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II
ОглавлениеO célestes concerts de joie et de douleur!
HENRI BLAZE.—Matutina.
Era um rapaz de vinte e dous annos, chamado Eduardo Pimenta, natural de Braga.
Este moço levava uma vida tanto em comêço já cortada de profundos golpes; e, por amor d'isso, como as suas dôres não podiam ser expiação de maus actos, a gente de coração queria suavisar-lh'as, linimentando-lh'as com o balsamo da amizade.
Bosquejemos a historia d'esta mal estreada existencia.
D. Antonia de Portugal, famigerada formosura n'aquelle tempo, viera de Lisboa a visitar irmãos, que tinha no Porto, alliados por casamento nas duas casas de mais gothica estirpe. Affeiçoara-se aquella dama a um alferes, sem discriminar os distantissimos pontos de partida{24} em que o Creador pozera o seu primeiro avô do avô de Eduardo Pimenta:—erro talvez devido á insufficiente leitura que a menina tinha de Moysés.
Era orphã D. Antonia; mas a tutela de um tio que por vezes exercera o então poderoso cargo de ministro de Estado, pesava-lhe mais oppressiva e inflexivel que o poder paterno. Assim pois, tão depressa raspou nos ouvidos do fidalgo o indecoroso affecto da sobrinha, que logo Eduardo Pimenta foi chamado á capital e transferido ao Brazil em serviço militar. Inquebrantavel em seu amor, D. Antonia incutiu no peito do desterrado a flamma da sua coragem, accendendo-lhe esperanças temerarias e perigosas.
Os parentes d'ella tomaram-se de espanto e ira, ao saberem que o alferes desertára do seu regimento, desembarcára em Lisboa, e ajoelhára aos pés do principe regente solicitando e impetrando licença para casar-se com D. Antonia de Portugal.
O consentimento, porém, do bondoso principe não tolheu que o alferes, acossado pela perseguição de sicarios, se evadisse da côrte, refugiando-se nos arrabaldes de Braga, d'onde em vão implorou por mediação de amigos a malograda protecção do principe.
No entanto, a pertinaz menina, cansada de reagir á pressão dos parentes, acolheu-se ao mosteiro de S. Bento da Ave Maria, no Porto, onde tinha uma tia professa; mas d'ahi ainda o braço rijo do tio ministro, mediante o chanceller das justiças, a foi arrancar, allegando que{25} a reclusa, escrevendo e recebendo cartas, gosava liberdades deshonestas que em sua casa lhe eram prohibidas.
E em verdade escrevia muitissima carta D. Antonia, e dispunha de estylo que, relativamente á época, não era menos de romantico. Se o leitor quizer, logo lhe darei occasião de apreciar a linguagem e a sensibilidade extrema d'esta senhora que pagou penosamente os dons do seu espirito.
Apartada judicialmente da indulgente freira, foi transferida para o collegio das orphãs que n'aquelle tempo foi viveiro de meninas lastimosas, mormente as pensionistas, as formosas, as amadas, as ricas, as filhas segundas—e hoje em dia está sendo—graças á santa Casa da Misericordia—um alfôbre de educação moral onde o vicio não póde coar-se senão em parcellas diminutissimas, por onde se vê que a Misericordia conseguiu estar-se em pleno osculo com sua irmã ou prima, a Castidade.
N'aquelles dias, pois, a urna dos divinos balsamos de Jesus caritativo transformára-se em gral onde os corações eram pulverisados. E d'este pó amassado com lagrimas sustentava-se a honra das familias, a dignidade das mulheres, e nutriam-se as boas esposas que depois sahiam a repartir affectos entre maridos, e primos e capellães, e tudo mais que convinha a manter honesto equilibrio entre as coisas humanas e divinas.
Pois, sem impedimento das vigilantes espias que lhe espreitavam os gemidos e os arremessos, a reclusa vingou{26} passar na roda uma imprudente carta que denunciava a residencia do alferes homiziado.
Guiados pelo destino da carta, os aguazis do corregedor, com auxilio de escolta cedida pelo general da provincia, cercaram o escondrijo do desertor, prenderam-o com affrontosas precauções, e aferrolharam-o na mais escura masmorra do castello de S. João da Foz, onde, quarenta annos antes, alguns padres da Companhia de Jesus haviam expirado de fome e frio por ordem do deshumano marquez de Pombal.
Avisada do desastre causado por sua indiscrição, D. Antonia rompeu em tamanhos desatinos que a regente, por amor á vida não votada ao martyrio, requereu que lhe tirassem d'aquella casa mansa e quieta a turbulenta fidalga, que ameaçava tortural-a com a roda de navalhas de Santa Catharina, virgem e martyr. A regente, diga-se verdade liza, parece ter tido escrupulos de mentir, e receios de não poder entrar no reino da gloria eterna com a dupla corôa da santa anavalhada. Não lhe pezem, todavia, as minhas suspeitas sobre os ossos que D. Antonia lhe ameaçou tres vezes ou mais.
O certo é que a louca de amor foi d'alli passada com guardas de esbirros para Santa Clara de Coimbra, mosteiro onde áquelle tempo se exercitavam maleficios inquisitoriaes sobre donzellas eivadas do judaismo da ternura por sugeitos incongruentes com suas pessoas e bens.
N'esta conjunctura, succedeu entrar em Portugal o invasor Junot, e com elle a vanguarda de ideias livres,{27} vestidas com as pompas da egualdade humana—santas palavras que desafogaram corações abafados ás mãos da tyrannia de paes e tutores. D. Antonia, alumiada na escuridade da sua cella por lampejos de esperança, ao saber que o general estava em Coimbra, escreveu a seguinte carta que vae textualmente copiada da que tenho e que é a original com toda a certeza. Bem póde ser que semelhante documento desquadre á urdidura d'esta narrativa; vá, não obstante, como homenagem a uma dama infelicissima, a qual, ao fechar-se em sua sepultura, abriu algumas que mais tarde se encerraram depois de cruciantes agonias, como no discurso do livro se irá vendo.
Dizia assim a carta a Junot:
«A alta consideração que por tantos titulos é devida a V. Ex.ª, imporia á minha triste situação o mais respeitoso silencio, se a vossa generosidade, Senhor, a não tivesse prevenido, assegurando aos habitantes de Portugal uma protecção que, fazendo a nossa gloria, é a mais sublime recommendação da vossa virtude e nobreza. Estes dons tão preciosos me animam e prestam valor de elevar minhas supplicas e lagrimas á respeitavel presença de V. Ex.ª O illustre guerreiro que participa da gloria do maior dos heroes que tem visto os seculos, saberá como elle unir clemencia e piedade ao valor que no campo de Marte immortalisa seu nome.
«É do fundo de um claustro que a mortal mais desgraçada ousa aspirar á honra de invocar o illustre general. É a innocencia tyrannisada e os direitos mais{28} sagrados combatidos que se refugiam no asylo de vossos pés.
«Tenho a infelicidade de pertencer a uma familia nobre e desde a minha mais tenra infancia me decidi por um militar que servia com honra em um dos regimentos do Porto. Se elle não tinha fortuna tão brilhante como minha familia, possuia todas as boas qualidades que caracterisam as almas nobres. Por um caprichoso orgulho, que não póde soffrer as virtudes puras (porque lhes ignoram o preço e os encantos) oppõe-se minha familia fortemente á minha escolha, prevenindo nossas vistas definitivas de um casamento occulto; e, conhecendo bastante a firmeza de nossos desejos, meus parentes solicitaram e obtiveram uma ordem para que o meu pretendido passasse á America. Este injusto procedimento feriu sensivelmente a minha delicadeza e reputação.
«Empreguei todo o poder que eu tinha sobre o espirito do meu esposo, obrigando-o a voltar clandestinamente a este reino, assegurando-lhe a minha mão e a minha fé. Apoz um anno de ausencia, chegou á côrte; lançou-se aos pés do throno, e foi recebido pelo virtuoso principe com a maior affabilidade; porém, o ministro de estado impediu a conclusão de tão ditosas esperanças, forçando meu esposo á cruel necessidade de se esconder dos seus perseguidores que o espiavam em toda a parte para satisfazerem o seu antigo odio e incompleta vingança. Em quanto elle se foragia no seio de sua honrada familia, eu fui por meus parentes forçada{29} a receber outro esposo. Resisti. Não pude. Abracei o ultimo partido que me restava para subtrahir-me ás suas violencias. Abandonei a casa de meus algozes e acolhi-me aos pés da cruz. Ahi mesmo a minha desgraça amparada nos confortos da religião, foi diffamada de astucia. Deu-se-me um Recolhimento de orfãs, onde até as lagrimas me eram empeçonhadas pelos conselhos brutaes das minhas directoras, que me chamavam á penitencia por ter amado um homem pobre em quem Deus influira as virtudes mais bellas e caracteristicas do seu divino creador; mas, Senhor, como n'aquelle Recolhimento os meus gritos de desesperação me dessem o triste semblante de louca, a commiseração dos meus parentes enviou-me a umas torturas novas n'este convento de Santa Clara, d'onde, banhada em lagrimas, estou escrevendo a V. Ex.ª
«Apezar dos espiões, ameaças e insultos, eu conseguira remetter ao meu consternado amigo uma procuração que devia servir ao nosso casamento, consentido pelo arcebispo de Braga. Quando, porém, os meus parentes souberam que este acto se havia praticado em uma egreja de Barcellos, instauraram processo contra o meu esposo com o proposito de o condemnarem a degredo. Exigiram de mim que eu negasse a minha assignatura na procuração, com o fim de o sentencearem como falsificador de firmas; mas eu, invocando o meu amor e a minha honra, achei pequenas e covardes as tyrannias que se augmentaram a ponto de me ser negada a mais necessaria e urgente subsistencia. As queixas de{30} meus irmãos chegaram ao throno; todavia, apesar do valimento de tão poderosos inimigos, não quiz sua alteza real que meu esposo fosse castigado sem ser convencido. A innocencia d'elle ia ser patenteada, e por tanto destruida a opposição da minha familia, quando a partida do regente para o Brazil, nos deixou outra vez expostos á furia dos nossos perseguidores. É fortissimo o partido d'elles. O snr. Br**, nomeado membro da regencia, e outros fidalgos parentes de minha mãe, me fazem tremer pela nossa sorte. O nosso triumpho está sómente reservado a um poder superior. Só um general de Napoleão, immortal como elle, poderá salvar-nos, libertar-nos e unir-nos. Este prodigio de grandeza de alma é proprio de V. Ex.ª; é uma das maiores victorias do Anjo que já está gosando a immortalidade no nome que ellas lhe deram.
«Dignae-vos, pois, Senhor, em nome de tudo que ha sagrado, ser o protector de dois amantes desgraçados, que a vossos pés imploram uma graça que lhes será a elles a suprema felicidade. Uma palavra só que vos digneis proferir a nosso favor, a iremos de joelhos agradecer, beijando-vos mil vezes a mão que nos abriu o céo; ao mesmo tempo que em nossas almas, Senhor, sereis adorado como homem a quem Deus conferiu poder de nos resurgir da morte, se tal vida não é mais digna da vossa commiseração...»
Esta carta foi vertida para francez por Vidal, ajudante do general Tiebau, coadjuvado por outro que depois se fez conhecido no mundo scientifico, chamando-se{31} Geofroi de Saint-Hilaire. Este, egual no talento e na sensibilidade, leu a carta a Junot, internecendo-a de pauzas e modulações, tendentes a mover o peito do soldado pouco affeito a commoções dramaticas.
D. Antonia de Portugal recebeu da mão de Vidal a seguinte resposta:
«Madame. A innocencia opprimida não se dirige inutilmente ao representante do Grande Napoleão, cujo poder abrange o mundo, e cuja justiça se distribue por vassalos e reis. Ordeno que se vos dê liberdade e passaporte para Lisboa. Vinde alli, e de lá ser-vos-ha facil fazer sahir dos carceres do Porto o ente que vos interessa, e que, como vós, ha sido a victima do orgulho de um ministro. Eu vos protegerei a ambos. Tenho a honra de ser vosso muito humilde e obediente servo—Junot.»[2]{32} {33}