duas fugitivas horas.{13}
Não se me abriu ensejo de pedir a Venceslau Taveira licença de o visitar, nem elle me offereceu a sua casa. Facil era de perceber que, se as visitas lhe eram agradaveis, a solidão lhe era mais recreativa que as visitas.
Convidou-nos para o seu chá, quando anoiteceu, e acompanhou-nos até á porta do quintal.
—Quem é este homem?—perguntei ao meu amigo.
—A historia d'este homem ha de contar-t'a meu tio general que é do tempo d'elle, e vem todos os annos da provincia de Traz-os-Montes visitar o seu companheiro de infancia. Os lances essenciaes poderei referir-t'os; mas as particularidades só meu tio Pedro as sabe.
—Que posição social tem elle? Ouvi-te dar-lhe excellencia.
—A «excellencia» poderia significar que elle não tem alguma posição social; ainda assim, dou-lhe excellencia, porque o seu appellido representa familias antiquissimas da Beira Alta; além d'isso, é do conselho de Sua Magestade, official maior de secretaria aposentado, gran-cruz da ordem de Christo, etc.
Desde Odivelas a Lisboa, me referiu Luiz da Silva as passagens capitaes da historia de Venceslau Taveira.
Alguns mezes depois, o general Pedro da Silva chegou a Lisboa, e, a rogos do sobrinho, contou-me circumstanciadamente{14} successos que elle denominava os obscuros heroismos da mais honrada e excruciada alma.
E concluiu d'esta maneira:
—Se v. quer obrigar-me, escreva estes acontecimentos; mas não os enfeite com episodios de sua casa. Se a narrativa sahir verdadeira, poderá ser util. Deve v. fazer um livro dulcificante para alguns corações amargurados. Póde até denominal-o, se quizer: LIVRO DE CONSOLAÇÃO. Dou-lhe por cada lagrima, que fizer verter, um germen de boa acção, ou se quer de um bom pensamento. Porém, se v. adulterar a tragica singeleza d'esta desgraça com as inverosimilhanças do genio francez, o seu livro ficará sendo meramente uma novella. Escuso pedir-lhe—terminou o general—que empregue tão sómente a sua phantasia nos nomes dos personagens, em razão de estar ainda vivo o principal.{15}