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III

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Ton chemin est devant toi. Marche! marche!

ED. QUINET.—Ashaverus.

Em seguimento, a prelada de Santa Clara recebeu intimação militar para entregar D. Antonia de Portugal.

Os enviados á redempção da gentilissima captiva espavoriram as freiras, quando marcialmente entraram ao portico do mosteiro.

As mais avançadas em edade e virtude não ficaram estranhas ao receio de serem desbalisadas do thesouro de merecimentos que haviam amealhado á custa de muitas violencias, renunciações, cilicios e jejuns debilitantes. As menos jejuadas e mais propensas a crêr na malicia dos homens, se tivessem lido o que asseveram chronicas e o snr. A. Herculano repete no Eurico, a respeito de certas monjas em risco de serem presa lasciva dos sarracenos, é bem de crêr que pedissem á prioreza{34} que as degolasse na crypta, antes que o bafejo pestilencial dos francezes lhes mareasse a candura, obrigando-as a córar.

E, tantos visos de exactidão offerece a hypothese lisongeira, que, ao saber-se que D. Antonia era reclamada pelo general Junot, todas—que eram cento e vinte as professas—illudidas, talvez, pediram voz em grita que as deixassem soffrer por concomitancia o mesmo martyrio. Que jubilo iria no empyreo, se as famosas onze mil da legenda sahissem a receber no atrio dos seus jardins eternos subsidio que lhes enviava, d'uma assentada, Portugal—torrão bastante sáfaro para tal messe!

Não eram já, entretanto, aquelles dias os azados para tão heroicos martyrios. A prelada, exemplificando comsigo a privação do holocausto, forçou a commedirem-se as noviças, as noviças principalmente, que tinham os olhos sedentos de mortificação fitos nos algozes que as remiravam do pateo com uns olhares assaz significativos das carniceiras entranhas que os distinguiam dos frades portuguezes. Ora estes frades da comparação eram uns que frequentavam os locutorios, e suspiravam tão mysticamente quanto lhes permittia a eructação da orelheira mal esmoida.

Não pude averiguar se o agiologio das franciscanas conimbricenses commemora algumas martyres empolgadas no tempo dos francezes em que a roupa d'elles e a virtude das mulheres portuguezas era tudo o mesmo para tão desmedidos facinoras, segundo affirmam piedosas tradições. Do que tenho certeza é que D. Antonia{35} de Portugal sahiu do convento com tanta precipitação, ou tantas lagrimas a nublarem-lhe a vista, que nem sequer divisava, entre os officiaes francezes, Eduardo Pimenta, que parecia ajoelhar quebrantado pelo pezo da felicidade.

Quando Venceslau Taveira conheceu este moço, mezes depois dos acontecimentos referidos, chorava elle, e quantos viam Eduardo a braços com a desgraça que raras vezes, em episodios amorosos, se defronta com o coração humano tão inexoravelmente.

Um dia, o alferes promovido a capitão no exercito francez, foi mandado servir ás ordens de La Borde na batalha do Vimieiro, em que a estrella dos valorosos portuguezes lampejou uns clarões que davam a lembrar o cyclo heroico de que nem sequer, para tudo se perder, nos resta já agora uma briosa saudade.

D. Antonia estanceava então na Alhandra esperando que seu marido a mandasse recolher a Lisboa.

N'esta anciedade a fulminou a noticia de que o general La Borde morrera na Roliça e com elle todo o estado maior.

E, no mesmo lance em que tal nova lhe deram, uns homens, que se diziam seus valedores no immenso infortunio, quasi a forçaram a cavalgar, caminho de Coimbra, onde, áquelle tempo, iam chegando os inglezes desembarcados na Figueira.

E alli, da portaria do mosteiro de Santa Clara avisinhou-se chusma de homens, que levaram uma mulher{36} estorcendo-se a brados afflictivos. Depois, abriu-se a porta do mosteiro, e fechou-se logo que sobre o escabello foi deposta D. Antonia de Portugal, que desmaiára, se é que a morte se não amerciára d'ella.

Entretanto, nem La Borde nem o capitão Pimenta haviam morrido dos ferimentos. Alguem vira o official portuguez n'um olivedo do Tojal enfaixando um braço que sangrava. D'este encontro resultou o boato da morte, ao mesmo tempo que outros juravam de vista assistirem ao enterro do general na egreja do Carmo em Lisboa.

Como quer que fosse, os portadores da falsa noticia a D. Antonia eram confidentes dos tios d'ella, e a bala, que raspára na espadua do capitão, fôra-lhe apontada ao peito por um d'esses homens. N'aquelle tempo a fidalguia d'estes reinos ainda resfolegava por taes respiradouros o sangue brioso que se lhe emborrascava nas arterias. O timbre das armas obrigava. Os paquifes do elmo, arcando-se sobre as cabeças d'uns mouros, esculpturados com barbaridade digna das proezas, obrigavam seus donos ao preceito heraldico de guardar a honra da familia com ferocia egual ao disvelo que punham em honrar a patria nos açougues da Asia.

Enviára Eduardo Pimenta dous soldados portuguezes que levassem D. Antonia a Cintra onde se estavam redigindo os artigos da convenção. Como fosse clausula antevista d'aquelle convenio sahirem os vencidos com as honras da guerra, o official contra-pesava o infortunio{37} do desterro com o jubilo de passar com a esposa a França, onde os generaes portuguezes lhe promettiam protecção.

Os enviados de Eduardo voltaram dizendo que D. Antonia sahira da Alhandra, algumas horas antes, acompanhada por milicianos.

Alanciado por tão inesperada agonia, o official affrontou o maximo risco, perpassando pelas guerrilhas que confluiam a Lisboa. As insignias e a rapidez da carreira acirraram o patriotismo de alguns bravos que o espingardiaram e feriram mortalmente.

Uns caridosos frades cruzios que seguiam para uma quinta chamada Cadafaes, nos arrabaldes da Alhandra, transportaram o ferido. Alli, a peito com a morte, o desgraçado venceu-a, quando lhe seria redempção de maiores penas succumbir.

Apoz longo tratamento, vae-se aquelle homem só, pobre, cercado de incertezas e perigos. Ninguem sabia indicar-lhe o destino de D. Antonia. Os amigos negavam-se a acoital-o da sanha da plebe. Por sobre tantos desamparos, a pobreza antepunha-lhe uma cadeia de adversidades, por entre as quaes lhe transluzia a consoladora ideia do suicidio.

O pae de Eduardo era portuguez de marca maior, entranhas nacionaes, ferventes de nacionalismo e odio ao filho amaldiçoado que se bandeára com jacobinos.

Quando, pois, Eduardo, disfarçado em almocreve, lhe appareceu á beira do leito onde o velho se esperguiçava nos regalos de quem dormiu somno de justo, repulsou-o{38} com vociferações dignas dos paes romanos que sentenciavam os filhos á morte, e mais dignas ainda do proverbial amor patrio dos bracharenses.

—Fóra d'ahi, herege!—exclamou o ancião, estirando os braços á cara do filho.—Pegaste em armas contra a nação de Affonso Henriques—proseguiu o honrado portuguez com ira azedada pelas reminiscencias historicas—tu! jacobino! ousaste desembainhar a espada contra a tua patria! contra a patria de Affonso Henriques, que venceu cinco reis mouros, com auxilio de Jesus Christo, que lhe fallou no campo de Ourique! Vae-te da minha presença, maldito, em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo! Não me tornes a pôr o pé em casa, sem te limpares com uma confissão geral, impio, atheu!

Aturdido pela apostrophe e coberto de lagrimas, Eduardo ajoelhou, referindo os infortunios que o levaram por necessidade e gratidão a servir o seu libertador. Com o soccorro da mãe compadecida, conseguiu commover o velho até ao extremo de prometter-lhe não o denunciar á justiça, com a clausula de que iria sumir-se nas Alturas de Barroso em casa de parentes.

Foi; mas poucos dias permaneceu na soledade agra de uma serrania onde o desejo de morrer o debruçava sobre os despenhadeiros, implorando á sua desgraça a coragem do suicidio. A coragem! Porque não hei de, acostado a moralistas de grande tomo, chamar-lhe antes cobardia? É porque ha mister enorme coração quem dentro d'elle se abre um tumulo. É porque vae esforçada{39} valentia n'isto de um infeliz se aniquilar com a certeza de que em vez de lagrimas, lhe pesará sobre a memoria a censura dos felizes, o horror dos espiritualistas catholicos, e a nota da demencia—suprema injuria a essas pobres almas que a divina justiça não mandaria ás penas eternas sem lhes descontar os terribilissimos paroxismos, aquelle tormentoso debaterem-se nas prezas da desgraça, aquelle relanço d'olhos ao céo e o grito d'alma n'esta dilacerante pergunta: «Quando te pedí eu a vida, ó Creador?»

Eduardo desceu um dia das Alturas de Barroso e entrou no Porto demudado e vestido por maneira que o não poderiam suspeitar. Acercou-se do páteo de um irmão de D. Antonia de Portugal, e conversou com os palafreneiros, occasionando perguntar novas da fidalga. Disseram-lhe que ella estava em um convento de Coimbra, onde a encerraram depois que o marido acabára na batalha de Vimieiro.

Dias depois, n'aquelle anno de 1809, o marechal Soult entrou no Porto. O capitão vestiu a farda e apresentou-se ao general.{40}

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